Começar Pelos Fins - A Nova Questão Comunista

Lucien Sève


2.10 - Comunismo e mundialidade


Projecto de desalienação universal, o comunismo foi à partida pensado por Marx e Engels como necessariamente mundial: se ficasse local, toda a "extensão das trocas" lhe seria fatal (A Ideologia Alemã). Assim, começam por considerar que a passagem ao comunismo se fará forçosamente "de um só golpe (auf einmal) e ao mesmo tempo, para os povos dominantes". Mas, uma década depois, Marx tinha chegado a uma visão mais complexa em que a passagem se desmultiplica em fases parciais sucessivas, o que coloca um temível problema: supondo vitoriosa a revolução "nesse pequeno canto" que é a Europa Ocidental, "não irá ela ser esmagada, sendo dado que, num sector muito mais vasto, o movimento da sociedade burguesa ainda está em ascensão?" (Carta a Engels, de 8 de Outubro de 1858). Lenine devia mais tarde concluir, da desigualdade do desenvolvimento capitalista, a possível vitória inicial do socialismo num só país (cf. Anexo I), mas continuando a considerar que este sucesso não poderia ser durável sem a extensão mundial do processo. De facto, a "passagem ao socialismo" seguiu um curso muito diferente: limitada a um conjunto de países, de contornos cada vez mais rígidos, esta passagem tomou a forma de uma luta cerrada, mesmo que nos limites da guerra "fria", para consolidar um "campo socialista" que as potências capitalistas tudo faziam para destruir. Este fechamento crónico de uma causa de vocação universal na defesa de interesses geoestratégicos particulares impôs tragicamente caricaturais alienações ao combate desalienador do movimento comunista, de que a dependência perante Moscovo se tomou o símbolo. Ainda vivaz, apesar de tudo, com o papel da União Soviética na guerra antifascista e, depois, na descolonização, a chama do universalismo apagou-se pouco a pouco; e a própria unidade do campo socialista se quebrou muito antes da sua decomposição final. Por uma notável dialéctica, foi então o capitalismo que se apresentou como destino universal da humanidade, num planeta em vias de unificação comunicacional e mercantil. Mas a mundialização financeira, não contente com contradizer-se violentamente ao alargar por todo o lado as piores desigualdades, ao alimentar simultaneamente o declínio da soberania nacional e a recrudescência de nacionalismos fanáticos, só traz ao género humano um "mito oco", como o nota Monique Chemillier-Gendreau (Humanités et souverainetés, La Découverte, 1995, p. 279) [Humanidades e Soberanias ], "o do dinheiro em si, já não como meio mas como finalidade pura", de modo que "a sociedade internacional deixa de ser orientada por um projecto". Esta não é a menor das crises de sentido. Também neste plano se não pode voltar a abrir uma perspectiva sem começar pelos fins.

