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Primeira Edição: ABC do Marxismo-Leninismo Série A, N° 11, Editorial Avante!, Lisboa, 1977
Fonte: Partido Comunista Português — Organização Regional de Lisboa
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
A compreensão da Comuna de Paris, um dos acontecimentos mais importantes da história do século XIX, assenta no conhecimento do desenvolvimento económico, social e político da França a partir de 1830. Compreendemos a Comuna de Paris tanto melhor quanto melhor conhecermos o papel do proletariado francês nesse desenvolvimento.
Com a revolução de Julho de 1830, os Legitimistas(1), no poder desde 1815, foram derrubados. Substituíram-nos os orleanistas(2), um grupo formado à volta de Luís Filipe, da Casa de Orleães. Mas o que, de facto, se escondia por de trás da designação de «Orleanistas», revelou-o o banqueiro Lafitte(3) ao afirmar, imediatamente após a queda de Carlos X, o último dos Bourbons: «A partir de agora reinarão os banqueiros.» Na verdade, a revolução de Julho nada mais foi do que a tomada do poder pela chamada aristocracia financeira, isto é, por uma só das fracções da burguesia.
Embora a princípio a grande maioria da burguesia propriamente industrial se visse afastada do exercício do poder, a transformação industrial processava-se a ritmo acelerado. O centro de gravidade do desenvolvimento industrial deslocou-se, tal como em Inglaterra, da indústria têxtil para a do carvão e do ferro.
O aumento da produção industrial e o crescimento da riqueza da burguesia faziam-se na razão inversa do seu contrário: agravavam-se rapidamente as condições de vida da classe operária francesa. Os conflitos crescentes entre a burguesia e o proletariado explodiram pela primeira vez em Lyon, em 1830, quando os tecelões de seda desencadearam uma revolta sob o grito: «Viver trabalhando ou morrer lutando». Em consequência da organização deficiente das massas que participaram nesse levantamento, a revolta foi esmagada pelas tropas do governo dez dias depois do seu início. Reaberta a luta em 1834, os operários foram de novo derrotados. E tal como os levantamentos operários de Lyon, uma insurreição republicana, em 1832, e uma outra chefiada por Blanqui(4) em Paris, em 1839, foram também reprimidas pelas tropas.
A derrota destes levantamentos pelos militares ao serviço da Monarquia de Julho não conseguiu, no entanto, impedir que os clubes e associações revolucionárias de orientações diversas fossem ganhando uma influência crescente no seio da classe operária e entre a pequena burguesia.
Apesar das visíveis debilidades teóricas destas associações, que só foram superadas pelo socialismo científico criado e desenvolvido por Marx e Engels, era evidente que a classe operária entrava em cena cada vez mais conscientemente como força política independente.
Pelo seu lado, também as fracções burguesas da oposição reforçavam a sua resistência ao regime de Orleães.
«A doença da batata e as más colheitas de 1845 e 1846 vieram aumentar a fermentação geral entre o povo. A subida dos preços em 1847 provocou conflitos sangrentos tanto em França como no Continente.»(5) Um outro acontecimento económico importante foi a eclosão de uma crise geral no comércio e na indústria em Inglaterra, que se anunciou no Outono de 1845. «Ainda as repercussões desta crise não se tinham esgotado no Continente, quando rebentou a revolução de Fevereiro.»(6)
O governo de Luís Filipe foi derrubado a 24 de Fevereiro de 1848, e proclamada a Segunda República francesa. O proletariado parisiense esteve à frente das massas populares que puseram um fim violento à Monarquia de Julho. Embora a princípio estivessem representadas todas as classes sociais no governo provisório constituído, logo as eleições para a Assembleia Nacional vieram demonstrar que as contradições entre elas não eram um mero equívoco. A revolução de Fevereiro de 1848 levara ao poder também as fracções burguesas até então na oposição; mas ao proletariado foi apontado o único lugar que lhe cabe no quadro estreito de uma república burguesa: o de espectador.
Assim, as concessões feitas inicialmente à classe operária — a instituição de oficinas nacionais e uma comissão operária em reunião permanente — foram-se tornando cada vez mais um perigo para a sobrevivência da república burguesa. A exclusão efectiva dos representantes operários de uma comissão executiva nomeada pela Assembleia Nacional e o encerramento definitiva das oficinas nacionais, em 21 de Junho de 1848, não deixaram ao proletariado outra alternativa senão a revolta armada, que começou em 23 de Junho. Os operários lutaram, desde o início, contra uma frente coesa de todas as restantes forças sociais. O general burguês Cavaignac(7) e Thiers(8), político e historiador monárquico, decididos a aniquilarem as forças revolucionárias, chefiaram as acções da reacção e, com o exército, acabaram por afogar em sangue o levantamento. Já depois da derrota, 3 000 operários foram ainda vítimas de uma chacina brutal. Embora o proletariado tivesse de novo recuado para o segundo plano da cena revolucionária, a verdade é que estava criado o espaço de acção para a sua futura emancipação.
A derrota do proletariado foi, simultaneamente, a derrota da república burguesa. A eleição de Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho de Napoleão I, para a Presidência da República, a 10 de Dezembro de 1848, foi uma vitória de todas as forças anti-republicanas, desde os camponeses até aos partidários da Casa de Orleães e aos Legitimistas, passando pelo exército. A restauração da monarquia era apenas uma questão de tempo.
O primeiro passo para a eliminação do Parlamento foi dado pelo próprio Parlamento. Por medo à oposição crescente da «Montagne» (a fracção mais à esquerda na Assembleia Nacional, e de cunho predominantemente pequeno-burguês), a Assembleia Nacional (cerca de dois terços dos deputados eram Legitimistas ou Orleanistas) decidiu alterar a lei eleitoral em 18 de Maio de 1850, o que se traduziu na supressão do sufrágio universal. A este golpe de Estado da burguesia seguiu-se o de Bonaparte. No dia 2 de Dezembro de 1851 Bonaparte conseguiu dissolver o Parlamento, que a si próprio passara atestado legal de ser supérfluo, e assim concentrar todo o poder executivo na sua pessoa.
