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Supondo que se concede algum crédito ao resultado programático desta longa análise, resta ainda, claro está, uma questão de primeira importância: de que modo transitar da actual forma-partido para uma outra de estrutura e cultura tão diferentes? Se, de uma ponta à outra, o objecto legítimo deste livro é desenvolver abordagens de puro princípio, sem nos pensarmos capazes por esse facto de determinar as modalidades concretas, esta reserva impõe-se por maioria de razão quando se trata de encarar concretizações práticas. Mas também aqui as considerações de princípio que expusemos podem, sem dúvida, pelo menos desembocar em indicações metodológicas gerais, particularmente duas. A primeira é que esta passagem terá certamente a ver com um processo extenso e não com um acto breve. Porque o que está em jogo é muitíssimo mais, e certamente de uma natureza muito diferente, do que uma enésima modificação dos estatutos, da qual podemos eventualmente admitir que se toma verdade prática logo que decidida. A tarefa, aqui, é a de fazer nascer nada menos do que uma nova forma histórica de força política, e só pode ser comparada, sendo aliás as coisas fundamentalmente opostas, à própria génese do PCF, depois da adesão à lII Internacional e através de anos de "bolchevização". Uma criação desta amplitude, ademais inteiramente inédita, pressupõe tanto a longa elaboração do seu projecto por meio de muitos debates como a longa concretização dos seus princípios por meio de muitos esforços. Mas isto não é tudo, já que se não trata - e este ponto é capital- de uma pura transformação organizacional mas sim , de uma mutação fundamental de conteúdo político, a nova forma não pode corporalizar-se na realidade, nem mesmo certamente idear-se no pensamento, a não ser em ressonância com o progressivo desenvolvimento das novas actividades que ela tem por único objectivo servir e na ausência das quais continuaria sem vida. É pois todo um complexo guião que deve ser construído, e em parte improvisado em caminho, para organizar a vasta fase de construção experimental que um : congresso pode decidir empreender e um outro, de concepção ela própria inédita, pode transformar em acto fundador da nova organização comunista.
O segundo ponto é que deveria tratar-se de um processo simultaneamente lançado pelo PCF e desenvolvido com parceiros exteriores. Lançado pelo PCF pela simples razão que continua vivo, apesar dos prognósticos de um próximo fim tantas vezes feitos a seu propósito, e que os pesos que continuam a condená-lo a um declínio em grande parte já consumado encontram agora, dentro dele, em torno de uma renovação que a cúpula quer encorajar, contra tendências ainda hesitantes - situação que foi, erradamente, tantas vezes considerada excluída no início dos anos noventa e pela qual ficará necessariamente marcada a passagem a uma nova força comunista. Não menos necessariamente, essa passagem não poderá atingir o seu objectivo - erguer a "casa comum" dos comunistas do século XXI ultrapassando as ruinosas clivagens do século XX - senão tornando-se a obra colectiva de uma pluralidade de parceiros: além do PCF, e também dos comunistas - com ou sem cartão - que trabalham como pioneiros nas mutações necessárias, nomeadamente com Futurs, ainda todos aqueles cujas experiências, por muito diversas que possam ser, os levam a explorar as possibilidades desta construção colectiva. Porque a ideia comunista, e é voluntariamente que emprego aqui esta fórmula de espectro largo, é reconhecida ou reconhecível como pertencendo-lhes por muitos outros para além dos aderentes do PCF: por aquelas e aqueles que, tendo dele sido expulsos ou dele se tendo afastado, em nada abandonaram contudo tanto os valores como as esperanças que nele os tinham feito entrar; pelos membros de diversas formações trotskystas, como a LCR, cujo apego à sua herança antiestalinista e à sua própria organização não torna insensíveis a perspectivas unificadoras; pelos que estão próximos da causa comunista, mas a quem as versões político-culturais e organizacionais até agora nela dominantes mantiveram, por mais de uma razão, à distância; pelos jovens de ambos os sexos ainda mais ou menos indeterminados quanto à sua orientação política exacta mas de quem tantas coisas podem fomentar, pela sua natureza, o encontro com um comunismo do nosso tempo - encontro determinante já que um partido comunista de nova geração só pode ser o partido das novas gerações comunistas. Entre estes parceiros igualmente importantes, parece-me oportuno que nos expliquemos bem sobre o contributo tantas vezes menosprezado dos antigos membros do PCF que continuam comunistas "de coração", e de pensamento. Trata-se efectivamente de algo muito diferente do pagar de uma dívida moral retomando o contacto com camaradas em muitos casos tratados injustamente ou muito pouco fraternalmente, ainda que uma certa facilidade da organização em considerar-se desculpada das suas faltas me pareceria, em si, levar a um grave prognóstico. O que é necessário compreender é que o comunista expulso ou radicalmente desiludido tem geralmente uma experiência e um conhecimento original da forma-partido tradicional que escapa em larga medida ao militante satisfeito, e que revela, mesmo quando de modo enviesado, aspectos da realidade em relação aos quais a tomada de consciência crítica é capital para uma verdadeira refundação da força comunista. Assim impõe-se, para além de uma retoma de contactos circunscrita e superficial, a organização, com eles e elas, de um autêntico trabalho continuado de memória, de análise e de prospectiva, que poderia suscitar, por exemplo, a criação temporária de células-equipa para esse efeito; e durante o qual poderia começar a desenhar-se algo como uma auto-organização desses não organizados que permitisse uma parceria mais larga.
