O Sabor da Palavra Liberdade

José Saramago

25 de Abril de 1990


Primeira Edição: no auditório da biblioteca municipal do barreiro 25 ABRIL

Fonte: Centro de Documentação 25 de Abril

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


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Azinhaga, uma pequena aldeia ribatejana, viu nascer José Saramago, em 1922, com 2 ou 3 anos partiu com os pais rumo a Lisboa.

Na sua adolescência descobriu o livro, ocupando muitas das suas noites na Biblioteca Municipal de Lisboa, no Palácio de Galveias, lendo como um jovem amante das palavras, sem qualquer orientação, tão somente a motivação de descobrir o mundo através da leitura.

Entre Lisboa e a sua aldeia, Azinhaga, viveu a sua adolescência.

Em 1947, com 25 anos, publicou o seu primeiro romance por si Intitulado «A Viúva» mas que, por conselho do seu editor, passou a chamar-se «Terra de Pecado». Após a publicação deste romance esteve cerca de 19 anos sem escrever. Voltaria a retomar a sua actividade de escritor em 1966 com a publicação da sua obra «Os Poemas Possíveis».

Recomeça então o seu percurso, um percurso que já de há muito desejava. Pois, em comentários e conversas com os seus amigos de adolescência afirmava «hei-de ser escritor».

Em 1975, quando deixou o seu cargo de director do jornal «Diário de Notícias» tinha então 53 anos. Decidiu não procurar emprego e dedicar toda a sua vida a fazer aquilo que sempre quis. Escrever.

Este é o ano decisivo da sua vida. Uma proposta do Círculo de Leitores para escrever um guia de Portugal levou-o a percorrer milhares de quilómetros e conheceu o nosso País de Norte a Sul como poucos conhecerão.

Para si, neste trabalho, não foi o percurso que fez que contou, mas sim o que filtrou, o que ficou dentro de si. É neste contexto que nasce posteriormente a sua obra «Levantado do Chão». Uma obra de viragem, onde a escrita é a fala de uma experiência vivida, um encontro com o real.

Toda a obra de José Saramago expressa este seu pensamento. «O nosso mundo começa connosco, mas o mundo já cá está, temos de o conhecer».

É talvez por isso que o seu trabalho espelha o sentimento de quem sente que já viu tudo muitas vezes na vida mas que na verdade as coisas que vê continuam a surpreendê-lo. Esta atitude perante a vida na sua própria opinião é o resultado de quem viveu uma adolescência prolongada, entrou na vida adulta como adolescente e por isso toda a sua personalidade exprime uma certa disponibilidade e encantamento, uma certa forma do olhar.

A propósito da sua obra escreveu Luís de Sousa Rebelo o seguinte:

«A fábula é a própria linguagem em que ela vai contada e vive do compasso de uma escrita que reconstitui toda a magia e o encanto da narrativa oral. O período espraiado, a asserção cortada de orações incisivas e autocorrecções, justapostas mais como ardil retórico de um modo de dicção do que como meio de evitar a ambiguidade latente, são alguns dos processos com que Saramago vence as normas do literário para lhe Imprimir o tom conversado do milenário contador de estórias. Esta técnica é ainda evidente no encadeamento dos sucessos, carregados de uma alusividade que se adensa com incidentes aparentemente diversivos, mas constituem no seu conjunto a arquitetura da composição. Dela se evola o halo de sugestões, que comanda o poder da semiose e dá à narrativa o ímpeto do seu andamento, pautado pela auto-ironia de quem conhece todos os discursos do mundo, não para os interpretar, mas para os transformar, para os instalar na intimidade de uma fala que seja a da «raça ruiva do porvir», visionada por Cesário»(1)

Ao editarmos esta brochura é nosso sincero desejo de que com a «presença» amiga de José Saramago, cada um de nós experimente o prazer da leitura, sentido os múltiplos sabores de um caminho feito de vivências, transbordantes de preocupações ético-filosóficas sobre a liberdade, Talvez nada mais fosse necessário referenciar, para todos nós identificarmos José Saramago como um escritor de excepcional distinção e lugar cimeiro no actual ressurgimento da ficção portuguesa.