Um plebiscito organizado pelos Bonapartistas, em 21 de Novembro de 1852, para decidir sobre o restabelecimento do Império, levou à proclamação de Luís Bonaparte como «Imperador dos Franceses» a 2 de Dezembro do mesmo ano.
«Com o golpe de Estado como cédula de nascimento, autenticado pelo sufrágio e tendo o sabre como ceptro, o Império afirmava apoiar-se nos camponeses, na grande massa de produtores que não estavam directamente envolvidos na luta entre capital e trabalho. Afirmava salvar a classe operária, acabando com o parlamentarismo. [...] Afirmava salvar as classes possuidoras, com a manutenção da sua supremacia económica sobre a classe operária; finalmente afirmava ainda unir todas as classes pela imagem ilusória da glória nacional. Na realidade, era esta a única forma de governo possível numa altura em que a burguesia perdera a capacidade de dominar a nação e a classe operária ainda não tinha alcançado essa capacidade.»(9)
À subvenção estatal da alta burguesia e às facilidades concedidas à especulação financeira e de terrenos contrapunham-se, por um lado, os crescentes encargos fiscais e as hipotecas do campesinato; por outro, a situação da classe operária, caracterizada pela total ausência de direitos e por uma exploração intensificada. Estas contradições internas são importantes para compreendermos o envolvimento prematuro do regime de Napoleão III em conflitos bélicos(10). O fracasso dispendioso da tentativa de instalar no México um Império por mercê de Napoleão provocou o reforço da oposição da burguesia industrial. Devido aos fracassos da política externa e ao crescente descontentamento das massas, os Bonapartistas viram-se obrigados a fazer concessões na política interna. E assim, no quadro das organizações operárias oficialmente toleradas (associações de produção), apesar de dependentes do governo, surgem as associações socialistas e republicanas ilegais.
A Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada sob a direcção de Karl Marx em 28 de Setembro de 1864, em Londres, a primeira ampla organização internacional do proletariado, encontrou um poderoso eco no operariado francês. Mas a fundação de secções da Internacional nos mais diversos lugares não conseguia alargar a influência da organização sobre o proletariado francês, que permanecia relativamente limitada tendo em vista as tarefas históricas que se lhe punham. É que o governo, através de perseguições e processos, conseguia desmantelar a organização nas suas partes essenciais.
Determinantes na classe operária francesa continuavam a ser os partidários de Blanqui e de Proudhon(11), assim como um jacobinismo renovado que procurava ligar as tradições da primeira Revolução Francesa com a luta contra o capital. Os Blanquistas caracterizavam-se por pretenderem conquistar o poder político com a ajuda de pequenas organizações armadas e por rejeitarem toda e qualquer organização das massas revolucionárias. Os Proudhonistas não tinham por objectivo o derrube do capitalismo, pois acreditavam que se derrubaria o domínio do grande capital pela realização de reformas pequeno-burguesas — por exemplo, a introdução de «bancos de troca» e de crédito sem juro. No fundo, o que faltava à classe operária francesa para ficar suficientemente armada para a batalha final contra a burguesia era a base teórica do Socialismo científico.
Em Maio de 1870, Napoleão III organizou um sufrágio nacional sobre a alteração de alguns artigos da Constituição. Posteriormente, este sufrágio veio a revelar-se um prelúdio para uma nova aventura bélica do regime bonapartista. Toda a imprensa europeia celebrou o resultado do sufrágio (mais ou menos 7,4 milhões de votos a favor e 1,6 milhões de votos contra) como uma vitória sobre a classe operária francesa. De facto, Napoleão III alcançara uma vitória sobre os operários, porque a classe operária fora a única a ver, desde o princípio, o que estava por detrás desta manobra.
A 19 de Julho de 1870 a França declarou guerra à Prússia. Motivo oficial: a recusa da Prússia em satisfazer a exigência francesa de uma compensação pela expansão da Prússia desde 1866. Mas as verdadeiras razões para a declaração da guerra estavam sobretudo nas crescentes dificuldades internas do regime bonapartista, particularmente a iminente bancarrota do Estado e o descontentamento das massas. A propósito do plano dos estrategos militares franceses de desorientarem o exército prussiano (que em tempo de paz se reduzia a um terço da sua força) com um ataque rapidamente executado Engels escreveu:
«A erupção súbita e impetuosa do sentimento nacional alemão fez malograr todos esses planos. Luís Napoleão não tinha o rei Guilherme, "Annexander"(12), pela frente, mas sim a nação alemã.»(13)
No seu escrito Primeira Comunicação sobre a Guerra Franco-Prussiana, Karl Marx afirmou:
«Seja qual for a evolução da guerra de Luís Napoleão Bonaparte com a Prússia, o dobrar de finados pelo Segundo Império já soou em Paris.»(14)
A sentença final sobre o futuro político do regime despótico de Napoleão III foi pronunciada pelo exército prussiano, que infligiu derrota sobre derrota às unidades francesas. Finalmente, depois da capitulação de Sedan, a 2 de Setembro de 1870, o próprio Bonaparte foi feito prisioneiro à frente de um grande exército.
A Imperatriz Eugenia, que assumira imediatamente a regência depois da prisão de Luís Napoleão, teve de fugir logo a 4 de Setembro para Inglaterra. No mesmo dia, sob a pressão das massas populares, foi proclamada a terceira república francesa. Formou-se ainda um «Governo de Defesa Nacional», que só muito dificilmente poderia negar o seu caracter burguês. Significativo foi que coubesse a Keratry(15), um partidário da Casa de Orleães, a comunicação oficial do governo.
A própria guerra tinha mudado de carácter após a queda do regime bonapartista. Deixara de ser uma aventura bélica de conquista de Napoleão III, por um lado, e uma guerra de defesa do povo alemão, por outro. Passara, entretanto, a ser uma guerra de rapina da burguesia alemã contra a República Francesa. Com esta mudança da situação houve também mudanças nas tarefas do proletariado. Da composição do «Governo de Defesa Nacional», constituído por Orleanistas e republicanos burgueses, deduzia-se facilmente que não se poderia esperar uma verdadeira defesa contra a camarilha militar prussiana. Quando o governo se viu perante a alternativa de armar o proletariado ou entregar a república francesa aos generais, optou pela segunda hipótese, transformando-se num «Governo de Traição Nacional». Já antes Marx e Engels tinham analisado o carácter contra-revolucionário deste governo e concluído que só a classe operária poderia assumir as tarefas de defesa nacional.
