O Caldeirão das Bruxas e Outros Escritos Políticos

Hermínio Sacchetta


Epílogo para um Romance à Revelia do Autor(1)


capa

Quando Joaquim Câmara Ferreira — já na roupagem de Toledo — o procurou em 1968, Hermínio Saccheta deve ter sentido surpresa e desconcerto. Apesar da tarimba, não esperaria que lhe batesse à porta o homem com o qual trocara os pesadíssimos insultos habituais nas dissensões internas dos comunistas.

O contencioso entre ambos remontava aos anos 30. Após a derrota do levante de novembro de 1935, o jornalista Sacchetta (nome de guerra Paulo) dirigia o Comitê Regional de São Paulo e foi cooptado para o Birô Político do Comitê Central do PCB. Mais jovem, Câmara Ferreira (nome de guerra Alberto) trocou o curso de engenharia pela profissão de revolucionário. Em 1937, o Comitê Regional Paulista divergiu da linha preconizada pelo Comitê Central a respeito das eleições presidenciais. A divergência se aprofundou e levou a discussões agressivas e intransigentes. Com o apoio da Internacional Comunista, Lauro Reginaldo da Rocha (Bangu), secretário-geral do Comitê Central, venceu a disputa: os divergentes de São Paulo foram expulsos do partido sob a acusação de renegados trotskistas, a mais infamante para um militante comunista. Acontece que, ao travar-se a luta interna — conforme relata Heitor Ferreira Lima — , nenhum dos divergentes do Comitê Regional paulista era trotskista e, em seguida, apenas um deles — Sacchetta, precisamente — aderiu ao trotskismo.

Tendo tomado posição ao lado do Comitê Central, Câmara Ferreira não podia mais continuar amigo de Sacchetta, com o qual se iniciara na vida partidária. A amizade se transformou em rancorosa inimizade. Da qual compartilhou Carlos Marighella, enviado a São Paulo pelo Comitê Central, em 1938, a fim de fortalecer a direção regional na luta contra os “fracionistas trotskistas”.

Expulso do PCB, Sacchetta esteve entre os fundadores do Partido Socialista Revolucionário (PSR), ligado à Quarta Internacional (trotskista), com pouco mais de uma centena de adeptos em São Paulo e no Rio, quase todos intelectuais. Na atividade de jornalista, seu ganha-pão, fez bem-sucedida carreira. Arraigada talvez pelo hábito da clandestinidade, mantinha imperturbável postura discreta.

Em 1952, o PSR se dissolveu. Em 1958, surgiu a Liga Socialista Independente (LSI), que editou o jornal Ação Socialista. Também um pequeno grupo, muito sectário, com poucos anos de vida. Sacchetta tomou parte nele, já com idéias algo mudadas com relação ao trotskismo. Do documento que escreveu provavelmente naquela época — Relatório Sobre Questões da Política Organizatória no Domínio Socialista — , salienta-se a análise do fracasso do trotskismo. Sua contribuição válida teria sido somente a crítica ao stalinismo. O documento propôs a formação de um partido marxista democrático, na linha de Rosa Luxemburg.

No começo dos anos 60, formou-se o Movimento Comunista Internacionalista (MCI), cujos escassos adeptos projetavam convertê-lo em partido. Embora não adotasse o trotskismo de maneira estrita, o MCI conservou seus princípios doutrinários fundamentais: prioridade ao internacionalismo, revolução permanente, ditadura do proletariado como objetivo direto.

Nos anos 1967-1969, já sob a ditadura militar, o MCI publicou o jornal clandestino Bandeira Vermelha, do qual saíram doze números. Comumente com dez ou doze páginas mimeografadas, difundia denúncias e argumentos contra o regime nascido do golpe de 1964. Ao mesmo tempo, tomava posição na explosiva controvérsia entre as correntes de esquerda. Principal redator do jornal, Sacchetta atacou o reboquismo e o oportunismo do PCB. Reconheceu a seriedade das facções dissidentes, porém fez crítica cerrada ao foquismo de Guevara e a todas as concepções de luta armada imediata desvinculada da preparação através das lutas de massas.

Por que, então, Hermínio Sacchetta aceitou o convite que lhe trouxe Câmara Ferreira de colaborar com a ALN? Justamente com a ALN, cuja orientação estratégica (nacional-libertadora) e tática (luta armada imediatíssima) era tão oposta àquela que vinha expondo insistentemente no Bandeira Vermelha?

Imagino que, como tantos naquela época, Sacchetta queria realizar algo bem concreto contra a ditadura militar. Não se satisfazia com a doutrinação e a propaganda em pequenos círculos. Pôs de lado discordâncias teóricas, afastou velhos agravos e passou a ter encontros regulares com o antigo companheiro, durante muitos anos separado pela inimizade política. Esteve também com Marighella e selou o pacto da reconciliação e da luta comum. Apesar de sexagenário já abalado por um infarto, resolveu correr riscos que, por experiência, não ignorava.

No final de janeiro de 1969, a direção da VPR teve urgente necessidade de tirar as armas expropriadas da Loja Diana do depósito secreto em que se encontravam. O depósito era conhecido de Hermes Camargo Batista, preso no episódio da pintura do caminhão em Itapecerica da Serra.

A direção da VPR pediu a ajuda da ALN e Câmara Ferreira recorreu a Sacchetta. Este arrumou às pressas um lugar seguro. Em três viagens do Fusca guiado por Renato Caldas, foi posto a salvo o arsenal de carabinas, revólveres 38 e caixas de munição.

