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Sabendo por experiência própria o quanto esta espécie de considerações expõe aos equívocos - veremos alguns exemplos - poderei eu tratar de os evitar? O que precede não tende de modo algum a declarar caducas as lutas de classe, no sentido habitual do termo. A exploração continua, até mais feroz do que desde há muito; combatê-la com as suas vítimas de classe continua plenamente na ordem do dia. Mas seria necessário ser muito cego para não ver a enorme extensão de formas de alienação não menos graves pelas quais se vêem esvaziadas de sentido actividades das mais importantes, sendo assim qualitativamente atacados na sua própria vida todos os seus parceiros, para além das diferenças de classe. Daqui, salvo erro, decorre um traço fundamental da nova janela histórica que se abre para uma possível superação do actual estado de coisas: o combate de classe contra o capital pode muito mais hoje tornar-se um combate geral por uma humanidade melhor civilizada em todos os planos. Desenvolvi este tema em muitos artigos e contributos, em particular nas minhas intervenções no Congresso Marx internacional de 1995 (cf. Congress Marx International, Actuel Marx/PUF, 1996) e depois no Colóquio de Nanterre sobre "a questão do socialismo hoje", em Outubro de 1997 (Cf Regards, Janeiro 1998). Neste último texto exponho de novo por que considero que o que morreu foi "o socialismo na sua acepção consagrada" e advogo mais uma vez uma resoluta revalorização do desígnio comunista em toda a sua amplitude; nele sublinhava, para ser "muito claro", que defender esta atitude "não é de qualquer modo declarar prescrita a questão do modo de propriedade dos grandes meios de produção e de troca", nem "subestimar os vastos méritos potenciais de uma apropriação pública digna desse nome". Mas, acrescentava eu, uma mudança como esta não poderá alcançar os efeitos pretendidos "a não ser por meio de transformações de uma outra ordem e, se virmos bem, de um outro alcance", transformações entre as quais eu apontava em especial a apropriação de capacidades de gestão pelos assalariados e a desestatização do Estado. Ao analisar depois as consequências devastadoras da apropriação das actividades de serviço pelo capital, via nela, por excelência, um processo histórico com o qual se não poderia acabar socializando simplesmente os meios de produção, mas tão-só pela construção de um primado, sobre os meios, de fins universalmente humanos.
Coisa nova e que se me afigura inscrever-se num, ainda modesto mas bem-vindo, pôr em comum do debate sobre a perspectiva; este último texto suscitou muitas reacções. Entre elas as de Catherine Samary e Jacques Texier, ambas publicadas na revista La pensée (n.o 317, Janeiro/Março 1999) - e dar conta destas reacções neste ponto da minha explanação corresponde exactamente ao que com ela pretendo.
Propondo-se "esboçar um debate", Catherine Samary desenvolve no seu artigo "Propriedade - Estado - Democracia", e no sentido que é o seu, uma reflexão também ela muito preocupada com a "desestatização do Estado", sem a qual, como o mostrou a experiência jugoslava, a própria autogestão não permite "gerir eficazmente a economia". Considera que é possível "convergirmos" em relação a esta orientação fundamental. O meu texto de Regards parece-lhe contudo "frustrante" porque "ignora as análises exteriores ao PCF" e que desde há décadas contestavam radicalmente a burocracia e a ausência de democracia na URSS; isto dá-lhe o pretexto para exprimir, de passagem, o voto de que, com outros, eu contribua no PCF para uma reedição de A Revolução Traída de Trotski - crítica justificada de uma longa cegueira voluntária dos membros do PCF, e a que eu não fiquei imune; mas na qual se revela contudo um pequeno desconhecimento seu, já que em 1984, por minha iniciativa e depois pela de Claude Mazauric, as Éditions Sociales, rompendo com um ostracismo de sempre, publicaram um substancial volume antológico de Trotski, organizado pelo historiador