★★★

Convidaram-me para vir falar do «sabor da palavra Liberdade» e aqui estou, prometendo-vos que tentarei não fugir ao tema, o que bem poderia acontecer, tendo em conta que as conversas são como as cerejas, puxamos uma e vêm duas ou três, e a partir de certa altura começa a ser difícil não pensar na árvore que deu as cerejas, depois no cerejal, e enfim no pomar completo. Falarei de liberdade, que é o tema e a cereja deste 25 de Abril de 1990, mas não evitarei as divagações que se me afigurem úteis, certo de que acabaremos por reunir tudo no mesmo tronco e na mesma substância.

Vem muito a propósito esta intenção minha de não me limitar ao que porventura se espera de mim, isto é, às palavras de aplauso e louvor, às expansões entusiásticas com que justamente, sempre festejamos o 25 de Abril. E que, antes de vir para aqui, participei na manifestação com que em Lisboa se comemorou a Revolução, descendo, como todos os anos, a Avenida da Liberdade, até ao Rossio, Nessa manifestação vi algumas pessoas que conhecemos, também elas pontuais presenças na festa da Liberdade: Vasco Lourenço, Marques Júnior, Martins Guerreiro, Otelo Saraiva de Carvalho, Vasco Gonçalves, Vítor Crespo, entre outros.

Descíamos todos a Avenida e ouvíamos as palavras de ordem do costume: «O povo unido jamais será vencido», o que, diga-se de passagem, causa uma certa melancolia, ou «25 de Abril sempre», ou aquela outra, «Fascismo nunca mais», como se o fascismo estivesse ao pé da porta. Em certa altura, entrou-me uma tristeza muito funda ao olhar aqueles homens, cuja situação actual, precisamente, pode ser-nos de grande proveito para uma reflexão sobre a liberdade.

Esses homens foram os que no dia 25 de Abril de 1974, pondo em risco a sua segurança e a sua vida, nos tiraram do lamaçal político e social em que nos encontrávamos. O que lhes aconteceu nestes dezasseis anos? Onde estão? Que fazem?

Em princípio, parece que, vivendo nós numa democracia, que se supõe ter obrigação de respeitar e homenagear os que a servem, e, neste caso, lhe deram a primeira força de vida possível e viável, esses homens deveriam ser objecto de uma gratidão particular, de um reconhecimento público sem equívocos. Ora, ao contrário, sucede que todos eles se encontram, não direi em situação de política nulidade, uma vez que exercem os seus direitos políticos, mas, se a expressão é correcta, de nulidade profissional. A maior parte deles passaram à reserva, alguns ficaram imobilizados na sua carreira, e estes factos, penso eu, deveriam levar-nos a uma reflexão talvez desagradável de escutar num dia como hoje. Estes homens que nos deram a liberdade não tiveram da instituição militar de que fazem parte, o reconhecimento, o aplauso e o respeito que nós, cidadãos civis e paisanos, lhes tributamos.

Há aqui uma contradição gravíssima. É como se as instituições militares tivessem guardado, em relação a esses homens, o que eu chamaria, pura e simplesmente, um sentimento de rancor. Como se todo o processo de apagamento a que temos vindo a assistir fosse movido por uma vontade de retaliação. E isto acontece, e isto torna-se-me claro no preciso momento em que venho ao Barreiro para falar de liberdade. Caio portanto em mim e dou-me conta de que mais importante será, neste momento, falar dos limites impostos à liberdade do que duma liberdade apenas emocionalmente entendida.