Depois do início do cerco de Paris pelos alemães, a 19 de Dezembro, os operários franceses conseguiram armar 200 novos batalhões da Guarda Nacional, não obstante a resistência do governo. Mas o comando supremo da Guarda Nacional estava ainda na mão do general reaccionário Trochu(16).
O medo que a burguesia tinha do seu povo era tão grande que o comando supremo da Guarda Nacional levou a cabo operações militares propositadamente planeadas para fracassarem com grandes perdas. O objectivo desta «defesa» era a sangria das massas revolucionárias, especialmente do proletariado armado da Guarda Nacional.
Quando, por fim, o «Governo de Defesa Nacional» começou a entabular abertamente com Bismarck as conversações sobre a capitulação os blanquistas organizaram duas tentativas de revolta que se malograram por insuficiente base de massas.
Depois da capitulação, a 28 de Fevereiro de 1871, e de ter sido assinado o armistício, a maior parte do exército francês foi desarmado. O acordo do armistício previa eleições para a Assembleia Nacional. Nessas eleições formou-se uma maioria monárquica. A Thiers, uma das figuras mais infames da política francesa do século XIX, foi confiada a chefia do governo recentemente formado.
O primeiro acto oficial deste governo foi a assinatura de um acordo de paz provisório, a 26 de Fevereiro, no qual foram fixadas as exigências rapaces da burguesia alemã: separação da Alsácia-Lorena do território francês e o pagamento de uma pesada indemnização de guerra. A burguesia francesa tinha considerado mais vantajoso perder a Alsácia-Lorena, que representava um importante potencial industrial, do que armar o proletariado parisiense — o que teria posto em perigo o seu próprio domínio. Entretanto, a situação interna agravou-se a olhos vistos quando o governo ordenou a colecta das rendas atrasadas e o pagamento imediato das letras expiradas. O resultado desta medida foi, por um lado, a ruína de inúmeros comerciantes e artesãos e, por outro, um enorme aumento do desemprego. Na Guarda Nacional(17), todavia, ninguém estava disposto a aceitar a traição nacional nem a permitir que se atirasse as dívidas de guerra para cima do proletariado e da pequena burguesia. A resposta imediata foi a formação de um comité central, no qual estava representada a esmagadora maioria dos batalhões da Guarda. Com a nomeação de um general reaccionário para seu comandante supremo, o governo procurou recuperar o domínio perdido sobre a Guarda. Mas as massas viram nesta tentativa do governo uma manobra contra-revolucionária. Em lugar desse general, as massas elegeram, para seu novo comandante, o italiano Giuseppe Garibaldi(18), um combatente pela liberdade. A proibição da imprensa democrática e a declaração de penas de morte sobre Blanqui e Flourens(19), chefes das revoltas de 31 de Outubro de 1870 e de 22 de Janeiro de 1871, constituíram uma nova tentativa do governo para quebrar o poder das massas revolucionárias. Mas também estas represálias e tentativas de intimidação falharam o alvo. E assim a reacção deitou mão do seu último recurso: desarmar a Guarda Nacional.
«Paris era o único obstáculo no caminho da conspiração contra-revolucionária. Paris tinha, portanto, de ser desarmada.»(20)
O próprio Thiers deu a ordem de, com a ajuda de antigos polícias bonapartistas e tropas do governo, se confiscar a artilharia da Guarda Nacional. Quando, na noite de 18 de Março de 1871, as tropas invadiram a cidade, depararam com forte resistência da Guarda Nacional. Além disso, grande parte das tropas do governo irmanou-se com o povo de Paris. Depois de fracassada esta acção, o governo e o clero fugiram para Versalhes. Entretanto, a resposta da Guarda Nacional limitou-se à ocupação de todos os edifícios do governo e da administração.
«A gloriosa revolução operária tomou posse incontestada de Paris. O comité central foi o seu governo provisório.»(21)
Numa proclamação do comité central da Guarda Nacional, de 18 de Março de 1871, diz-se:
«No meio das derrotas e da traição das classes dominantes, os proletários de Paris compreenderam que chegou a hora em que têm de salvar a situação, tomando nas suas mãos a direcção dos negócios públicos. [... ] Compreenderam que é seu dever supremo e seu direito absoluto tornarem-se senhores do seu próprio destino e tomarem o poder do governo.»
Logo no dia seguinte o comité central fixou um prazo para a eleição do Conselho da Comunidade de Paris, sublinhando assim o seu próprio carácter provisório. O comité central mostrou ser um verdadeiro governo popular com a série de medidas que tomou. Assim, por exemplo, numa resolução de 20 de Março de 1871, cortaram-se todos os ordenados dos funcionários de Estado. A soma de um milhão de francos obtida desta forma foi aplicada em 22 áreas da cidade para atenuar a miséria de sectores da população. O comité central agiu de igual modo ao abolir as rendas em atraso que não excedessem 250 francos e coincidentes com o período do cerco e, aos pequenos industriais, prolongou por seis meses o prazo de pagamento de juros de hipotecas e de letras expiradas.
O comité central teve de alterar a data das eleições, primeiramente marcadas para 22 de Março de 1871, porque alguns presidentes de câmaras dos bairros burgueses sabotaram os preparativos para as eleições. Graças à pressão decidida das massas populares, as eleições realizaram-se finalmente a 26 de Março de 1871. Dos 84 delegados eleitos, 68 pertenciam a diferentes grupos de esquerda; 16, à burguesia liberal. Dezassete delegados eram membros da Associação Internacional dos Trabalhadores e, entre estes, mais de dois terços eram partidários de Proudhon. A maioria, porém, era formada por partidários de Blanqui, os quais, embora se distinguissem pela sua coragem revolucionária, não eram capazes de uma verdadeira política proletária. Isto era, antes de mais, uma consequência da sua recusa da teoria marxista: a teoria do socialismo científico.