Entre todos esses parceiros deveria ser encetada uma troca de pontos de vista aprofundada e depois, tanto quanto possível, uma efectiva concertação sobre os conteúdos e as formas que requer uma força política de novo tipo e com um objectivo que se pode resumir assim: começar a superar de modo concreto o capitalismo mais desenvolvido e, com ele, todas as grandes alienações históricas nas suas formas actuais, trabalho de que não há exemplo e é doravante de vital necessidade e para que aponta a própria palavra comunismo. A elaboração de uma força deste tipo, sendo inseparavelmente reflexão teórica e experimentação prática, obriga a uma extrema ousadia tanto na crítica como na invenção, do mesmo modo que obriga a uma inteira publicitação, tal como convém a um empreendimento que diz ao mais alto ponto respeito à colectividade cívica e que responde ao desafio, não menos público, dos gatos-pingados do comunismo. Sim, está em gestação um comunismo novo e contra o qual o velho anticomunismo vai descobrir a sua impotência... A ousadia não exclui, bem pelo contrário, recomenda, a prática associada do "princípio de precaução" baseado nesta rude experiência da história comunista recente: nesta matéria é bem mais fácil destruir do que reconstruir. Este princípio é tanto mais oportuno quanto não há qualquer possibilidade de que a formação deste comunismo de nova geração seja bem vista - e certamente ainda menos em França do que noutras paragens, tendo em conta a sua peculiar situação política - por aqueles que se arrogam o cuidar da boa ordem dos assuntos nacionais e mundiais; seria imperdoável ingenuidade não ter consciência disto. Quanto mais sólidas garantias se possui contra os riscos de um erro fatal, tanto mais se é livremente ousado. E que melhores garantias se pode ter contra o erro do que o pluralismo reflectido e a transparência democrática da postura? A grande aventura da refundação comunista é uma parada demasiado alta para que possa ser conduzida de maneira aventureira, tal como é demasiado necessária para se acomodar com uma atitude timorata.
Mas, por muito cuidadosa que seja a audácia, não é sem uma certa vertigem que se enfrenta um cometimento destes. Ele faz parte daqueles cujo caminho não está escrito em livro algum em que, não há rede para tranquilizar o funâmbulo. É por isso que se ouve distintamente exprimirem-se inquietações de comunistas, e inquietações a que ninguém pode ficar insensível: perda da identidade revolucionária, esquecimento da luta de classes, renúncia ao espírito de partido... muitos são os que parecem traumatizados por uma "morte do pai". Por aqui se mede a pesada responsabilidade de um pensamento de direcção que, durante vinte anos, consubstanciou as necessárias actualizações do comunismo francês em sucessivos abandonos, muito mais do que em invenções coerentes... será de admirar que tenha produzido tantos órfãos? Àquelas e àqueles que têm estas inquietações diríamos, não que se inquietam em demasia, mas antes que o perigo é grave se nos inquietarmos num só sentido. Porque, em suma, qual é o problema dos problemas que o século XX nos deixa em herança? Ele reside na unidade dialéctica de uma evidência e de uma exigência. Algo, a que ilusoriamente chamávamos "o comunismo", morreu de modo trágico e irremediável: esta é a evidência. E, contudo, a humanidade civilizada só pode escapar à gangrena provocada pela finança capitalista reinventando a via para essa desalienação radical cujo nome histórico é comunismo: esta é a exigência. Daqui decorre que há duas maneiras, com atitudes opostas mas com efeitos possivelmente complementares, de ficar impotente face ao drama dos nossos dias. Uma é imaginar que se preserva o futuro do comunismo quando, por um erro de fidelidade, se defende contra tudo e contra todos a sua falsificação passada, que precisamente o levou ao desastre. Por patético que seja, um certo conservadorismo comunista pode tomar-se no