Enfeitemos, se quisermos, a liberdade com flores e palavras bonitas, mas depois tenhamos a frieza de verificar que no nosso democrático país, com tão democráticas instituições, os homens que derrubaram a ditadura e o fascismo foram arbitrariamente despojados da capacidade de se valorizarem na sua profissão de militares, encontrando-se hoje, ou na reserva, ou em situações dentro da carreira que não correspondem nem à antiguidade nem aos méritos profissionais. E um deles, que esteve preso, pode vir a ter de regressar à prisão.

Que este dia seja, pois, de enaltecimento dos valores da liberdade, mas que seja também uma reflexão séria, grave e mesmo dolorosa, se preciso fôr, sobre a precariedade da liberdade; sobre as limitações exercidas, muitas vezes em seu nome, contra aqueles que no-la deram. Ajudar-nos-á, talvez, hoje e no futuro, a não tomar a realidade das coisas pela sua aparência, levando- -nos a examinar o que realmente sejam, o que valem, e se merecem o nome que têm.

Nesta hora de tão radicais transformações nas estruturas políticas e económicas do mundo, julgo que vale a pena determo-nos no exame de certas questões que algumas vezes passam despercebidas no meio da confusão, natural ou provocada, das notícias.

A primeira tem que ver com a queda do muro de Berlim. Até aí a Europa tinha uma fisionomia determinada por uma divisão entre dois blocos políticos e dois conceitos de vida. Toda a gente dizia e jurava que uma tal situação não se podia prolongar, que era uma ofensa à liberdade e à plena vontade de escolha dos povos — e neste ponto estamos todos de acordo. Mas agora parece ter-se tornado claro que nem sempre havia sinceridade em tão democráticas reivindicações, quando assistimos aos abalos causados na estrutura da Europa comunitária pela reunificação da Alemanha, com o consequente deslocamento do centro político europeu no sentido do Leste. Subitamente, alguns países da Europa, em particular a França, acordaram com uma ideia que nada tinha de objectivamente novo, mas que muito convinha a uma tentativa de reequilíbrio político: a Europa, disse-se, é também o Sul, é também os países periféricos,. a Espanha, Portugal, a Grécia, precisamente o que até aí, de uma maneira ou de outra, tinha sido mantido à margem.

Dir-se-á que ainda bem que tal aconteceu, ainda bem que a França acordou para a necessidade de ter da Europa uma visão ampla, uma visão completa. Mas não deve ser desprezada a hipótese, mais do que provável, de ter sido a França levada a essa atitude por motivos sobretudo egoístas, ao ver a Alemanha tornar-se o fulcro de algum modo hegemónico numa Europa ainda à procura da sua nova fisionomia. Tudo parecia estável e definido quando a unificação da Alemanha veio pôr em causa as verdades adquiridas. E é então que começa o namoro aos países do Sul. A França teme que a Europa futura lhe reserve um lugar subalterno, pois sabe que quem neste momento manda na Europa é a Alemanha.

Todo o processo se encaminha agora para Leste. A Alemanha terá lá o seu Mercado Comum praticamente em exclusivo, isto é, toda a faixa dos países que abandonaram o socialismo. Tudo indica que será a Alemanha o grande reformador tecnológico da União Soviética. A Alemanha vai ser a grande potência europeia do século XXI, é nas mãos da Alemanha que o futuro da Europa está.

Pessoalmente, nunca tive ilusões sobre uma pretensa qualidade nossa de parceiro em igualdade de condições com os outros parceiros da Comunidade Económica Europeia. Agora muito menos. Ao ponto de ousar admitir que este sentimento pessoal de cepticismo ou desconfiança começa a ser partilhado por um número cada vez maior de pessoas no nosso País. Até os nossos governantes começam já a perguntar-se se os recursos que se esperava nos viessem da CEE não passarão a ser desviados para Leste. Aquilo que toda a gente dizia querer, verificamo-lo agora com alguma ironia, afinal não o queriam todos, ou não o queriam da mesma maneira.