A 28 de Março de 1871 foi constituída e proclamada a Comuna de Paris, o primeiro Estado proletário do mundo.
Arthur Arnould, um membro da Comuna, descreveu assim este acontecimento histórico:
«Quando o comité central anunciou os nomes dos membros eleitos da Comuna; quando os canhões, de repente, dispararam as suas salvas, fazendo estremecer toda a cidade, saiu de 100 000 bocas um tal grito de júbilo, uma adesão tão unânime e tão notória à República e à Comuna, que ninguém que tenha participado nesta festa a poderá alguma vez esquecer, mesmo que vivesse séculos.»
Logo a 1 de Abril de 1871, pouco depois da Comuna ter reunido, os 16 deputados da burguesia abandonaram o Conselho. Os combates com as tropas do governo de Versailles, iniciados a 2 de Abril de 1871, originaram imediatamente tensões entre as fracções da Comuna. Quando, depois de uma surtida fracassada das tropas da Guarda Nacional, Flourens, membro da Comuna, o general Duval(22) e dois comandantes de batalhão foram executados, sem qualquer julgamento prévio, pelas tropas regimentais, quatro membros republicanos da Comuna abandonaram o Conselho.
«A Comuna não devia ser um corpo parlamentar, mas operante, executivo e legislativo ao mesmo tempo. A polícia, até aí instrumento do poder de Estado, foi imediatamente destituída de todos os seus atributos políticos e transformada num instrumento da Comuna, responsável e a todo o momento destituível. O mesmo se passou com os funcionários de todos os outros ramos da administração. A começar pelos membros da Comuna, o serviço público tinha de ser remunerado segundo os salários operários. [...] Uma vez eliminados o exército permanente e a polícia, instrumentos do poder material do antigo governo, a Comuna empenhou-se imediatamente em quebrar o instrumento de opressão espiritual, o poder dos padres; decretou a dissolução e a expropriação de todas as igrejas, desde que fossem corpos possuidores. [...] Todas as instituições de ensino foram abertas gratuitamente ao povo e, ao mesmo tempo, libertadas de todas as ingerências do Estado e da Igreja.»(23)
Também os juizes perderam a sua imunidade e foram colocados sob o controlo do povo, isto é, perderam os seus privilégios e passaram a ser destituíveis a todo o momento. Noutros decretos, as administrações e fábricas ficaram proibidas de proceder a quaisquer descontos dos salários e ordenados, prática comum nos anteriores governos burgueses que servira sempre para mascarar reduções de salários. Numa resolução dos membros da Comuna, de 20 de Abril de 1871, proibiu-se o trabalho nocturno dos oficiais padeiros.
A Comuna criou e pôs a trabalhar uma comissão para as fábricas que tinham sido abandonadas e paralisadas pelos capitalistas fugidos para Versalhes e outros lados. Esta comissão tinha de elaborar um plano para pôr essas fábricas em funcionamento por meio da «associação cooperativa dos operários». Por uma outra resolução da Comuna foram confiscadas as casas não habitadas e postas a disposição de habitantes sem tecto.
A 5 de Abril de 1871, a Comuna decidiu proceder à prisão de reféns, para evitar as execuções diárias de combatentes da Comuna capturados pelas tropas de Versalhes. Este decreto, contudo, só parcialmente foi executado. Mais valor simb6lico tiveram a queima pública da guilhotina e a destruição da coluna da vitória na Praça Vendome, o símbolo do chauvinismo e do militarismo.
Uma das medidas mais notáveis da Comuna foi a concretização da igualdade de direitos da mulher numa dimensão até aí desconhecida na história. Concedeu-se a cada mulher legal ou «ilegítima» de um combatente caído uma pensão de 600 francos. Do mesmo modo se atribuiu uma pensão a cada filho das viúvas, fosse legitimo ou ilegítimo. Esta igualdade real, concedida às mulheres durante os dias da Comuna, explica a grande participação das mulheres no trabalho e na defesa da Comuna. Muitas mulheres tinham reconhecido desde o início a importância da ditadura do proletariado para a sua emancipação política e social.
«A primeira tentativa da conspiração dos proprietários de escravos para submeterem Paris, que previa a ocupação desta pela Prússia, malogrou-se com a recusa de Bismarck. A segunda tentativa, a 18 de Março, terminou com a derrota do exército e a fuga do governo para Versalhes, para onde toda a máquina administrativa teve de o seguir. Sob a aparência de negociações de paz com Paris, Thiers ganhava agora tempo para preparar a guerra contra Paris.»(24)
Thiers pretendia atacar a Comuna num momento que a vitória lhe fosse absolutamente certa. Mas depois da fuga do governo traidor para Versalhes um tal projecto era inviável, porque, por um lado, a administração da cidade estava totalmente desorganizada e, por outro, o exército se encontrava não só num estado de absoluta resignação mas também numericamente muito fraco. «Ao mesmo tempo, as relações (de Thiers) com as províncias tornavam-se cada vez mais difíceis. Não chegou uma única mensagem de aprovação para animar Thiers e os seus fidalgotes.»(25) Consciente da dificuldade da sua situação, Thiers adoptou por isso mesmo, desde o princípio, uma táctica dupla para poder virar a situação a seu favor.
Por um lado, colaborava com a força prussiana de ocupação, sobretudo para conseguir vantagens militares sobre os proletários de Paris. Por outro, representava para o mundo uma comédia de conciliação que, como Marx observou, «tinha de servir mais do que um objectivo. Devia enganar as províncias, seduzir a classe média de Paris e, sobretudo, dar aos pretensos republicanos da Assembleia Nacional a oportunidade de ocultarem a sua traição contra Paris com a sua fé em Thiers». Para poder realizar o projecto contra-revolucionário da reacção contra o proletariado de Paris, Thiers enviou Jules Favre(26) e Pouyer-Quertier(27) a Frankfurt como plenipotenciários para o acordo definitivo de paz com a Prússia. De Bismarck receberam autorização para utilizar na luta contra Paris os prisioneiros do exército bonapartista, e ainda a promessa de apoio directo de tropas prussianas. Além disso, o pagamento da primeira prestação da indemnização de guerra foi suspensa até à derrota de Paris. Desta forma se unia a burguesia francesa com a alemã contra o proletariado revolucionário. A cumplicidade da reacção alemã e francesa opuseram August Bebel(28) e Wilhelm Liebknecht(29) a atitude internacionalista do proletariado alemão. Sublinharam a sua solidariedade com o proletariado parisiense e condenaram severamente tanto a anexação da Alsácia-Lorena como o apoio contra-revolucionário à reacção francesa.