Jean-Paul Scot. Aliás, que esta intercompreensão sem a qual o debate não pode ser produtivo ainda esteja longe de ser um dado adquirido, é algo de que vários dos principais desacordos que ela apresenta me parecem ser exemplo. Assim, a lê-la, eu seria de opinião que foi a "aplicação das ideias marxistas", em particular as "abordagens estatistas presentes em Marx", a responsável por ter feito da URSS "a antítese do comunismo". Como vimos atrás, o meu pensamento está nos antípodas: o socialismo estalinizado ia a contrario das perspectivas comunistas de Marx, que era, na minha opinião, anti-estatista de raiz. O equívoco não é menos importante noutros pontos, como o accionariado assalariado que está hoje em grande desenvolvimento, e sobre o qual não desconheço, aliás, o facto de encerrar grandes armadilhas. Resta saber, parece-me, se o feitiço destas armadilhas não pode ser virado contra o feiticeiro, em novos contextos políticos em que se tivesse dado vigor a esta explosiva verdade tão mal conhecida e que é que, mesmo admitindo-se que o capital avançado à partida seja "uma propriedade adquirida pelo trabalho pessoal" do capitalista, ao fim de uns quantos anos "deixa de existir o mínimo átomo de valor" deste primitivo capital, todo ele renovado pela "materialização [...] de trabalho não pago de outrem" (O Capital, Livro I). Como admitir então esta situação em que a sua constante actividade reprodutora do capital não cria, para os assalariados, nenhum "poder de accionista" sobre as decisões de gestão? Não será esta uma interpelação comunista que se deveria fazer crescer? (cf. as reflexões de Jean-Claude Delaunay sobre o possível novo sentido do accionariado salarial, na revista La pensée, nº 319, Julho/Setembro 1999). Mas, quando Catherine Samary conclui que o objectivo emancipador do comunismo "não será nunca atingido amanhã se os meios empregues hoje não forem já portadores desse desígnio", estamos outra vez inteiramente de acordo sobre esse ponto a meu ver crucial.
Num artigo intitulado "Propriedade Social e Comunismo", Jacques Texier abre amigavelmente comigo aquilo a que chama uma "pequena polémica". Com efeito, espanta-o muito a maneira como afirmei, no meu artigo de Regards, que "a apropriação social dos meios de produção" - é a minha fórmula - seria em si mesma "largamente inoperante" para subtrair os serviços à alienação capitalista; e espanta-o por uma dupla razão: para começar, poder-se-á defender que aquilo que nos serviços desempenha um papel homólogo ao dos meios de produção, quer dizer "as infra-estruturas materiais", seja "quantidade negligenciável"? "Realmente, escreve Jacques Texier, não me parece nada"; depois, e ainda mais, na minha formulação só a socialização dos meios de produção é mencionada: "os meios de troca, sublinha ele, quer dizer a moeda e o dinheiro que podem tornar-se capital, desapareceram pura e simplesmente". Nisto vê ele um escamotear que permitiria minimizar, com demasiada facilidade para ser convincente, os efeitos da "propriedade social". Por minha vez, esta objecção espanta-me: como se pode incluir nos "meios de troca", destinados numa perspectiva socialista à apropriação social, "a moeda e o dinheiro que podem tornar-se capital"? "A moeda"? É certo que é um meio de troca, mas seria por acaso um bem privado a socializar? "O dinheiro que pode tomar-se capital"? Marx consagrou numerosas páginas a refutar a ideia de que o dinheiro constituía um bem autónomo: é muito simplesmente uma das três formas do capital, a sua forma-dinheiro. A partir do momento em que deixa de poder converter-se em capital produtivo, porque se socializaram os meios de produção - e de troca, querendo-se ser completo -, o dinheiro perde a sua capacidade de poder "tornar-se capital": assim também não pertence à categoria dos "meios de troca" a socializar enquanto tais. Penso nada ter omitido que altere no que quer que seja os termos do problema por só ter falado, e para encurtar, dos meios de produção, na passagem incriminada do meu