A situação europeia é duma tão intrincada complexidade que não é possível prever, com os dados actuais, o que virá a ser o nosso continente dentro de dez anos. Mas se a situação europeia deve preocupar-nos, mas tem de nos preocupar o futuro do nosso país, cujos governos, desde o início do processo de integração, se têm mantido perigosamente calados acerca do destino que nos espera numa economia integrada, de livre circulação de pessoas, bens e capitais. Ora, essa situação, cujos contornos ainda não podemos definir sequer por aproximação, vem, também ela, a propósito nesta reflexão que vimos fazendo sobre a liberdade, não a liberdade individual de cada um de nós, protegida pelas leis, desde que plenamente funcionem. Porque a experiência, a nossa e a alheia, já mostrou que a democracia, sendo o melhor dos sistemas, se concilia demasiado facilmente com o paradoxo de nela, por ela e com ela se poder fazer, democraticamente, aquilo que de democrático nada tenha.

Ora, uma das questões que tem que ver com a nossa liberdade de povo está, precisamente, no processo de limitação de soberania que, por força da integração europeia, tem vindo, de modo progressivo, a decorrer.

Havia no Leste, na relação da União Soviética com os países então ditos socialistas, uma situação que, vista do lado de cá, se prestava às mais ácidas ironias: o conceito de soberania limitada. Quer dizer, tais países, mantendo uma soberania nacional legalmente intacta, viatura no entanto limitada na prática por uma relação de efectivas e múltiplas subalternidades em relação à União Soviética. Isto era grave, isto era censurável, isto permitiu à URSS, em várias ocasiões, intervir militar, política e economicamente nesses países.

Hoje sabemo-lo melhor. Antes sentíamos, por vezes, uma desconfiança vaga, mas não queríamos acreditar, pensávamos que ao menos para alguns casos haveria outra explicação, mas agora que o tempo e as circunstâncias puseram os factos a claro, de um modo tão doloroso para tantos de nós, é tempo de começarmos a olhar para o nosso mundo mais próximo, a nossa própria casa, Portugal, enfim.

Há poucas semanas, numa mesa-redonda da Televisão, a eng.a Maria de Lourdes Pintasilgo, que foi primeira-ministra de um governo português, apresentando-se como alguém possuidor de experiência e conhecimento do processo de integração económica europeia, e agora também política, introduziu no debate um outro conceito, extremamente curioso, e que é, no fundo, e sem diferença, aquilo que antes se censurava à União Soviética no tratamento que dava aos países socialistas: a soberania limitada. Dizia a eng.a Pintasilgo que a nossa relação com a Comunidade Europeia era a de uma soberania delegada. Delegada, digo eu, no Parlamento Europeu, no Comité de Primeiros-Ministros e restantes instâncias das Comunidades.

Se aqui há trinta ou quarenta anos alguém em Portugal se atrevesse a dizer semelhante coisa, não lhe faltariam acusações de indignidade, de falta de patriotismo, e mesmo de traição. Qualquer proposta ou mera sugestão duma maior aproximação qualitativa com a Espanha desencadeava imediatamente todos os furores dos guardiões da integridade física e espiritual da nação: a Espanha vai absorver-nos, a Espanha vai engolir-nos, valha-nos Santa Aljubarrota.

Ora, o processo de absorção e de engolimento, se me permitem a palavra, está em curso. A soberania nacional já se encontra reduzida e reduzir-se-á ainda mais. A autoridade que, como povo, temos ou deveríamos ter sobre aqueles que nos representam, sejam eles a Presidência da República, a Assembleia da República, o Governo, e todas as outras instituições que têm a obrigação e a responsabilidade de velar pela soberania nacional, no respeito da nossa identidade cultural e histórica — essa autoridade, que aliás nunca soubemos exercer em pleno, passou a ter pouquíssima importância.

