MIA> Biblioteca> Temática > Novidades
Baixe o documento como Ebook (formato epub) |
Os pequenos agricultores de Ourentã e dos Adões seguiram desde cedo o exemplo cooperativo de Barcouço. Durante o ano de 1976 enquanto a COBAR crescia e se consolidava nasciam mais duas cooperativas de produção agro-pecuária naquelas duas povoações vizinhas.
Porque se multiplicava assim o exemplo na região apesar da propaganda contrária de direita? Porque os camponeses de Barcouço ficaram repentinamente ricos desde que se uniram em coopera- tiva? Não.
Deve sublinhar-se uma vez mais que durante o ano de 1976 os sócios trabalhadores da cooperativa de Barcouço não receberam dinheiro pelos dias de trabalho prestados na COBAR, e o mesmo iria suceder aos cooperadores de Adões e de Ourentã. As dificuldades foram inúmeras e de diversa ordem.
Em Maio de 1976 numa reunião geral dizia um director da COBAR: «A cooperativa é uma coisa nova nas nossas vidas. A gente não estava habituada a trabalhar em cooperativa. E, portanto, como a gente não estava habituada a trabalhar nas cooperativas, há determinados momentos na nossa vida em que a gente erra. A gente ontem errou. (...) Todas as situações difíceis devem ser discutidas aqui dentro.»
Aqui dentro era o velho barracão emprestado por amigos da cooperativa e onde todos os sábados à noite se reuniam os associados para analisar e discutir os problemas que os afligiam e encontrar as soluções mais adequadas aceites por todos os presentes. Foi assim que os camponeses de Barcouço verificaram que o principal problema era o dos intermediários que lhes levavam os produtos a baixo preço; foi aí que os agricultores descobriram os governantes que os ignoraram; foi aí que os camponeses concluiram que a melhoria da sua vida dependia da exploração conjunta dos seus pequenos terrenos, para poderem utilizar máquinas, diversificar as culturas e aumentar a produção.
Os problemas eram os mesmos que preocupavam os camponeses de Ourentã e de Adões, que optaram pela mesma via: juntar terras e forças. Todos os sábados os sócios da COBAR reunem no barracão. Aí discutiram os estatutos através dos quais a cooperativa ficou aberta a todos os agricultores de Barcouço mediante o pagamento de uma acção única de 100$00. Quem entregasse terras à cooperativa para a exploração agrícola receberia uma renda segundo a prática e costumes da região. No caso de ceder só as terras e não trabalhar será sócio de apoio, podendo eleger e ser eleito para a Assembleia Geral e Conselho Fiscal. Os sócios que além de entregarem terras também trabalhassem eram sócios produtores e assistia-lhes o direito de elegerem e serem eleitos para todos os órgãos sociais da cooperativa, incluindo a direcção. À entrega de terras não correspondia a perda da sua propriedade. Os cooperadores podiam retirar as suas terras da exploração colectiva da cooperativa sempre que quisessem.
Quem não tiver terras também pode ser sócio produtor: basta que se inscreva e trabalhe na cooperativa.
Cada homem ganha 170$00 por dia, e as mulheres 150$00. Numa das reuniões de sábado foi abordada a questão da igualdade de salários, mas como a Ermesinda nos contou atrás e o Joaquim vai voltar a explicar mais adiante, os homens opuseram-se na sua maioria a tal equiparação no que foram acompanhados por algumas mulheres.
As reuniões de sábado, que de resto nem sequer estavam previstas nos estatutos, constituem uma das características colectivas mais ricas da cooperativa de Barcouço. Quando em Maio um elemento da direcção propôs que as reuniões gerais de sábado se realizasseêm somente uma vez por mês, ficando os outros sábados para reuniões entre a direcção e os grupos de trabalho, a discussão que se gerou foi rápida mas firme: a meia centena de pessoas presentes recusou a proposta e exigiu semanalmente as reuniões gerais. A direcção se precisasse de reunir com os grupos de trabalho que o fizesse noutro dia. E assim foi: agora a direcção também reúne às terças com aqueles grupos.
Foi nas reuniões de sábado que os cooperadores decidiram as culturas a fazer em 1976 (batata, milho, nabos, erva para pasto, etc., etc.); foi aí que se aceitou não receber salários durante 76 para permitir à cooperativa avançar, embora todo o trabalho tivesse sido contabilizado; aí se programou a campanha da resina através da exploração conjunta de pinhais dos sócios; é aí que todas as semanas se estabelecem as escalas para a resina, bezerros, roça mato, mulheres para a erva, e para os grelos e nabos! Não há horários, como não houve salários, embora se trabalhe de sol a sol.
