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Tendo tomado boa nota disto, ocupemo-nos para começar correndo o risco de voltar a dizer coisas "muito conhecidas", que tão frequentemente se revelam hoje pouco conhecidas, particularmente na geração mais jovem - das contradições mais de terminantes detectadas por Marx ao analisar o movimento do capital. O seu desvendar resulta de dois conjuntos de considerações: sobre o processo de produção (Livro I de O Capital) e, depois, sobre o processo do conjunto da economia capitalista em desenvolvimento (Livro II).
A contradição central do processo de produção é por ele formulada nos termos daquilo que designa por " lei geral de acumulação capitalista": onde o capital domina, a acumulação de riqueza num dos pólos da sociedade tem como reverso da medalha a inexorável acumulação no outro pólo de sofrimento material e moral, tanto no trabalho como fora dele, indo até à miséria, à escravidão, ao atirar para o ferro-velho, até à pior das degradações humanas do trabalhador (cf Livro l, Éditions Sociales, 1983 ou PUF, 1993, pp. 724-25). O enunciar desta contradição coroa o esforço do Livro I para desvendar o segredo da exploração capitalista: a extorsão de mais-valia - não sendo o salário de modo algum, para além das suas aparências, o preço do trabalho fornecido mas, bem pelo contrário, o preço de compra da força de trabalho no mercado com o mesmo nome, força de trabalho que, só ela entre todas as mercadorias, produz mais valor do que aquele que o seu custo representa. Esta exploração é por sua vez, fonte de múltiplas outras contradições que periodicamente explodem em crises, nomeadamente entre o incessante crescimento da produção dos bens e a crónica insuficiência do poder de compra da classe trabalhadora. Mas a mais fundamental das contradições é que o capitalismo, que conserva teimosamente à propriedade dos meios de produção a sua forma privada, sobre a qual assenta toda a extorsão da mais-valia, imprime ele próprio à produção um carácter cada vez mais social, condição de qualquer desenvolvimento da produtividade mas que toma obsoleta essa mesma forma privada. Assim, é o próprio movimento do capital que prepara involuntariamente a socialização desses meios, socialização pela qual se poderá pôr um fim quer à insuportável exploração de classe quer à incoercível anarquia do mercado, dando lugar à racionalidade controlável de um plano. Aqui se enraíza a cultura revolucionária orientada para o socialismo, no sentido clássico do termo. E numerosos são ainda os que vêem nisto a quinta-essência do "marxismo", a que nada de essencial haveria a acrescentar nem a retirar.
Mas se prosseguirmos agora o estudo de O Capital até ao Livro III, vamos descobrir aí um panorama bem mais amplo, em que se abrem horizontes revolucionários ainda bem pouco explorados. A contradição fundamental para que aqui converge a análise é a baixa tendencial da taxa de lucro, relação de grandeza entre o lucro obtido e capital avançado, que constitui a verdadeira " força motriz" da produção capitalista (O Capital, Livro III, tomo I, Éditions Sociales 1957, p. 271).
A tendência forte para a baixa dessa taxa diz respeito à mais essencial das lógicas do capital: este valoriza-se acumulando numa escala cada vez mais larga o trabalho passado, na forma de meios de produção, "trabalho morto" maciçamente objectivado em capital fixo e em relação ao qual o lucro realizado sobre o "trabalho vivo" tende a ser em proporção continuamente decrescente. "É, de qualquer ponto de vista, a mais importante lei da economia política moderna, e a mais essencial para a compreensão das relações mais complexas" (Manuscrits de 1857-58, ditos Grundisse, Éditions Sociales, 1980, tomo 2, p. 236). Nesta lei o capitalismo confessa a sua função histórica profunda e, por essência, transitória: garantir o aumento ilimitado da produtividade sob uma forma em que o morto esmaga o vivo; o que, contraditoriamente, impõe a este aumento severos e absurdos limites. Simultaneamente esclarecem-se os seus violentos esforços para combater em todos os sentidos a baixa da taxa de lucro: antes do mais, pela insaciável exploração dos assalariados, mas também, entre outros, pela desvalorização maciça dos capitais, fonte de gigantescos desperdícios; pela agressiva expansão internacional, criadora de um mercado mundial; pela apropriação tecnológica dos formidáveis poderes da ciência, que eleva a produtividade a cumes sem precedentes, mas desencadeando contradições também elas sem precedentes. A lei geral de acumulação capitalista faz-nos apreender o funcionamento recorrente do sistema; a da baixa tendencial da taxa de lucro permite-nos compreender o desenvolvimento das suas estratégias e, ao fim e ao cabo, o da sua presente crise estrutural. Mas por este meio acumulam-se novos pressupostos para a sua superação, em particular os da possível e necessária passagem a um modo de aumento da produtividade, baseado, ao contrário do precedente, sobre as economias maciças em capital fixo permitidas pela incorporação da ciência no aparelho produtivo, economias que permitem por sua vez financiar o mais ambicioso desenvolvimento das capacidades de todos os indivíduos - inversão da tendência histórica que nos fará desembocar ao mesmo tempo numa eficácia económica e numa promoção humana sem iguais. E isto impõe uma conclusão primordial: atacar a forma de propriedade dos meios de produção só toca no essencial na medida em que isso pode criar uma situação muito mais favorável para transformar de alto a baixo - e este é o fundo do problema - o conteúdo de gestão das actividades económicas e financeiras, sem o que nada de importante muda, como tão cruamente o fez lembrar a experiência francesa das nacionalizações de 1981. Superar o capitalismo exige pois muito mais do que o socialismo na sua asserção ordinária, em que a socialização dos meios de produção passa por ser o acto fundamental que vai em si mesmo pôr termo à exploração do homem pelo homem. Na realidade, para tal é necessária nada menos do que uma transformação comunista em que entram em revolução muitas outras relações essenciais e tendências históricas da sociedade de classes, e não só simplesmente nas suas formas mas nos seus conteúdos, e que podemos no limite resumir nesta modificação cardeal: atribuir enfim ao desenvolvimento dos homens predomínio sobre a produção dos bens. Será que uma frase como esta é susceptível de fazer a análise económica rigorosa regredir para as brumas de um humanismo filosofante ? Atenção, este ponto é muito mais decisivo do que o que se poderia supor. Bem mal leram O Capital os que nele não notaram a persistência deliberada de formulações "filosóficas" pelas quais Marx situa a própria essência do capitalismo na incoercível propensão para inverter as relações mais universais: as da pessoa à coisa e do fim ao meio. O capitalismo, escreve ele em múltiplas ocasiões, é aquela forma social que personifica as coisas e coisifica as pessoas, que promove a fim o meio e despromove a meio o fim (cf entre outros Grundisse, tomo I, pp. 23, 86, 93, 101,211, 424-25, etc.; O Capital, Livro I, p. 83- -84,88-89,97,129,147,154,171.-72,209,474-75,640-44,667, 724,859; etc.). Sinónimo de acumulação sem fim (em ambos os sentidos desta palavra) faz do frenesim de enriquecimento privado, tendo como contrapartida um imenso sacrifício de indivíduos, o mais absurdo dos "fins em si": aqui está, em última análise, e por muito definitivo que pareça o seu triunfo, a razão antropológica ultraprofunda que interdita qualquer perenidade histórica a este modo de organização social, ou mesmo até à própria humanidade, caso esta devesse não conseguir desembaraçar-se dele. Bem pouco familiar à cultura comunista tradicional, a vasta questão dos fins não estará hoje em dia a tornar-se cada vez mais crucial? Voltaremos à questão.
[pgs 087_091. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]
Inclusão | 02/08/2002 |