pior inimigo daquilo que apaixonadamente quer salvaguardar. A outra maneira é declarar nulo este antigo "comunismo", reclamando vigorosamente um novo mas sem lhe dar, com a rapidez e a força necessárias, consistência teórica e operatividade prática. Neste sentido pode também haver uma retórica da "mutação", um eclectismo da abertura que sirvam mal a causa que muito sinceramente se quer fazer avançar - esta é toda a questão do XXX Congresso do PCF: ainda promessa de mudança em vez de mudança prometedora, como no XXIX Congresso, ou início, desta vez decisivo, das transformações necessárias? Não se pode imaginar nada pior do que a entrada em ressonância destas duas atitudes, cada uma acusando a outra. Mas pode-se trabalhar para algo muito melhor, superando o que contém, uma de estéril crispação e a outra de busca hesitante pouco produtiva. E pode-se fazê-lo com avanços, agora decisivos, debatidos contraditoriamente e realizados colectivamente, quer na elaboração imaginativa de uma política comunista quer na reconstrução de raiz de uma organização que lhe corresponda. Muito mais do que esse morto que nunca mais acaba de desaparecer, o que a todos deve obcecar - não no sentido de uma desmoralização mas antes no de uma motivação - não deve ser o vivo que tão terrivelmente tarda a nascer?
Vamos pois ao trabalho e com confiança? Confiança em que, sendo o que é a relação de forças ao nível local e mundial, se poderá realmente superar o capitalismo? Será sério dizer-se que se pode fazer desaparecer as grandes alienações históricas, e que isso começa hoje? É com seriedade que o digo: é possível, e pode começar hoje. É claro que, sendo a relação de forças efectivamente o que é, ninguém escapa, penso eu, a momentos de grande dúvida -"nunca conseguiremos..." -, especialmente na hora desta ou daquela grave decepção - e estamos ainda num ponto terrível da decepção dominante: uma tareia histórica como a da URSS não se apaga em dez anos, uma janela histórica fica mais difícil de abrir do que um postigo perro. Mas atente-se nisto: uma transformação da paisagem política da mesma ordem de grandeza que a superação do capitalismo era ainda há pouco tida como o próprio exemplo da impossibilidade, de tal modo que ninguém a conjecturava: era o desaparecimento do socialismo tal como reinava de Berlim a Vladivostok. Ora, esta impossibilidade aconteceu, de modo rápido e pacífico. Como pôde acontecer? Como pôde desmoronar-se o Muro de Berlim sem a mínima efusão de sangue? É muito simples: em suma, tinha-se lentamente desmoronado antes na alma das pessoas, em particular dos jovens. A aspiração a acabar com ele, a voltar a página do "socialismo real" tinha-se tornado hegemónica, e por isso irresistível. Esta é, cada vez mais, a "arma absoluta" no século político em que entramos. É ela, em última análise, que venceu um outro "impossível": a superação do apartheid na África do Sul. Foram tomadas de consciência e "tomadas" de iniciativa, no entanto ainda bem longe de ser hegemónicas, que permitiram marcar alguns notáveis primeiros pontos em assuntos do maior alcance - por exemplo, contra o poder sem controlo da Comissão de Bruxelas ou contra o liberalismo sem limites no comércio mundial, ou como o esboçar de uma era de mais alta responsabilidade humana em matéria de ecologia ou de bioética. Não haverá aqui uma decisiva indicação sobre o caminho a seguir? Cessar de subestimarmos nós próprios a amplitude das desalienações que há que empreender sem demora. Cessar de restringir a diversidade das forças que nisso podem tomar parte. Cessar de afastar do combate emancipador, ao querer fazê-lo passar pelo alistamento num partido à moda antiga. Cessar de empobrecer a mensagem não esgotada, e em grande parte não ouvida, que pode ainda vir-nos de Marx.
É necessário dar, finalmente, uma oportunidade à ideia comunista.
[pgs 206_212. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]
Inclusão | 02/08/2002 |