Às oito e meia da manhã de 15 de agosto de 1969, um destacamento de doze guerrilheiros da ALN invadiu a estação transmissora da Rádio Nacional em Piraporinha, perto de Diadema (Grande São Paulo). Dominados os funcionários, um dos invasores interrompeu a ligação com o estúdio e ligou ao transmissor de ondas curtas uma gravação. Com o fundo musical do Hino da Internacional Comunista e do Hino Nacional, a gravação anunciou o nome de Carlos Marighella e reproduziu o manifesto lido por ele. Na meia hora em que a estação esteve sob controle da ALN, deu tempo para repetir a gravação.

No mesmo dia 15, o jornal paulistano Diário da Noite lançou uma segunda edição com o texto integral do manifesto de Marighella captado pelo setor de radioescuta. A decisão de publicar o manifesto partiu do diretor de redação Hermínio Sacchetta. Os demais jornais se limitaram a noticiar o episódio da invasão da Rádio Nacional de São Paulo, pertencente à Rede Globo. Pegada de surpresa, a Polícia não pôde recolher das bancas senão pequena parte da segunda edição do Diário da Noite.

Tão grave infração da censura não podia ser tolerada. A Polícia Federal prendeu o diretor de redação e o indiciou em inquérito criminal. Apesar da ficha de antecedentes nada recomendáveis do indiciado, o inquérito deu em nada e o suspeito de conivência subversiva foi solto após algumas semanas. Mas perdeu o emprego.

Até hoje, corre a versão da casualidade da participação de Sacchetta no episódio. Agora, deve-se esclarecer em definitivo que não houve casualidade. Sacchetta recebeu previamente cópia do manifesto de Marighella das mãos de Câmara Ferreira, avisado do que ia ocorrer e da participação que a ALN esperava dele. Como não era iniciante inexperiente, Sacchetta tomou as precauções de cobertura, na previsão de que podia vir a enfrentar pesadas complicações. Orientou o setor de radioescuta do seu jornal para captar a transmissão da Rádio Nacional e, tão “surpreso” quanto os colegas, decidiu desafiar a censura: furo de reportagem é dever profissional de jornalistas.

O furo teve repercussão internacional e a prisão do jornalista brasileiro provocou o protesto da Associação Interamericana de Imprensa.

Romance histórico em que Jorge Amado criou uma trama ficcional inserida na reprodução da época do Estado Novo, Os Subterrâneos da Liberdade têm um dos fios da narrativa na luta interna do PCB em São Paulo, à qual me referi neste capítulo. Com facilidade se reconhecem muitas pessoas reais, que comparecem no romance como figuras de ficção. Vitor é Diógenes de Arruda, o primeiro dos honrados pela dedicatória do autor. O gigante Gonçalo é José Martins e o historiador Cícero d'Almeida é o historiador Caio Prado Jr. Filho de um operário italiano com uma negra brasileira, Carlos é Carlos Marighella, logo se vê. Apolinário é Apolônio de Carvalho, também logo se vê.

Mas há um personagem a respeito do qual o romancista forneceu pistas superlativas para identificação do modelo real. Saquila — sobrenome quase homófono de Sacchetta — aparece no romance como líder da fração trotskista do Comitê Regional. Seu nome de guerra Paulo — o mesmo de Sacchetta na época. Vários personagens e o próprio narrador não lhe poupam qualificações aviltantes: lacaio da burguesia, bandido, traidor, delator, cretino, canalha. Um dos mais agressivos acusadores do renegado é precisamente Carlos, enviado pelo Comitê Central para reforçar a luta antitrotskista em São Paulo.

Identificação de tal maneira transparente e insultuosa obrigou Hermínio Sacchetta a sair da habitual discrição e publicar um artigo de revide ao glorioso romancista.

Os Subterrâneos da Liberdade representam a culminância da escola do realismo socialista na literatura brasileira. O autor pagou o preço que todos nós, militantes do PCB, pagamos ao stalinismo. Faltava-lhe a estatura psicológica e artística de Graciliano Ramos. Também militante do PCB e admirador de Stalin, Graciliano não se dobrou aos prejulgamentos e deu ao trotskista Gikovate tratamento amistoso em Memórias do Cárcere. Mas Jorge Amado tomou depois conhecimento dos crimes de Stalin, rompeu com o stalinismo e se afastou do PCB. Teria várias maneiras para reabilitar, não a Sacchetta, que não precisava ser reabilitado, mas a si próprio, com a admissão pública da injustiça cometida contra um homem de carne e osso. Nunca deu este passo.

Romance, mesmo histórico, é ficção. Nada há a alterar. Nas muitas reimpressões de Os Subterrâneos da Liberdade, o leitor sempre encontra o vilão Saquila inimigo do herói Carlos.

Na vida real, Sacchetta (modelo de Saquila) e Marighella (modelo de Carlos) se reconciliaram para travar o mesmo combate nas trevas da pior opressão que já se abateu sobre o povo brasileiro desde a conquista da Independência. À revelia do romancista, acrescentaram inesperado epílogo à sua narrativa.

Hermínio Sacchetta arriscou a vida na luta contra a ditadura militar.

E Jorge Amado: esteve à altura do personagem?

Jacob Gorender


Notas de rodapé:

(1) Texto publicado no livro Combate nas Trevas: A Esquerda Brasileira das Ilusões Perdidas à Luta Armada, São Paulo, Ática, 1989, pp. 161 a 165. (retornar ao texto)

Inclusão 21/04/2014
Última alteração 23/02/2016