As medidas da Comuna para a edificação de uma nova ordem social, já prejudicadas pelo facto de Paris ser uma cidade sitiada, foram ainda mais fortemente limitadas em consequência da pressão constante exercida pelas tropas de Versalhes.
Depois dos primeiros combates a 2 de Abril de 1871, as tropas de Versalhes conseguiram apoderar-se de uma passagem sobre o Sena, junto de Neuilly.
«Paris foi continuamente bombardeada, e precisamente pelas mesmas pessoas que tinham classificado o bombardeamento desta cidade pelos prussianos como um sacrilégio.»(30)
No entanto, o fogo constante da artilharia sobre a cidade não conseguia modificar a situação a favor das tropas de Versalhes, e muito menos quebrar o moral da população parisiense na sua justa luta. Uma tentativa das tropas governamentais de penetrarem no sul de Paris, a 12 de Abril, foi rechaçada pelo general Eudes(31) e as suas tropas. Esta correlação de forças, até então praticamente equilibrada, só se alterou quando os soldados franceses presos na Alemanha começaram a regressar a França e a engrossar as fileiras do exército de Versalhes. O comportamento de Thiers reflectiu fielmente esta alteração de forças. Recusou a oferta da Comuna para trocar Blanqui pelo bispo de Paris, preso como refém, como todo o seu séquito clerical. A sua linguagem, até então ambígua, passou a ameaças claras e brutais contra os revolucionários de Paris. A moção de um deputado da Assembleia Nacional, para se pôr fim ao combate contra a Comuna, foi recusada a 20 de Abril de 1871.
A camarilha de Versalhes mostrou finalmente o seu verdadeiro rosto a 3 de Maio de 1871, quando começou o assassínio em massa dos combatentes da Comuna capturados. Thiers, que com um descaramento inigualável difamara os membros da Comuna como «ralé, ladrões e assassinos», louvou o seu exército como «a maravilha do mundo e o mais belo exército que a França jamais teve» — um exército culpado de assassínio permanente.
Após a queda de alguns fortes, as tropas de Versailles conseguiram entrar na cidade a 21 de Maio de 1871. No entanto, os combatentes da Comuna não tiveram apenas que enfrentar as tropas invasoras, mas também os agentes da contra-revolução estrangeira. Um tal papel coube a Washburne(32), o embaixador americano. Através do seu secretário fez chegar à Comuna uma pretensa oferta de negociações da parte da Prússia. Pelo contrário, entre o círculo dos seus subordinados afirmou:
«Todos os que pertencem à Comuna e todos os seus simpatizantes morrerão.»(33)
Só dois dias depois, a 26 de Maio de 1871, se tornou evidente a manobra do embaixador dos Estados Unidos, quando o negociador da Comuna não foi recebido pelas autoridades prussianas. Mas esta manobra de diversão provocou uma desorientação de dois dias entre as forças revolucionárias de defesa.
Com o combate à volta de Montmarte, a 23 de Maio, começou um dos capítulos mais escuros da história francesa, escrito pela soldadesca de Thiers com o sangue dos combatentes da Comuna. MacMahon(34), comandante das tropas de Versailles, mandou avançar dois corpos completos, isto é, 200 00 homens (!), sobre a posição dos combatentes da Comuna, cujo número não chegava a 200. Depois deste superpotencial ter conseguido, com apoio da artilharia, tomar a posição, todos os sobreviventes, incluindo mulheres e crianças, foram fuzilados. Mas isto era apenas o começo das carnificinas de Paris. Após a queda de cada barricada, havia sempre um banho de sangue, bem mais cruel que o assassínio em massa após a derrota da revolta de Junho de 1848. As chamadas revistas a casas particulares, executadas pelas tropas de Versailles, acabavam sempre em assassínios sangrentos e selvagens.
«Quando um dos de Versailles fita alguém, já se sabe que é uma pessoa morta. Quando passa revista a uma casa, passa todos pelas armas. [...] O Paris dos de Versailles já não tem um aspecto civilizado. O medo, a ira, a estupidez selvagem e animal sufocam todo e qualquer sentimento humano. [...] A vida de uma cidadão não vale um pataco. Por causa de uma exclamação, de uma palavra, é-se preso e fuzilado.»(35)
A 25 de Maio de 1871 restavam só dois bairros de Paris completamente controlados pela Comuna. Enquanto homens e mulheres defendiam abnegadamente os seus últimos redutos contra as tropas do governo, a maior parte destas ocupava-se apenas a fuzilar prisioneiros. A partir da tarde de 27 de Maio de 1871, 5000 soldados das tropas de Versalhes sitiaram o cemitério Pere la Chaise, último refúgio dos 200 combatentes que restavam à Comuna. Pela última vez se ergueram os heróis do proletariado sob a bandeira vermelha, até encontrarem todos a morte em desesperada luta de homem contra homem. No dia seguinte, a 28 de Maio de 1871, MacMahon anunciava o fim das acções de luta.
