Libertação Gay: Uma Perspectiva Socialista

Kipp Dawson

Junho de 1975


Primeira Edição: Este panfleto foi publicado pela primeira vez na edição de junho de 1975 do jornal Young Socialist, o veículo mensal da Young Socialist Alliance, a qual cedeu permissão para sua reimpressão. Kipp Dawson foi a candidata do Partido Socialista dos Trabalhadores ao Senado dos EUA pelo estado de Nova York, em 1970. Posteriormente, fez parte da organização pró-aborto Women's National Abortion Action Coalition (WONAAC).
Fonte: Gay Liberation: A Socialist Perspective, Kipp Dawson, 1975; https://www.marxists.org/subject/lgbtq/pamphlets/Gay%20Liberation-Kipp%20Dawson.pdf
Tradução: Leonardo Gomes
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Fernando A. S. Araújo.
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Ao longo do ano de 1970, milhões de pessoas participaram de protestos nos Estados Unidos. A maioria deles exigia o fim da guerra no Sudeste Asiático. Outras manifestações exigiam direitos amplos às mulheres e o fim da opressão a negros, porto-riquenhos e mexicanos.

Dentre aqueles que se rebelaram, um grupo se destacou pelo ineditismo do orgulho e da unidade que demonstrava e pela coragem necessária para sequer apoiar a causa.

Em 28 de junho de 1970, milhares de pessoas se reuniram para uma marcha em Greenwich Village, na cidade de Nova York, durante a primeira comemoração do Dia de Libertação da Christopher Street. Cada um dos manifestantes teve de considerar diversos fatores antes de decidir participar, uma vez que se tratava de uma marcha pelos direitos homossexuais, o primeiro grande protesto do país pela libertação gay.

O panfleto oficial distribuído aos participantes dizia:

“Bem-vindos à comemoração do primeiro aniversário do Movimento de Libertação Gay. Apesar das diferenças políticas e sociais que possamos ter, nós estamos unidos neste propósito. Pela primeira vez na história, estamos reunidos como a Comunidade Homossexual. (…) Nós temos orgulho da nossa homossexualidade. Ninguém pode nos convencer do contrário. (…) Nós estamos participando do evento Gay mais importante da história”.

A maioria dos manifestantes sabia que aparecer na televisão, ainda que muito rapidamente, poderia significar a destruição de uma imagem “hétero” cuidadosamente cultivada. E sabiam que isso, por sua vez, poderia levá-los a perder o emprego, a casa, os amigos, a custódia dos filhos e os laços familiares. Sua vida privada havia feito deles criminosos, e a divulgação de sua opção acerca de quem e como amar poderia torná-los párias. Eram exemplos vivos da hipocrisia do mito da democracia americana.

Da autodepreciação à autoconfiança

Era uma nova geração de homossexuais. Ao longo dos séculos, com raras interrupções, os homossexuais por toda parte foram forçados à humilhação e à autodepreciação, a viver consumidos pela vergonha e pelo medo, escondendo sua sexualidade e seu estilo de vida do resto do mundo. A maioria dos homossexuais, assim como dos heterossexuais, aceitava a mitologia e a pseudociência religiosas, que aplicavam o rótulo de “doente” a qualquer um que se desviasse das normas da monogamia heterossexual – com vitupério especial reservado aos homossexuais.

Na década de 1960, conforme outros grupos oprimidos insurgiam, exigiam seus direitos e proclamavam sua dignidade humana, os mitos que pesavam tão fortemente sobre as costas dos homossexuais começaram a se enfraquecer. Os negros foram os primeiros, quando, nos anos 1950, ergueram-se contra as instituições que se colocavam entre eles e a liberdade, quando declararam orgulho e força na própria Negritude, retratada pela sociedade como marca de inferioridade.

A determinação heroica dos movimentos de resistência vietnamitas e os grandes protestos do movimento antiguerra neste país demonstraram a milhões de pessoas o poder de um povo que se une pelos seus ideais.

O emergente movimento de libertação feminina, assim como a luta racial, possibilitou que milhares de pessoas transformassem uma autoimagem degradante, baseada apenas em sua raça ou em seu sexo, em orgulho, sacudindo a “moralidade” hipócrita, há tanto forçada na mentalidade coletiva.

As grandes greves e manifestações de estudantes secundaristas e universitários estimularam toda uma geração a descobrir seu direito de controlar as instituições que dominavam suas vidas.