As reuniões de sábado são também o ponto de encontro das contradições que foram surgindo: críticas às pessoas que faltaram nos dias de trabalho que lhes calhavam na semana; críticas aos métodos de trabalho utilizados no cumprimento das tarefas atribuídas (nomeadamente no sector da resinagem, e no tratamento dos bezerros); críticas ao comportamento dos sócios em relação à cooperativa; questões de disciplina no trabalho: etc.
Das diversas vezes que assistimos a reuniões nunca escutámos todavia qualquer alusão a partidos ou à religião. As contradições que surgiam eram pois, reais. Não foram alimentadas pelo partidarismo ou pelas crenças religiosas de cada um. Não é de mais sublinhar que a partidarização da cooperativa, a suceder algum dia, significará a sua morte.
Os dirigentes são destituíveis em qualquer momento pela assembleia geral que é soberana e a ela cabe determinar a orientação da cooperativa.
Deve dizer-se que na prática as reuniões de sábado funcionam como assembleias gerais e que, em verdade, a direcção é mandatária e executante da vontade colectivamente expressa nessas reuniões semanais.
Reuniões muito concorridas. Não só os sócios lá estão. Em muitos casos quando os homens se fizeram associados da cooperativa levaram consigo a família. A mulher e os filhos que trabalhavam a leira familiar foram também trabalhar para a cooperativa quando as terras passaram a ser exploradas em conjunto. Todos participam das reuniões, embora só o chefe da família possa ser juridicamente considerado sócio. Por isso elegível e eleitor. Esta situação é um tanto injusta para as mulheres e para os jovens mas constitui provavelmente problema semelhante à da igualdade de salários homens-mulheres. Serão os camponeses capazes de resolvê-lo aceitando de pleno direito os seus familiares na cooperativa? Arriscamos pela afirmativa.
As reuniões de sábado são o coração da cooperativa, a sua vida ou a sua morte caso não se encontrem saídas positivas para estas contradições.
Estamos apostados em pensar que este estilo de trabalho surgido na COBAR constitui o principal motivo de entusiasmo dos camponeses de Adões e Ourentã ao tentarem a sua sorte.
Hoje Barcouço já reuniu em parcelas separadas terras que totalizam os 22 hectares. É certa que teve dificuldades diversas nos aspectos de organização da produção e da exploração da resina como adiante nos exporá o Joaquim. Mas importa realçar que a valorização da prática de decisão colectiva, e de contar com as próprias forças ainda que correndo o risco de menor produtividade devido à falta de gestores tecnocratas (ou burocratas), constitui a um tempo a força da cooperativa e também o seu calcanhar de aquiles. Estamos apostados em acreditar que neste segundo ano da vida da COBAR os camponeses vão corrigir erros cometidos, e provavelmente encontrarão outros.
Mas a vida colectiva contribuirá para que este caminho seja cada vez mais largo. «Pretendemos alargar esta unidade de produção colectiva. Mas o mais importante é unir as pessoas. Isso é mais importante que unir as terras», dizia-nos um camponês há pouco menos de um ano.
A COBAR veio demonstrar-nos a justeza destas palavras, com as pessoas unidas dispostas a não recuar após o 25 de Novembro, dispostas a combater a CAP ou as medidas repressivas de Antónia Barreto, dispostas a continuar unidas no futebol como na música, na cooperativa como na caça. Dispostas a continuarem unidas mesmo quando a Igreja resolve lançar anátemas sobre os que resolveram não morrer de enxada na mão e desbravar aqui na terra os caminhos do céu. Porque se cooperativa tem em primeira instância a vocação para transformar as relações sociais de produção que dominavam a zona, visa também em última análise mudar a vida das pessoas no seu todo.
Barcouço não é só a cooperativa, embora esta seja hoje o seu coração. Por isso falar de futebol, da música ou da caça é falar do convívio dos camponeses de Barcouço, alguns dos quais não deixam de ir à missa só porque o bispo não gosta de cooperativas. Dum convívio, expressão do colectivismo que a cooperativa engrandeceu.
Inclusão | 14/06/2019 |