«Terminada a luta, o exército transformou-se num monstruoso pelotão de fuzilamento. [...] Havia tantas vítimas que os soldados cansados já tinham de encostar as carabinas aos condenados. No terraço havia pedaços de cérebros humanos por todo o lado. Os assassinos chafurdavam num pântano de sangue.»(36)
O assassínio em massa praticado contra a população de Paris continuou sem diminuir de violência, quer ela tivesse participado activamente nas fileiras da Comuna ou não. Trinta mil habitantes foram assassinados pela soldadesca enfurecida e à solta, que o «partido da ordem», regressado ao poder, ousava classificar como «bravos soldados». Outros tantos, pelo menos, foram condenadas a penas de cadeia e deportação. Mesmo anos depois dos acontecimentos, a justiça francesa de classe ainda pronunciava sentenças de morte contra membros da Comuna. Em Junho de 1871, o jornal Tagwacht (Guarda do Dia), o órgão da Internacional em Berna, escrevia:
«A forma presente da Revolução, a Comuna, cai como um mártir, mas os burgueses não poderão matar a ideia revolucionária. A silhueta moribunda da Comuna inspira medo e horror apenas aos ignorantes. O espirito revolucionário não pode ser morto. Troça da ira do tirano. E se o exército abastardado triunfa agora sobre os cadáveres dos republicanos sociais e das ruínas fumegantes de Paris, para dar um pouco de sossego à antiga sociedade amedrontada, isto não passa de um breve adiamento concedido à opressão e à imoralidade. O que agora acontece é apenas um prenúncio das tempestades que o futuro traz no seu seio. [...] A burguesia regala-se agora em loucos bacanais com a derrota momentânea da Comuna, até que os trovões de uma nova e mais poderosa revolução a afundem na noite eterna.»
Apesar da divisão da Comuna de Paris em Proudhonistas e Blanquistas, e dos erros práticos resultantes das debilidades teóricas de ambas as correntes, alguns combatentes, que defenderam energicamente e com uma capacidade inegável os interesses das classes trabalhadoras, merecem uma menção especial.
Eugene Varlin(37), encadernador e membro da Internacional, era já durante o Segundo Império um dos melhores dirigentes do movimento socialista. Durante o tempo da Comuna foi membro da comissão militar e das finanças. Foi assassinado com bestialidade pelas tropas de Versalhes, a 28 de Maio de 1871, quando combatia na primeira linha dos defensores da Paris revolucionária.
Eugene Pettier(38), tal como Varlin membro da secção parisiense da Internacional, lutara já nas barricadas da revolução de 1848. Trabalhou activamente, como membro da Comuna, na comissão para ajuda à população pobre e defendeu a Comuna contra a contra-revolução até à derrota final. Na fuga para a Bélgica compôs o texto de A Internacional, a canção de combate do proletariado mundial.
Um dos melhores dirigentes da Comuna foi Frankel(39), germano-húngaro, que esteve sempre em íntimo contacto com Karl Marx. Teve um papel importantíssimo na organização das associações sindicais. Apesar de gravíssimos ferimentos, recebidos na defesa de Paris, conseguiu fugir para o estrangeiro. A reacção condenou-o á morte a revelia.
O nome do revolucionário polaco Jaroslav Dombrowski(40) também esta intimamente ligado a Comuna de Paris. Ainda muito novo participou na luta contra o tsarismo. Como verdadeiro internacionalista que era, participou na luta de Garibaldi pela libertação da Itália. Durante os dias da Comuna foi nomeado, primeiramente general da Guarda Nacional, depois comandante supremo de todas as forças armadas revolucionárias da defesa de Paris. Temos ainda que mencionar a grande revolucionária russa Elisaveta Dmitrieva, que de Marx recebeu a tarefa de participar na luta do proletariado de Paris. Sob a sua direcção constituíram por toda a cidade de Paris comités de mulheres, a quem coube uma importante tarefa na construção do Estado proletário. À frente de um batalhão feminino, lutou heroicamente contra os carrascos da Comuna até à derrota final.
«Os membros da Comuna dividiam-se numa maioria, os Blanquistas [...] e uma minoria: os membros da Associação Internacional dos Trabalhadores, entre os quais predominavam os partidários da escola socialista proudhonista. [...] [...] Só alguns (Blanquistas) tinham conseguido alcançar uma maior clareza de princípios, devido a influência de Vaillant(41) que conhecia o socialismo científico alemão. Assim se explica que, no campo económico, não tivesse sido feita muita coisa que, em nosso entender, a Comuna deveria ter feito. O mais difícil de compreender é, no entanto, o respeito sagrado com que se parou frente aos portões do Banco de França. O banco nas mãos da Comuna teria tido muito mais valor que 10 000 reféns. Significava a pressão de toda a burguesia francesa sobre o governo de Versailles no interesse da paz com a Comuna.»(42)
A tomada do Banco de França pela Comuna teria, na verdade, significado não só uma fiança contra o governo de Versalhes, mas além disso ainda uma fonte de auxílio da Revolução. A Comuna deixou-se arrastar pela ilusão de que o facto de não tocar no banco seria uma garantia para a neutralidade de uma parte da burguesia. O facto de o banco ter posto à disposição da contra-revolução 247 milhões de francos, contra os 16 milhões que a Comuna recebeu, prova quão errónea era essa ideia. Sobre este erro, observou Lénine no seu escrito Sobre a Comuna de Paris:
«O proletariado parou a meio caminho: em vez de proceder à "expropriação dos expropriadores", deixou-se levar por sonhos sobre o estabelecimento de uma justiça suprema. [...] Não se apoderou de instituições como os bancos; as teorias proudhonistas da "troca justa" dominavam ainda entre os socialistas.»(43)
Numa carta de 18 de Abril de 1871, Marx escreveu ao seu amigo Kugelmann:
«Quando Vinoy(44), primeiro, e em seguida a parte reaccionária da própria Guarda Nacional abandonaram o campo, urgia marchar imediatamente sobre Versalhes. Deixou-se fugir o momento exacto por escrúpulos de consciência. Não se queria iniciar a guerra civil, como se Thiers, o (anão mau), não tivesse já aberto a guerra civil ao tentar desarmar Paris!»
Nessa mesma carta Marx diz que o comité central entregara o poder cedo de mais. A entrega do poder ao Conselho da Comuna, ao fim de apenas dez dias de domínio proletário, era compreensível à luz da situação concreta de então. É que parte das organizações operárias ainda hesitava em apoiar o comité central. Mas a ditadura do proletariado ainda não estava, nessa altura, tão consolidada que se justificasse anunciar eleições.