Muitos homossexuais – alguns abertamente gays, a maioria, não – haviam colaborado na construção de cada um desses movimentos e participado de suas atividades. Assim como toda a sua geração, os jovens homossexuais aprendiam novas formas de enxergar o mundo. Com o questionamento da legitimidade de outras normas sociais e com a vivência do poder que emana de grandes grupos unidos na luta pelos seus direitos e sua dignidade, os jovens homossexuais se inspiraram a explorar, expôr e lutar contra sua própria opressão.

Séculos de opressão

A maioria das crianças aprende ao longo da vida que o sexo é algo sujo e que a homossexualidade é algo ainda mais doentio. Às crianças foi ensinado que os únicos seres humanos normais e saudáveis são os homens e mulheres que se casam com membros do sexo oposto e geram herdeiros, os quais farão o mesmo.

Das frequentes piadas de “bicha” à exclusão dos mercados de trabalho e imobiliário, os homossexuais sofrem uma variedade de discriminações e humilhações que os levam, em sua maioria, a uma condição de clandestinidade amedrontada e degradante. A seguir, alguns exemplos de discriminações sofridas atualmente por homossexuais nos Estados Unidos:

Sua sexualidade é especificamente ilegal na maioria dos estados. Com exceção de Illinois, Connecticut, Havaí, Oregon, Delaware, Texas e, a partir de 1975, Dakota do Norte e Califórnia, leis estaduais por todo o país proíbem atos homossexuais, mesmo com consentimento mútuo entre adultos. As punições por atos homossexuais variam bastante, dependendo do estado, mas leis determinando penas de dez ou mais anos de reclusão não são incomuns.

Essas leis não são apenas ineficientes na prevenção do “crime” do amor homossexual, cometido por milhões de americanos, mas também estimulam outros crimes reais, como a chantagem a homossexuais. Além disso, por conta da dificuldade de aplicar tais leis e pelo espaço que dão para extorsões lucrativas por parte de policiais corruptos, alguns departamentos de polícia desenvolvem políticas baseadas em armadilhas, nas quais policiais vestidos à paisana seduzem homossexuais e os levam a cometer atos “ilegais”.

Independentemente da dedicação com a qual são aplicadas, a existência de leis sexuais representa uma ameaça constante e serve de sustentação para a discriminação generalizada sofrida pelos homossexuais.

Muitas empresas excluem os homossexuais. Apesar de algumas vitórias animadoras por parte de um pequeno número de indivíduos, a maioria dos locais de trabalho exclui os homossexuais assumidos ou presumidos. Sendo assim, para conseguirem um emprego, é necessário que escondam sua sexualidade e se submetam a viver com o medo constante de serem “descobertos” e, consequentemente, demitidos, o que ainda limitaria a possibilidade de encontrarem um novo emprego.

A maioria dos senhorios não aceita locatários homossexuais; os que aceitam geralmente cobram uma taxa extra. Até mesmo na suposta privacidade de suas casas ou seus apartamentos, a maioria dos homossexuais precisa tomar uma série de precauções para esconder sua sexualidade dos vizinhos e dos senhorios, movidos pelo medo de perderem seus lares. Para os poucos abastados, há “guetos gays” em várias cidades, onde os homossexuais podem viver abertamente – e pagar aluguéis mais caros pelo privilégio.

Homossexuais sofrem segregação, agressões e humilhações nas instituições e nas Forças Armadas. Nas prisões, nos hospitais psiquiátricos e nas escolas, os homossexuais assumidos ou presumidos são frequentemente segregados, isolados, inferiorizados e até agredidos fisicamente por quem está no comando. Os homens que não são aceitos ou que são dispensados pelas Forças Armadas por causa de sua sexualidade encontrarão inúmeras barreias ao longo da vida, associadas à sua classificação militar.
E o sofrimento da autodepreciação e do medo estão sempre presentes, a cada minuto do dia. A maioria dos homossexuais consegue contornar os obstáculos legais impostos à sua sobrevivência. Porém, para isso, é necessário mergulhar na mais profunda clandestinidade. Assim como os heterossexuais, os homossexuais foram dedicadamente treinados para encarar a homossexualidade com desprezo. Para a maioria dos homossexuais, esse sentimento permanece e, com frequência, se intensifica, conforme o medo da exposição os leva a uma clandestinidade cada vez mais profunda.

Algumas conquistas iniciais

Um pequeno número de homens e mulheres engajados vem trabalhando ao longo dos anos, na intensão de melhorar a vida dos homossexuais. Com a incorporação dos gays mais jovens e militantes e com o início da unificação das lutas por alguns direitos básicos, os homossexuais obtiveram algumas conquistas.

