O Caldeirão das Bruxas e Outros Escritos Políticos

Hermínio Sacchetta


Depoimento Sobre Hermínio Sacchetta


capa

Conheci Herminio Sacchetta por acaso. Um amigo, antigo colega do curso de madureza, Jussieu da Cunha Batista, trabalhava como jornalista em A Folha da Manhã. Sempre que eu podia, passava pela redação, para batermos um papinho. Isso por volta de 1942 e 1943. Não me lembro exatamente quando fui apresentado ao Sacchetta. Ele era o secretário-geral e ia com freqüência em busca de um ou de outro jornalista, para dar ordens e supervisionar a produção. O Jussieu me apresentou ao Sacchetta em uma dessas idas e vindas. Ele sentia grande simpatia pelos jovens da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e abriu o seu encantador sorriso, ao saber que eu estudava Ciências Sociais e estava no fim do bacharelado. Passei a ser incluído no seu auditório de rotina e convidado para conversar com ele em sua sala. Eram conversas rápidas, interrompidas por sua tremenda carga de trabalho e pela variedade de assuntos que devia enfrentar a cada momento. Daí ao cafezinho fora do jornal, às conversas mais prolongadas e à amizade, que durou até ao fim de sua vida, foi um passo. Como Sérgio Milliet convidou-me para escrever em O Estado de S. Paulo, no qual comecei a colaborar no início de julho de 1943 (com três artigos sobre “O Negro na Tradição Oral”), ele estrilou. “Pombas, nós nos encontramos quase todos os dias e você vai dar a sua colaboração ao Estadão. Lembrei-lhe que ele nunca me convidara para escrever na Folha, que nossas conversações eram intelectuais e políticas e não me movia o interesse de redigir artigos para vários jornais. Mas, que estava às suas ordens. Ele fez o convite formalmente, muito sério. O primeiro artigo saiu em 19/08/1943, sob o título “Mais América”. Isso estreitou mais os contactos e a amizade.

Ele era um homem de atração magnética. Não conhecia os meios termos. Ia direto ao que fosse central. Como eu, estava envolvido na luta subterrânea contra a ditadura Vargas. Só que eu agia ao sabor das oportunidades, de informações de colegas da Faculdade de Direito sobre encontros clandestinos e às vezes não confiava nos interlocutores, pois não possuía intimidade ou familiaridade com eles. Os estudantes da Faculdade de Direito eram os campeões da oposição a Vargas e à repressão policial. Misturava-me com eles e ousava com eles as escaramuças de rua ou conspirações às quais comparecia mais gente, inclusive políticos profissionais, intelectuais e burgueses radicais. O Sacchetta abriu-me outra via de combate, mais secreta e com propósitos revolucionários. Aos poucos, alarguei minha convivência nessa área e acabei incorporando-me ao PSR(1). A militância, que ficava ao meu alcance, não era intensa e profissional. Contudo, o fato de pertencer aos quadros da IV Internacional abriu-me novas responsabilidades e esperanças, outros horizontes. Vargas e sua ditadura eram um alvo imediato. A revolução proletária fixara-se como o objetivo essencial. Se não fizemos uma revolução — nem contra o Estado Novo nem contra a ordem existente — o meu pensamento, as minhas orientações políticas e a minha personalidade sofreram uma mutação súbita. O socialismo vago, reformista e utópico, iria ceder lugar a uma militância política disciplinada, misturada com o contacto com trabalhadores e intelectuais trotskistas e com a agitação artesanal contra a ditadura. Vi-me envolvido na elaboração de um jornal mimeografado, do qual nos encarregávamos Sacchetta, José Stacchini e eu (rodado de madrugada em minha casa), na sua distribuição e em uma célula da qual nós participávamos com Alberto da Rocha Barros, Plínio Gomes de Mello e Victor Azevedo (por pouco tempo, por ela andou Luiz Washington Vita, inquieto e em busca de seus verdadeiros caminhos, que não se cruzavam definidamente com o socialismo revolucionário). Para Sacchetta, eu me tomei “o Professor”. Vivemos várias experiências contraditórias juntos, inclusive a criação da efêmera Coligação Democrática Radical e o desvanecimento das esperanças de que a dissolução da ditadura nos levaria mais longe do que a uma sub-democracia burguesa tutelada pelos militares, sob o governo do marechal Eurico Gaspar Dutra.