A Comuna não reconhecera, senão insuficientemente, a importância da aliança com os camponeses. Essa aliança teria sido de grande significado para a consolidação do domínio proletário. Apesar disso, houve, na Comuna, começos de realização desta aliança. Um manifesto redigido com este fim, onde se exprimiam os interesses comuns da classe operária e dos camponeses, fora enviada para a província por meio de balões, uma vez que todas as ligações terrestres estavam bloqueadas por tropas prussianas e de Versalhes. A concretização da aliança entre todas as forças anticapitalistas da nação fracassou não só pelas ligações interrompidas, mas sobretudo pela falta de um partido revolucionário uno. A contra-revolução vira esta falta desde o princípio. Por isso conseguiu, durante o mês de Abril, separar os republicanos pequeno-burgueses da Comuna e atraí-los para o seu lado
Alguns meses antes da proclamação da Comuna, em Outubro de 1870, Marx avisara os operários de Paris do perigo de derrubarem o governo. A sua apreciação pessimista da situação confirmou-se, como se sabe. No entanto, depois da Revolução de Março de 1871, ele próprio pertenceu ao número dos partidários mais entusiastas da Comuna. Não se tratava aqui de uma solidariedade irreflectida. É que Marx reconhecera no Estado dos operários parisienses um novo tipo de Estado. No momento em que o poder passou para a classe operária, nasceu um tipo completamente novo de Estado. Marx e Engels, autores do Manifesto Comunista, escrito em 1848, disseram no prefácio à edição de 1872 do Manifesto:
«[...] A Comuna, nomeadamente, forneceu a prova de que "a classe operária não pode limitar-se a tomar conta da máquina de Estado que encontra montada e a pô-la em funcionamento para atingir os seus objectivos próprios".»(45)
Ainda durante a Comuna de Paris, a 12 de Abril de 1871, Marx escreveu a Kugelmann:
«Se procurares no último capítulo do meu 18 do Brumário, verás que digo ser a próxima tentativa da revolução francesa, não, como até aqui, a passagem da máquina burocrático-militar de umas mãos para outras, mas a sua destruição. Esta é a condição prévia de toda a verdadeira revolução popular no Continente. Esta é também a tentativa dos nossos heróicos camaradas parisienses do Partido.»
Lénine observou a esse respeito:
«Ele (Marx) viu no movimento revolucionário de massas, embora este não atingisse o seu objectivo, um certo passo em frente da revolução mundial, um passo prático mais importante do que centenas de programas e considerações.»(46)
Marx e Engels generalizaram as experiências da Comuna, e com essa generalização o movimento proletário de todo o mundo deu um poderoso passo em frente. Particularmente importante foi o reconhecimento de que a forma de Estado do domínio proletário é a ditadura do proletariado. Precisamente esta designação — «ditadura do proletariado» — serve a crítica burguesa para afrontar o pretenso carácter totalitário do socialismo e do comunismo. No entanto, ao fazê-lo, essa crítica esvazia este conceito de todo o seu verdadeiro conteúdo e explora sub-repticiamente a experiência que o povo tem das ditaduras sangrentas e terroristas do capital. No seu livro O Estado e a Revolução, Lénine demonstra que esta crítica, afinal, não tem nada a ver com o assunto em si. Demonstra que a ditadura do proletariado é uma democracia muito mais completa do que qualquer democracia burguesa que se possa imaginar. Escreveu Lénine, referindo-se à Comuna:
«[...] a democracia levada à prática tão completa e consequentemente deixa de ser uma democracia burguesa e transforma-se na democracia proletária, deixa de ser um Estado (= uma força especial para oprimir uma classe) e passa a ser uma coisa que já não é verdadeiramente um Estado. Continua a ser necessário reprimir a burguesia e a sua resistência. Para a Comuna isto era muito particularmente necessário, e um dos motivos da sua derrota foi não o ter feito com a decisão suficiente. Mas o órgão de repressão já é aqui a maioria, e não, como até então sempre acontecera, a minoria da população.»(47)
Lénine demonstra neste livro que só se pode falar de democracia na verdadeira acepção da palavra, na acepção do domínio popular, quando, como disse Marx, «o proletariado organizado como classe dominante» detém o poder.
Ao reconhecimento de que a Comuna representava uma nova qualidade do Estado, Marx ligou, simultaneamente, uma crítica radical ao parlamentarismo burguês, demonstrando a superioridade da representação popular no Estado proletário. Marx escreveu:
«Em vez de servir para decidir, de três em três anos ou de seis em seis, qual o membro da classe dominante que vai representar e reprimir o povo no parlamento, o sufrágio universal deveria servir o povo constituído em comunas como o voto individual serve a todos os outros patrões para escolher os operários, os capatazes e os guarda-livros nos seus negócios.»
(...)