Leis contra a sodomia já foram rejeitadas em dez estados, dentre elas os famosos estatutos da Califórnia, que valeram por 103 anos e puniam o comportamento homossexual com penas que chegavam à prisão perpétua e à castração, em alguns casos. Nos tribunais, alguns recursos relativos a casos específicos de discriminação no trabalho foram vitoriosos.

Além disso, em dezembro de 1973, a Associação Americana de Psiquiatria, em resposta a uma longa campanha interna pelos direitos gays, votou pela suavização de sua política tradicional que determinava que a homossexualidade era um transtorno psiquiátrico, o que foi uma importante vitória simbólica.

Ainda que os defensores dos direitos humanos dos homossexuais tenham obtido essas conquistas iniciais, o caminho rumo à vitória plena está longe de ser suave. O movimento de libertação gay se deparou com alguns obstáculos enormes e bastante sólidos.

O maior deles é a resistência das instituições desta sociedade e dos governos locais, estaduais e nacional às mudanças exigidas pelos defensores dos direitos gays.

Há um outro obstáculo, relacionado ao citado acima, que é menos óbvio e, por isso, mais nocivo: as ilusões que os políticos dos dois partidos capitalistas tentam manter.

Alguns democratas e republicanos liberais trabalham diligentemente no esforço de convencer o povo de que as repostas para os problemas enfrentados pelos homossexuais (e todos os oprimidos) podem se apoiar na confiança de que serão realizadas reformas lentas e graduais por meio do sistema capitalista e seus políticos.

Ainda que seja possível forçar os governantes capitalistas a realizarem algumas reformas importantes – e algumas já foram conquistadas –, nenhuma melhoria básica na vida das pessoas deste país foi conquistada através da confiança na boa vontade de políticos capitalistas.

As exigências e os objetivos do movimento de libertação gay são a obtenção de direitos democráticos básicos. Heterossexuais, assim como homossexuais, foram e continuarão sendo conclamados a apoiar essa luta. Abandonar o esforço de educar e mobilizar o apoio da massa em nome de políticos liberais que agem “nos bastidores” é se aproximar da mesma traição sofrida pelos abolicionistas gays que apoiaram George McGovern, quando, na convenção de 1972 do Partido Democrata, ele retirou seu “apoio” aos direitos dos homossexuais.

Os liberais do Partido Democrata que cortejam os liberacionistas gays e outros ativistas procuram manter a visão do povo limitada ao que é possível dentro da estrutura do capitalismo. É fundamental para o capitalismo que o pequeno número de pessoas que controla as riquezas e os meios de produção de mais riquezas detenha o poder de organizar as vidas de todos nós da forma que mais os beneficie. E é fundamental para a sobrevivência do capitalismo “manter as pessoas em seus devidos lugares”, submissas, aceitando o que lhes é concedido.

As ideias e superstições reacionárias – tabus sexuais, religião, patriotismo ufanista – são estimuladas pelos governantes para promover a fé nas instituições corruptas da sociedade capitalista.

Portanto, é estranho ao capitalismo se ver obrigado a lidar com um grande número de pessoas, inclusive praticamente toda uma geração, que rejeita suas regras; que busca construir mundo novo, onde os seres humanos sejam livres para viver plenamente e sob seu próprio arbítrio; que rejeita a autodepreciação e a submissão e luta por seus direitos. Mas isso é apenas um ponto inicial do que vem acontecendo.

O movimento de libertação gay se une à força e ao entusiasmo da atual radicalização da juventude por todo o mundo.

Ao expôr as crueldades e irracionalidades da opressão aos homossexuais, o movimento de libertação gay revela quão profunda e destrutivamente as instituições capitalistas interferem na vida das pessoas.

Ao mesmo tempo, aqueles que pretendem conquistar direitos plenos para as pessoas homossexuais desempenham um papel fundamental na luta pela mudança da sociedade como um todo. O cerne do movimento de libertação gay é a luta pela dignidade plena para todos os seres humanos, independentemente de sua orientação sexual. A história e a experiência da nossa própria geração têm demonstrado que essa forma de dignidade humana, livre de todo preconceito, não é possível sem que se elimine o capitalismo – sem uma revolução socialista.

Aqui se faz necessário observar que algumas pessoas que se dizem socialistas ou comunistas se posicionaram do lado errado da luta pela libertação gay. Destacam-se os partidos pró-Moscou e pró-Pequim ao redor do mundo. Na própria União Soviética, por exemplo, a homossexualidade é criminalizada e punida. A mesma atitude se reflete no Partido Comunista dos Estados Unidos, na sua ala jovem, a Young Workers Liberation League, e em vários grupos maoistas, como a União Revolucionária.