O que havia de melhor no mundo subterrâneo das atividades políticas, que perduraram além da queda da ditadura Vargas, era o convívio intelectual e político que nós mantínhamos com certa assiduidade e intensidade. Tornando-me assistente da Faculdade e aluno de pós-graduação da Escola Livre de Sociologia e Política, eu enfrentava encargos intelectuais, discentes e docentes dispersos e pesados. Não podia ser um militante devotado a todos os papéis e obrigações e, ao mesmo tempo, logo entraram em cena as teses (de mestrado e de doutorado), que iriam ser uma fonte de atrito constante com os companheiros. Tendo de trabalhar para ganhar a vida, pois o salário de assistente era baixo demais, combinava tarefas no mundo prático com os artigos para a Folha e o Estado, que roubavam o tempo que o pessoal queria ver investido na ação política. Sacchetta sempre era o meu advogado e buscava justificar-me e só tive um conflito sério, por isso, com Victor Azevedo. A frente legal ficara muito débil e a ação subversiva, propriamente dita, demasiado confinada. Contudo, os debates eram sérios e profundos; a documentação externa, vinda do movimento internacional, alargava a visão dos problemas da revolução mundial e dos seus entraves. Era nisto e nos lançamentos da Editora Flama que se concentravam os verdadeiros vínculos com a aprendizagem marxista e o processo revolucionário como aspiração política decisiva. Coube-me traduzir a Contribuição à Crítica da Economia Política. O grupúsculo funcionava como uma microuniversidade e impelia-me a descobrir por minha conta o jovem Marx e a desvendar a sedução do seu pensamento científico. Até que, por iniciativa do Sacchetta, atendendo às restrições que os companheiros faziam ao pouco tempo que eu podia destinar às nossas atividades obrigatórias, fui liberado da participação militante. Ele nos convenceu que eu seria mais útil na universidade e produzindo como universitário. Não tinha dúvidas sobre a minha firmeza e lealdade. E via com bons olhos que eu servisse à mesma causa por outros meios.

Esta confissão não busca colocar-me como o personagem principal. Ela revela o Hermínio Sacchetta de corpo inteiro, em sua mente e em seu coração. Um homem generoso e severo, altruísta na dedicação à luta de classes, à revolução proletária no Brasil e no plano internacional. Prendíamo-nos a uma utopia e ele mais que qualquer outro. Ela constituía a razão de ser de sua vida. Sedutor como pessoa e, ao mesmo tempo, capaz de exercer uma tirania desconcertante sobre alguém que se convertesse em alter ego (como sucedera com Stacchini). Quase consciente de seu narcisismo, porém tão íntegro e espontâneo na exteriorização do egotismo, que tudo se reduzia a um “charme” pessoal. Adorava o “Velho”, sem queimar nenhum incenso no altar dessa veneração. Na melhor tradição socialista, situava a cultura acima de todos os valores. Admirava com sinceridade o talento e incentivava os jovens com afinco. Sonhava com a autonomia ideológica dos trabalhadores, com a auto-emancipação coletiva que iria alterar os rumos da civilização. Compensava suas incertezas através de um dogmatismo sem ranços doutrinários, pois ele nascia da convicção inabalável de que a luta de classes e a revolução socialista iniciariam a era de um humanismo de novo tipo. A sua cultura teórica estava abaixo de sua responsabilidade de dirigente e de suas tarefas práticas. Mas estava muito acima da média dos militantes comunistas da época e do atrasado campo político que a situação histórica nos reservava. Trotsky e o trotskismo brotavam do íntimo de sua personalidade, objetivando-se como um refúgio e uma reação compensatória diante de um ambiente de dominação burguesa tosca e de brutalização dos oprimidos, subaltemizados e superexplorados. Não eram uma simples fuga do real ou uma alternativa ao estalinismo. Constituíam uma espécie de caminho real, que permitia enfrentar a tragédia sem ceder um passo à violência destrutiva dos de cima, sem perder a confiança na classe revolucionária, tão fraca e tão pouco preparada para desempenhar suas tarefas históricas de demolição da ordem e de construção de uma nova sociedade.