artigo. Opor-me-ão, apesar disso, que, como o diz Jacques Texier, a questão dos meios de produção é "decisiva" também para os serviços? Avança ele o exemplo da saúde; penso que é duplamente probatório no meu sentido. Assim, as actividades de transfusão sanguínea dependem em França de um monopólio de Estado: coisa que as não impediu minimamente de adoptar, num recentíssimo passado, a mesma filosofia de "gestão rentável" das suas congéneres privadas da Europa ou dos Estados Unidos, desembocando na mesma dramática contaminação dos hemofílicos e dos pacientes submetidos a transfusões. Inversamente, há abundantes provas de que, caso se criem as condições, se pode impor às empresas privadas de saúde, como às outras, muitas condicionantes de ordem pública e muitas obrigações de ordem ética. Não, a socialização das "infra-estruturas materiais" não é em si mesma "decisiva", o que de todo me não leva a tratá-la como "quantidade negligenciável>>. No texto aqui em discussão voltei a afirmar, pelo contrário, a importância crescente, sob mais de um aspecto, de uma autêntica apropriação social ou até, de modo muito mais limitado, de uma propriedade pública dos meios de produção, de troca e de serviço - os esforços sem igual do capital em sentido inverso não permitem aliás qualquer dúvida (cf. Anicet Le Pors, La Citoyenneté, PUF, 1999) [A Cidadania]. Mas insisto: ela só pode produzir os efeitos esperados se em sinergia com muitas outras transformações de todo o tipo, sem as quais se tornará rapidamente numa miragem.
Esta pequena polémica não obsta a que Jacques Texier e eu estejamos expressamente de acordo sobre muitos pontos dos nossos respectivos artigos; o que é importante - modestamente - na perspectiva de um desejável largo entendimento sobre as vias actuais de superação do capitalismo. Entender-se, não excluindo aliás que continuemos a diferir. Assim, Jacques Texier objecta, à minha insistência, sobre a questão comunista dos fins, que "é impossível ter o domínio dos fins sem dominar os meios". Incontestável no que afirma, esta fórmula parece-me potencialmente especiosa pelo que omite: só a atenta determinação dos fins permite fazer uma apreciação de quais os meios, entre tantos outros, que é essencial dominar. Por exemplo, se o fim preciso é reordenar para as necessidades humanas efectivas o conteúdo de uma política de saúde desde há muito regida por critérios financeiros em si mesmos estranhos à preocupação sanitária, será o meio mais decisivo nacionalizar as indústrias farmacêuticas e as redes de clínicas privadas? Ou antes construir um controlo democrático dos próprios segurados sobre a Segurança Social, que desliza rapidamente para a estilização, apesar do essencial dos seus recursos continuar a ser os próprios salários indirectos dos trabalhadores? (cf. Bernard Friot, Et la cotisation sociale créera l'emplol, La Dispute, 1999) [E a Cotização Social Criará o Emprego].
Jacques Texier teme igualmente que um desígnio comunista nos faça "perder de caminho algo de essencial" em relação ao caderno de encargos do "socialismo". Sustento que, pelo contrário, um projecto socialista, mesmo muito retrabalhado, continua a ter, em relação à ambição comunista, um défice capital de transformação. Mas aqui a diferença mais significativa desloca-se: mais do que em relação à perspectiva de Jacques Texier, ela ressaltaria de um confronto com as de Perry Anderson, de Tony Andréani ou de Jacques Bidet. A vasta Théorie générale (PUF, 1999) em que este último expõe o conjunto da abordagem "meta-estrutural" a que se referiam por antecipação os seus trabalhos anteriores, não tinha ainda sido publicada quando eu redigi este capítulo. Contudo, uma explicação, mesmo que sucinta, com a sua maneira pessoal de recolocar a questão do socialismo, num texto anterior muito mais breve, será certamente esclarecedora quanto à reconfiguração do conceito actual de comunismo a que aqui nos dedicamos.
[pgs 110_115. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]
Inclusão | 02/08/2002 |