Basta ver que não é possível, não é rigorosamente possível, definir o nosso país um projecto nacional próprio, coerente, de acordo com as necessidades efectivas do povo português, tendo como objectivo a potenciação, a intensificação, a multiplicação das nossas capacidades e das nossas forças criativas. As ordens, por muito desagradável que seja aceitá-lo, passaram a vir todas de fora. E todo um projecto próprio de organização da nossa vida económica, social e cultural que nos está escapando das mãos.

E o que é particularmente elucidativo é que todas estas decisões foram tomadas sem prévia consulta à vontade da população. Esta geração de portugueses, falo dos que detêm um poder decisório, terá, mais tarde ou mais cedo, de ser confrontada com as suas responsabilidades neste abandono do que somos e do que fizemos ao arbítrio de interesses que em muitos casos contrariam os nossos próprios. Não reparam, cegos como estão pela ideia fixa duma Europa tecnocraticamente concebida, que o que fez a riqueza humanística deste continente não foi uma qualquer uniformização, mas a diversidade e a variedade.

Não esqueço que essa pluralidade, com o seu cortejo de contradições e conflitos, fez da Europa um continente em quase permanentes guerras, e que essas guerras, mesmo as que se apresentaram sob bandeira e justificação religiosas, não tinham outra razão de ser que não fosse a disputa da hegemonia sobre a Europa. Mas tínhamos talvez o direito de esperar, tendo em conta os inenarráveis sofrimentos a que foram sujeitas, durante séculos, as populações deste continente, que uma era de paz fosse também a era em que os povos, no pleno gozo da sua identidade e em diálogo fecundo uns com os outros, pudessem tomar o caminho da sua realização plena enquanto tais, até que a própria lógica do processo histórico levasse à definição e assunção de níveis de integração efectivamente adequados. Em vez disto, a que é que estamos assistindo? A administração em comum de um continente segundo as regras do mais óbvio capitalismo: quem mais tem, mais pode, quem mais pode, mais manda. Parece ter-se ganho a paz: resta ainda saber à custa de quê.

E agora permiti que peça a vossa atenção para o seguinte. O fracasso do sistema socialista, que em muitos dos seus aspectos não seria intelectualmente honesto negar, deve-se, talvez, à elementar evidência de que não poderá haver socialismo sem uma mentalidade socialista. Imaginar que é possível construir um sistema que exige renúncias dos cidadãos, todos e cada um, que implica necessariamente o reconhecimento dos interesses permanentes da colectividade sobre os interesses imediatos do indivíduo, e, por outro lado, pensar que bastaria melhorar as condições materiais da vida, proporcionar ensino gratuito a toda a gente, resolver a questão da habitação, da saúde e do ambiente, para que, por uma espécie de processo mecânico, ou, se se preferir, de sublimação, indivíduo e sociedade tivessem criado em si mesmos a mentalidade socialista — foi um erro de trágicas consequências. Estamos hoje numa situação em que é preciso aprender tudo outra vez e recomeçar. Não sei quando, nem sei como, nem sei onde.

Interessante é, porém, notar que tudo, ou quase tudo, que do lado de cá era visto, no lado de lá, como limitação das liberdades, dos direitos humanos, das soberanias nacionais, está a ser mais ou menos aplicado no quadro concreto das Comunidades Europeias. Para dar um só exemplo, a planificação, que no Leste era um pecado mortal, reveste-se, na Europa comunitária, das roupagens angelicais da virtude: que é, senão planificar, a racionalização comunitária da produção, da distribuição e do consumo?

E será preciso lembrar que em tudo quanto tenho vindo a dizer não me afastei do tema primeiro, o da liberdade? Um exemplo para confirmá-lo: será possível que numa Europa economicamente integrada e politicamente homogénea, um povo, este ou qualquer outro, possa escolher, o que se chama escolher, o seu sistema económico ou o seu regime político? Dou a resposta: Não, esse direito, ainda que se mantenha consignado nas constituições respectivas, perdeu já, no nosso tempo, eficácia prática. A diminuição da capacidade de opção e eleição é confirmada e acentuada pela própria lógica de ferro da organização comunitária, que irá impor governos de cor igual para economias de teor igual. Se é assim, e eu não vejo como se possa negá-lo, é justamente numa época em que tanto se fala dos direitos humanos, que, no campo concreto da Europa, se estão introduzindo limites à liberdade.