Esse homem defrontou-se com a ética do revolucionário nas piores condições imagináveis. Lançou-se a várias aventuras e a muitas realizações admiráveis. Foi destroçado pela máquina repressiva de “preservação da ordem”, primeiro pela valorização e decapitação do talento, mais tarde pelo braço comprido da ditadura militar. Adivinhava-se o seu drama interior, as frustrações, a tortura mental que o dividia. Todavia, nunca demonstrou qualquer renúncia às idéias e às posições assumidas. Também nunca revelou o desalento que se generalizava. Permaneceu inteiriço, sempre jovial e decente no trato humano — e sempre pronto para “o último sacrifício”, que não teve a felicidade de fazer. A morte colheu-o antes que novas esperanças denunciassem que a repetição do passado, pela qual atravessamos, não era o fim de sonhos e ilusões. Esses anos, que vão da década de 1940 ao término da década de 1960, talvez tenham sido os mais fecundos de sua auto-superação e de sua plenitude — os anos do maior ardor revolucionário, embricados a expectativas aparentemente sólidas de uma promessa socialista no futuro próximo. Caímos em um ardil da história. Mas Hermínio Sacchetta preservou o seu domínio interior e a força que projetava a sua imaginação para a frente, sem dobrar-se às vicissitudes que o feriram e amarguraram. Enfrentou-as com serenidade e venceu-as pelo amor próprio, nascido do superego e do orgulho de um marxista revolucionário inquebrantável.

Hoje, que se pensa sobre ele ligando-o à sua atividade política e ao seu significado histórico, duas coisas merecem reflexão prioritária. Primeiro, as distinções que se erguem ao confronto entre o trotskismo intelectualista e o militante. As figuras que marcaram o primeiro eram de tal peso, que ofuscaram os que se dedicaram ao último. Não obstante, foram estes que desencadearam o movimento no meio operário e entre os jovens, os estudantes e as mulheres, que aplicaram as técnicas acessíveis de agitação e propaganda, que recorreram à luta direta contra as duas ditaduras. Também intelectuais, timbravam por reproduzir, em um meio acanhado e tosco, as aspirações do revolucionarismo profissional de vanguarda. Falharam, porém ficou o exemplo. Segundo, Hermínio Sacchetta suscita um problema específico de interpretação da história política. Os cientistas sociais distinguiram, sob vários ângulos, a personalidade-status, a personalidade básica, a personalidade democrática, a personalidade autoritária etc. Poder-se- ia acrescentar outros conceitos. O que importa, no caso, é a pergunta: o que leva um homem a resistir, ao longo de sua vida, a todas as provações e “evidências negativas”, preservando intocável sua integridade política?

Penso que, sob o capital industrial e as pressões destrutivas da opressão ditatorial, a resposta de conteúdo político possui uma natureza psicológica. Não existia, para os trotskistas, um nicho autoprotetivo e as defesas das solidariedades de um forte movimento coletivo. A pessoa ficava largada a si própria, ao seu potencial ou propensão de identidade abstrata com uma utopia revolucionária. Esta aparece, pois, como o equivalente do “nós coletivo”, a fonte imediata dos dinamismos psicológicos de autopreservação e de auto-afirmação. Mas, há um contraste a salientar. O burguês típico se protegeria através de dinamismos psicossociais centrados na situação de interesses, ou seja, na ideologia strictu sensu. O marxista de extrema-esquerda, sob as incompreensões, as difamações e os ataques que afetaram os trotskistas, dependia da formação de um horizonte intelectual e político centrado na pureza da utopia. Ela devia ser vivida nos limites extremos de tensão com a ordem social vigente e com o vir a ser representado como gestação da sociedade nova. Portanto, o socialismo potencial, contido na variante firmemente revolucionária da personalidade democrática, explica a vitória sobre traumas, frustrações e decepções que “desmontariam” o equilíbrio do eu nos casos comuns de in- conformismo ou de rebelião destituídos de idêntica polaridade utópica.

Lembro-me de um encontro pungente com Hermínio Sacchetta, na esquina da rua 7 de Abril com a rua Conselheiro Crispiniano. Ele me tratou com cortesia exagerada, como o Professor, e disse algumas amabilidades ao Vladimir, seu filho, a meu respeito. Eu repliquei. Ele estava ressentido e arrasoado. Tivera de arcar com as conseqüências de uma demonstração de coragem, descrita por Jacob Gorender, que a ditadura militar punira com severidade atenuada. Mas fora despojado do seu emprego e enfrentava grandes dificuldades financeiras e profissionais. Apesar da insegurança, estava erecto, como sempre, mantinha o seu ar varonil sem arrogância e demonstrava fé na ciência e no porvir. Não era o movimento proletário revolucionário que o sustinha. Mas o socialismo como chama interior, como convicção de que muitos precisam tombar — e é normal e necessário que tombem — para que “a revolução triunfe”.

Florestan Fernandes


Notas de rodapé:

(1) Partido Socialista Revolucionário (retornar ao texto)

Inclusão 21/04/2014