Esses partidos, assim como as burocracias soviética, chinesa e da Europa Oriental que eles representam, devem ser considerados adversários da luta pela libertação gay e da maioria das lutas de libertação ao redor do mundo. Em vez de trabalharem para construir a liberdade socialista nos países em que a classe trabalhadora detém o poder e de colaborarem para a disseminação da revolução socialista em todo o mundo, esses burocratas agem como uma casta de parasitas que impede o progresso nos países que já aboliram o capitalismo.

Infelizmente, Cuba, um estado operário que não é governado por uma casta burocrática corrupta, também adotou a noção equivocada de que a homossexualidade é uma “doença”. Para que o Estado cubano siga rumo à democracia operária em todas as esferas da vida, suas lideranças devem se espelhar no exemplo dos primeiros anos da Revolução Russa – não nas políticas reacionárias do atual regime soviético.

O caminho socialista rumo à vitória

A Revolução Russa de 1917 mostrou o caminho a ser seguido por todas as pessoas que lutam pelos direitos humanos. Dentre os seus primeiros atos, está a abolição das leis czaristas que penalizavam os indivíduos por seu comportamento sexual, incluindo leis contra o aborto e a homossexualidade. Em seu livro de 1923, A Revolução Sexual na Rússia, o Dr. Batkis, diretor do Instituto de Higiene Social de Moscou, revela o espírito dos primeiros anos da revolução, anteriores à ascensão da burocracia stalinista:

“A legislação sexual atual da União Soviética é resultado da Revolução de Outubro. Essa revolução é importante não apenas como fenômeno social, que garante à classe trabalhadora o exercício do controle político, mas também para as revoluções que, emanando dela, se estendem por todas as áreas da vida. (…)

“A revolução não permitiu a permanência de nenhuma das antigas leis despóticas e demasiadamente não-científicas; não seguiu o mesmo caminho da legislação reformista burguesa, a qual, com sutileza jurídica, ainda se baseia no conceito de propriedade na esfera sexual e, no fim, se apoia na manutenção de dois pesos e duas medidas no que diz respeito à vida sexual. A criação de tais leis sempre ignora a ciência. (…) A legislação soviética se baseia no seguinte princípio: o Estado e a sociedade não interferirão em absolutamente nenhuma questão homossexual, contanto que ninguém seja ferido e que os interesses de ninguém sejam prejudicados.”(1)

A Revolução Russa abriu caminho para a construção de uma sociedade socialista baseada nos direitos humanos. Em meados da década de 1920, como resultado da pobreza extrema da recém-formada União Soviética, somada ao fracasso de revoluções socialistas em países europeus mais desenvolvidos que poderiam vir ao socorro do povo russo, a revolução sofreu um revés, com a consolidação da burocracia stalinista. Esse modelo permanece no poder até hoje. Uma de suas várias ações repressivas foi a reintrodução, na década de 1930, de leis czaristas que proibiam o aborto e a homossexualidade.

Os jovens ativistas da atualidade encontram condições muito mais animadoras do que aquelas encontradas pelos revolucionários russos. As lutas vitoriosas pela libertação do Vietnã, do Camboja e da África “portuguesa”, as rebeliões promovidas pela juventude na Grécia e na Tailândia, a radicalização nos Estados Unidos e a luta pela democracia socialista na Checoslováquia e dentro da própria União Soviética são indicadores positivos para o futuro da luta internacional protagonizada por uma geração que anseia pela liberdade e pela dignidade humana. Este é o melhor momento histórico para essa luta.

Juntamente aos socialistas revolucionários por todo o mundo, a Young Socialist Alliance e o Partido Socialista dos Trabalhadores vêm trabalhando, nos Estados Unidos, na formação de uma iniciativa forte o suficiente para combater e derrotar a classe dominante mais poderosa e brutal do mundo – os capitalistas americanos.

Somente essa vitória, que será lograda pela maioria do povo americano, será capaz de interromper a derrocada em direção ao caos econômico global e à terceira guerra mundial. Uma vitória que lançará os alicerces para a criação de um mundo no qual os seres humanos possam viver juntos com dignidade e onde a sexualidade, assim como todas as formas de potencial humano, seja liberta das profundezas obscuras dos armários cheios de medo, intimidação e repressão.


Notas de rodapé:

(1) The Early Homosexual Civil Rights Movement, de John Lauritsen e David Thorstad. Times Change Press, 1975. (retornar ao texto)

Inclusão 19/06/2015
Última alteração 17/10/2023