Notas de rodapé:
(1) Os Legitimistas eram partidários da casa real «legitima», a Casa de Bourbon. Eram sobretudo latifundiários (retornar ao texto)
(2) Os partidários de Luís Filipe, duque de Orleães e mais tarde rei de França, eram designados como orleanistas. Eram banqueiros, reis da Bolsa e dos caminhos-de-ferro e proprietários de minas. (retornar ao texto)
(3) Jacques Lafitte (1767-1844), banqueiro e político francês; orleanista; representante da aristocracia financeira francesa. (retornar ao texto)
(4) Louis-Auguste Blanqui (1805-1881), revolucionário francês; comunista utópico; organizador de várias associações secretas e insurreições revolucionárias; passou 36 anos na prisão. (retornar ao texto)
(5) Marx-Engels, Werke, t. 7, p. 15. (retornar ao texto)
(6) Idem, p. 16. (retornar ao texto)
(7) Louis-Eugene Cavaignac (1802-1857), general e político francês; republicano burguês; foi um dos repressores da revolta de Junho de 1848; foi primeiro-ministro entre Junho e Dezembro de 1848. (retornar ao texto)
(8) Louis-Adolphe Thiers (1797-1877), historiador e homem de Estado francês; primeiro-ministro em 1836 e 1840; «carrasco da Comuna de Paris»; presidente da República de 1871 a 1873. (retornar ao texto)
(9) Marx-Engels, Werke, t. 17, pp. 337 e segs. (retornar ao texto)
(10) 1854-1856: participação na Guerra da Crimeia contra a Rússia; 1858: guerra contra a Áustria pela unificação da Itália; 1860: guerra colonial contra a China, ao lado da Inglaterra; 1861: expedição militar na Síria; 1861-1867: aventura mexicana. (retornar ao texto)
(11) Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), publicista francês; sociólogo e economista; ideólogo da pequena burguesia; um dos fundadores do anarquismo. (retornar ao texto)
(12) Ou, em português, Anexandre. Combinação irónica, usada por Marx e Engels a propósito de Guilherme I da Prússia, das palavras anexação (Annexion) e Alexandre (o Grande). (Nota das Edições «Avante!».) (retornar ao texto)
(13) Marx-Engels, Werke, t. 17, p. 12. (retornar ao texto)
(14) Idem, p. 5 (retornar ao texto)
(15) Emile Keratry (1832-1904), conde; político francês reaccionário; orleanista; de Setembro a Outubro de 1870, Prefeito da Policia de Paris; contribuiu em grande escala para a derrota da Comuna em Toulouse. (retornar ao texto)
(16) Louis-Jules Trochu (1815-1896), general e político francês; orleanista. (retornar ao texto)
(17) Depois do desarmamento quase total do exército regular, a Guarda Nacional tornou-se um factor militar e, sobretudo, político determinante em França, nos anos 1870-1871. Particularmente os 200 novos batalhões, graças ao seu carácter proletário, transformaram a função da Guarda: de instrumento de opressão da burguesia, passou a ser o órgão de execução da vontade do povo. (retornar ao texto)
(18) Giuseppe Garibaldi (1807-1882), revolucionário italiano; dirigente do movimento de libertação nacional da Itália; durante a Guerra Franco-Prussiana, comandou o Exército dos Vosges. formado pela Guarda Nacional e por voluntários estrangeiros. (retornar ao texto)
(19) Gustave Flourens (1838-1871), investigador naturalista francês; revolucionário; blanquista; membro da Comuna; assassinado pelas tropas contra-revolucionárias de Thiers. (retornar ao texto)
(20) Marx-Engels, Werke, t. 17, p. 328. (retornar ao texto)
(21) Idem, p. 330.(retornar ao texto)
(22) Emile-Victor Duval (1818-1871), operário; membro da Associação Internacional dos Trabalhadores; membro da Comuna; general da Guarda Nacional. (retornar ao texto)
(23) Marx-Engels, Werke, t. 17, p. 339. (retornar ao texto)
(24) Marx-Engels, Werke, t. 17, p. 340. (retornar ao texto)
(25) Idem, p. 342. (retornar ao texto)
(26) Claude-Gabriel-Jules Favre (1809-1880), advogado e político francês; republicano burguês; ministro dos Negócios Estrangeiros do chamado «Governo de Defesa Nacional»; «carrasco da Comuna». (retornar ao texto)
(27) Augustin-Thomas Pouyer-Quertier (1820-1891), fabricante e político; ministro das Finanças de 1871 a 1872. (retornar ao texto)
(28) August Bebel (1840-1913), marxista; co-fundador e um dos mais importantes dirigentes da Social-Democracia alemã; amigo e discípulo de Marx e Engels. (retornar ao texto)
(29) Wilhelm Liebknecht (1826-1900), marxista; co-fundador e um dos mais importantes dirigentes da Social-Democracia alemã; membro da Associação Internacional dos Trabalhadores; amigo de Marx e Engels. (retornar ao texto)
(30) Marx-Engels, Werke, t. 17, p. 620. (retornar ao texto)
(31) Emile Eudes (1843-1888), revolucionário; blanquista; membro e general da Comuna; emigrou para a Suíça, mais tarde para Inglaterra; condenado à morte à revelia. (retornar ao texto)
(32) Elihu Benjamin Washburne (1816-1887), político e diplomata americano; membro do Partido Republicano; entre 1869 e 1871, embaixador americano em Paris; inimigo da Comuna. (retornar ao texto)
(33) Citado de: Literaturnaja Gaseta, 17 de Março de 1951. (retornar ao texto)
(34) Marie-Edme-Patrice-Maurice MacMahon (1808-1893), conde; duque de Magenta; militar e político reaccionário; bonapartista; comandante supremo do Exército de Versalhes; «carrasco da Comuna de Paris»; presidente da Terceira República. (retornar ao texto)
(35) Lissagaray, História da Comuna de 1871, Paris (retornar ao texto)
(36) Lissagary, História da Comuna de 1871, Paris. (retornar ao texto)
(37) Louis-Eugene Varlin (1839-1871), encadernador; proudhonista de esquerda; dirigente da secção de Paris da Internacional; membro do comité central da Guarda Nacional e da Comuna de Paris; fuzilado por soldados da contra-revolução, a 28 de Maio de 1871. (retornar ao texto)
(38) Eugene Pottier (1816-1887), membro da secção de Paris da Internacional; membro da Comuna. (retornar ao texto)
(39) Leo Frankel (1844-1896), ourives; representante do movimento operário húngaro internacional; membro da Comuna. (retornar ao texto)
(40) Jaroslav Dombroyski (1836-1871), democrata revolucionário polaco; a partir de Maio de 1871, comandante supremo das Forças Armadas da Comuna de Paris. (retornar ao texto)
(41) Edouard Vaillant (1840-1914), socialista; blanquista; membro da Comuna e do Conselho Geral da Internacional; co-fundador do Partido Socialista de França. (retornar ao texto)
(42) Marx-Engels, Werke, t. 17, p. 662. (retornar ao texto)
(43) V. I. Lénine, A Comuna de Paris, Edições «Avante!», 1974, p. 64. (retornar ao texto)
(44) Joseph Vinoy (1800-1880), general francês; bonapartista; participou na guerra Franco-Prussiana; «carrasco da Comuna ». (retornar ao texto)
(45) Marx-Engels, Manifesto do Partido Comunista, Edições «Avante!», Lisboa, 1975, p. 30. (retornar ao texto)
(46) V. I. Lénine, Werke in 3 Btinden (Obras Escolhidas em 3 Volumes), vol. 2, Berlim, 1967, p. 347 (retornar ao texto)
(47) V. I. Lénine, Werke in 3 Btinden (Obras Escolhidas em 3 Volumes), vol. 2, Berlim, 1967, pp. 352 e segs. (retornar ao texto)
Inclusão | 29/07/2018 |