Deveríamos ganhar consciência de que somos um momento crucial da história portuguesa, de que não podemos fugir à responsabilidade de procurar compreender e influenciar o que hoje se passa, por assim dizer, à nossa revelia. Deveríamos deixar a atitude egoísta, hoje comum, de valorizar, por cima de tudo, aqueles interesses que possam servir a nossa vida pessoal, e que acabará por levar-nos à indiferença como forma de opção política. Não tarda muito que digamos: «A minha política é o dinheiro que eu ganho».

Estamos, penso eu, a delegar demasiado, estamos a entregar nas mãos daqueles que elegemos demasiadas coisas, estamos a usar de pouca ou nenhuma exigência na avaliação dos seus actos, como se, no fundo, apenas aspirássemos a ter alguém que nos governe e nos deixe ganhar a vida o melhor possível. Contentamo-nos com pôr um voto nas urnas de quatro em quatro anos ou de cinco em cinco anos, como o único e pouco trabalhoso dever cívico que estamos dispostos a reconhecer. Ao cumpri-lo, vemo-nos como cidadãos inteiros, e não reparamos que nem tudo o que parece, é: muitas vezes, as coisas que mais parecem ser são as que menos o são. A atenção, a crítica, a cidadania devem ser constantemente exercidas, sem dependência de actos eleitorais. Vivemos quase cinquenta anos de eleições sujas, e lutámos contra essa vergonha. Agora as eleições em Portugal são limpas e assim irão continuar, mas não caiamos nessa outra e igualmente perigosa forma de abstenção que é levar o voto à urna e cuidar que com isso fizemos tudo quanto nos cumpria. Porque é com o exercício total da cidadania pessoal e colectiva que se garante* na sua máxima expressão, a liberdade.

Se, para voltar ao tema dos militares do 25 de Abril, tivéssemos exercido plenamente, no momento exacto, essa cidadania que é a definição mais completa do ser social que somos, se tivéssemos exigido que fosse respeitada a dignidade profissional e política dos homens do MFA que arriscaram, torno a dizê-lo, a sua segurança e a sua vida para nos libertarem da opressão — não assistiríamos, hoje, ao espectáculo deprimente de ver desfilar esses homens de honra como meros tolerados, objectos duma permanente desconfiança por parte dos poderes instalados, os civis e os castrenses. Deveríamos ter acordado para protestar, e não o fizemos, não o fizemos a tempo, e o que não se faz a tempo é como se nem tivesse sido tentado. Não intervimos nesse caso como não intervimos noutros, A não intervenção cívica é talvez o maior erro da sociedade portuguesa nos nossos dias.

Ter-vos-ei surpreendido trazendo aqui palavras que não foram as do costume, alguém perguntará, mesmo, como é possível vir dizê-las quando este dia devia ser de festa, nada mais que festa, mas eu penso que o meu dever para convosco, para comigo também, só podia ser o de trazer à reflexão de quem me ouvisse o que penso ser verdade. E dizer a verdade é uma expressão do exercício da minha própria liberdade. Exerci a liberdade de ter uma opinião e comunicá-la, mesmo sendo para trazer-vos algumas questões dolorosas, algumas dúvidas, muitas preocupações. A verdade, se eu pude ser portador dela, nem sempre é cómoda. Mas o pensamento recto é dessa água que bebe.


Notas de rodapé:

(1) in «Os Rumos da Ficção de Saramago — Manual de Pintura e Caligrafia», Editorial Caminho, Dezembro de 1983. (retornar ao texto)

Inclusão 16/04/2019