MIA > Biblioteca > Sacchetta > Novidades
Eram cinco horas da manhã, aí no Brasil, quando Ceres Sacchetta me telefonou para me anunciar a morte de Hermínio, que eu já sabia doente há várias semanas. Com Sacchetta, ou o “Velho”, como muitas vezes o chamávamos na intimidade, trabalhei mais de uma vez na minha vida profissional, mas éramos amigos muito próximos há mais de 40 anos, desde que eu era menino.
Sacchetta foi durante muitos e muitos anos um dos melhores e mais importantes chefes de redação que o jornalismo de São Paulo produziu.
Homem de princípios rígidos, saído de duas cadeias na repressão política da década de 30, e, depois, na de 40 (ele seria preso novamente em 69, por ter publicado, nos “Diários Associados”, de que era então diretor, o manifesto de Carlos Marighella, com autorização, mas seu processo foi arquivado), ele travou sempre com a profissão de jornalista uma batalha árdua e difícil, enfrentando ao mesmo tempo os empregadores e a redação, que ele tentou incansavelmente moldar e domar.
Vem dessa atitude de rigidez consciente conduzida para ambos os lados do contraditório cargo de chefe de redação, os muitos mitos que se formaram em torno dele: um homem excessivamente autoritário, um profissional competente mas temperamental, um chefe difícil, exigente e duro com os subordinados, um homem movido por preconceitos políticos, um prepotente.
Nada disso, ou muito pouco disso, corresponde à verdade.
Hermínio Sacchetta era inflexível na cobrança da prestação escorreita dos serviços de seus redatores, repórteres e editores (ou chefes de secção como se chamavam então) mas ao mesmo tempo era um negociador imbatível, face a face com o empregador. Ele exigia muito de seus colaboradores, sobretudo dos direitos, mas exigia em maior medida de quem pagava os salários.
De uma coisa Sacchetta nunca foi acusado: de misturar sua posição política com o exercício profissional. Nunca se soube que alguém lhe tivesse atribuído a mistura das duas posturas, a existencial, cultural e política, e a profissional.
Sacchetta foi também o último dos grandes secretários de jornal a trabalhar praticamente sozinho na secretaria. Antes dele, trabalhava Carlos Laino Júnior e mais um ou dois, e depois dele viria a geração da qual eu fiz parte, mas os jornais já se modificavam, modemizando-se, segundo os modelos americanos ou ingleses, e as novas redações exigiam superestruturas extremamente complexas. De produtos quase diretos, fruto de uma concepção quase pessoal, as redações se transformariam pouco a pouco em vastos conjuntos que trabalham praticamente na base do consenso. Da mesma geração de Sacchetta, com a mesma força e talento, foi Geraldo Ferraz, que depois se voltaria prioritariamente para a crítica de arte, mas entre os dois havia uma enorme diferença.
Hermínio não tinha muitos amigos na área jornalística e nesse aspecto se parecia muito com outros jornalistas que ocuparam cargos de chefia durante anos seguidos. Suas amizades se estendiam a outras áreas, das ciências exatas, das ciências humanas e sobretudo da política.
Entre seus maiores amigos haviam sido o prof. Rocha Barros, da Faculdade de Direito, Aristides Lobo, jornalista e conhecedor de Marx, o filho de Rocha Barros, um físico conhecido, da USP, e outros.
Ex-secretário regional do Partido Comunista do Brasil, rompido na década de 30, preso, vítima de espancamento (foi submetido ao “corredor polonês”, que atualmente seria considerado uma carícia), tornara-se, na década de 40, importante quadro da Quarta Internacional no Brasil. Correspondeu-se durante muitos anos com dirigentes trotskistas de outros países, mas era homem tolerante com os adversários e compassivo nas atitudes. Nós gostávamos de dizer que ele se mirava no espelho do outro “Velho”, Leon Trotsky, com o qual guardava certa semelhança, na estatura e no olhar, no porte e no jeito de se exprimir, mas não tinha a inflexível postura daquele no trato com quem dele discordava.
Chamava os repórteres íntimos de “Ratazana”, um apelativo a um tempo premonitório e carinhoso, quando falava com os amigos punha a mão no ombro do interlocutor, tinha olhos claros, mãos pequenas, era agitado, nervoso. Estava fora do jornalismo há uns dez anos, mais ou menos, desde que Ruy Lopes foi buscá-lo, em casa, para ser editor do Exterior da “Folha”, cargo que deixou um ano depois por motivos de saúde.
Sacchetta formou muita gente, em sua longa vida profissional, gente a quem ele soube transmitir o sentido da dignidade da profissão — algo que não se aprende na escola — e também durante toda sua vida soube ter dezenas de amigos jovens e freqüentemente entusiastas.
Cláudio Abramo
Notas de rodapé:
(1) Texto publicado na Folha de São Paulo, 1.º de novembro 1982, p.6. (retornar ao texto)
Inclusão | 21/04/2014 |