Depois de tantas décadas em que a ideia comunista perdeu a sua primitiva e intensa capacidade de irradiação universalista, tudo milita para que dela se reaproprie. Deve-se opor o mais resoluto dos internacionalismos à mundialização capitalista, mas que seja um internacionalismo de nova geração. Porque pagámos caro a aprendizagem das armadilhas dessa universalidade imatura guiada supostamente por um "particular" - seja uma cúpula de Estado ou de partido, uma superpotência, uma grande finança... - que assim se torna o grande obstáculo a uma maior universalização. A universalidade humana, para a qual se trata de avançar, não pode ser aquela em que a unidade abstracta de uma forma dominante pretende impor-se às identidades singulares, sejam elas das nações ou das pessoas, das culturas ou das organizações, intimadas a "normalizar-se" à sua imagem. Ela deve antes ser essa universalidade concreta em que cada singular se torna enquanto tal um pleno associado do género humano, interiorizando à sua maneira os valores comuns deste - coerência sem dominação nem uniformização, a inscrever no novo conceito de comunismo. Mas, do tão alienado singular de hoje ao universal emancipado de amanhã, são necessárias mediações. Na ordem internacional, aquela que melhor se esboça neste momento não será a comunidade regional de Estados? Um dos piores erros do comunismo francês foi ter durante tanto tempo virado costas à Europa em gestação, abandonando a outros a sua construção. Porque uma comunidade como esta, desastrosa caso se arvore em contramestre particular de uma dominação geral, pode igualmente transformar-se em lugar benéfico de universalização concreta, onde ganham consistência novas lógicas de vocação mundial. Assim, uma Europa que se libertasse da ditadura da finança poderia arrancar em grande, com o continente africano, cooperações enfim não predadoras e portadoras em todo o lado de progresso democrático e de relações mais civilizadas. À objecção de que uma taxa sobre as transacções financeiras de curto prazo só poderia ser universal, o que parece irrealizável, James Tobin respondia com vivacidade (Le Monde, 17 de Novembro 1998): "Bastava que uma vintena de países começassem" para que a taxa pudesse "ganhar corpo". Não teremos aqui um belo exemplo das iniciativas que quereríamos ver a Europa assumir? E não se passará o mesmo com muitas outras iniciativas iconoclastas? Não será o que mostra já a luta incipiente contra a dopagem no desporto que Marie-George Buffet soube impulsionar, até ao próprio nível dos Estados? Contribuir para todos os nascentes movimentos de universalização não poderia levar as forças comunistas - ou de orientação próxima - a reconstituir uma qualquer "Internacional", forma tipicamente caduca de unificação alienante, mas antes certamente a construir uma "democracia directa da cooperação entre todos" (cf. L. Sève, "Les chemins de l'universalisation" [Os Caminhos da Universalização], em Le Manifeste comuniste ajourd'hui, L' Atelier, 1998; cf. também, ibid., Michael Lowy, "L'internationalisme du XXIe siécle"), em que a figura do comunismo se torne de novo para todos a da solidariedade livre.

Recapitulemos, tomado durante muito tempo como a essência do comunismo, o projecto de conquista proletária do poder de Estado para socializar os meios de produção, acreditando assim abolir a exploração dos trabalhadores, correspondia muito mais a um empobrecimento que desnaturava o pensamento marxista. O fracasso desse socialismo, em todos os seus aspectos, as mutações da nossa época, em todas as suas dimensões, exigem-nos que voltemos a dar vida ao projecto comunista de superar todas as grandes alienações históricas da humanidade, muito mais amplo e radical, repensando o seu conteúdo nas condições actuais. O comunismo torna-se então sinónimo de evolução revolucionária a impulsionar em todos os campos, clássicos ou não, da realidade social, com todas as forças, de classe ou sem ser de classe, que a humanidade dos homens mobiliza, e não só para abolir os insuportáveis arcaísmos, mas para superar de modo construtivo o actual estado de coisas, trazendo para o primeiro plano a questão dos fins humanos do desenvolvimento histórico. Um comunismo que vise não só simplesmente regular de outro modo o mercado, mas avançar em direcção a uma economia pós-mercantil, que vise não só preparar um futuro melhor para os indivíduos, mas fazer do seu múltiplo desenvolvimento um objectivo imediato, não só levar mais longe a democracia, mas empreender o definhamento do Estado através da reapropriação pelos cidadãos dos poderes de decidir; um comunismo que opõe a qualquer perspectiva de uniformização humana, imposta por um qualquer terceiro dominador, a da universalização concreta pela qual se participa plenamente no género humano sendo-se si próprio livremente, povo ou pessoa. A ideia comunista dissocia-se aqui profundamente do que durante demasiado tempo passou por lhe ser consubstancial - estreiteza de classe, violência despótica, futuro por encomenda... - reconciliando bem pelo contrário intransigência anticapitalista e abertura a todos os valores civilizados, ousadia transformadora e paciência democrática, necessidade do combate e livre deliberação dos seus objectivos.

[pgs 135_138. "Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]


Inclusão 02/08/2002