1943, São Paulo enfrenta a censura
(depoimento ao repórter Noé Gertel)

Hermínio Sacchetta

10 de janeiro de 1979


Primeira Edição: Jornal Folha de São Paulo

Fonte: http://almanaque.folha.uol.com.br/memoria_6.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Hermínio Sacchetta é um exemplo típico da época em que o jornalismo era exercido menos como profissão e mais com paixão. Entregou-se a ele com a devoção que o seu dinamismo e a sua cultura lhe conferiam, colocando a seu serviço uma imaginação que supria as deficiências técnicas de outros tempos.

"Naquela época —diz ele— não havia os recursos de hoje nem o vezo burocrático que atualmente emperra um pouco as redações."

Começou a trabalhar em jornal antes de 1930, como "foca" do "Correio Paulistano". Meses depois exerceu o magistério e, em 1932, passou a exercer atividades políticas "não muito ortodoxas".

"Passei a levar uma vida singular, para um professor. Com a chamada "revolução Constitucionalista" de São Paulo redobrei minha ação política porque eu era contra esse movimento, que considerava contra-revolucionário, isto é, era para mim um movimento que visava a repor o Brasil nos alicerces das oligarquias e do latifúndio de antes de 30. No seu conteúdo, o movimento de 32 era isso. Em seguida, por coerência de minhas convicções, passei a militar no movimento operário, participando ativamente dele até ser preso e condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional. Fui condenado a um ano e três meses no primeiro processo e a 3 anos num segundo.

Esta segunda sentença caiu, pois recorri, provando que o delito que me imputavam era o que se chama de delito continuado. Saí da cadeia em novembro de 1938, no dia 16 do mesmo mês ingressei nas "Folhas", onde fiquei quase sete anos."

Nas "Folhas" Sacchetta começou no setor internacional, cuja editoria assumiu em seguida. Passou depois para o cargo de subsecretário e logo depois para o de diretor da redação da "Folha da Manhã" e da "Folha da Noite", muito embora figurasse no cabeçalho o nome de Guilherme de Almeida.

"Minha gestão foi muito bem sucedida. A venda avulsa começou a subir muito. Basta dizer que peguei a "Folha da Manhã" com 15.000 exemplares e, quando deixei o emprego, ela tinha atingido 80.000 exemplares. Como consegui chegar a isso? Em primeiro lugar graças aos companheiros que encontrei, jornalistas dos melhores, que se dedicavam realmente a profissão. Em segundo lugar, ao momento, que era propício, pois o mundo entrava em guerra. Minha situação, é claro, também melhorou muito: de 300 e poucos cruzeiros que comecei ganhando, passei, no cargo de diretor, a ganhar 5 mil cruzeiros e mais 2 mil como gratificação."

A guerra realmente proporcionava assunto e provocava interesse no público. A "Folha da Noite", vespertino, chegava a tirar 8 edições diárias, cada uma delas trazendo na primeira página as notícias mais importantes do curso do conflito.

"Os recursos técnicos eram escassos. O que eu fazia era acompanhar o processo de desenvolvimento da guerra com atenção, o que me permitia prever os acontecimentos. Dessa forma, eu preparava, antecipadamente, a primeira página, com os clichês dos títulos prontos. Era acontecer e eu mandar rodar as edições sucessivas. Evidentemente, eu tinha um corpo de redatores dedicados, entusiastas. Sem eles nada teria sido possível fazer com êxito."

Na realidade a cidade viu-se diante de um novo jornal, agressivo, dinâmico, "furador", sem concorrentes. Desencadeava campanhas, com extrema liberdade.

"Nunca sofri qualquer tipo de restrições por parte dos donos do jornal. Otaviano Alves de Lima, o patrão, devo reconhecer, ofereceu-me a mais ampla liberdade de ação e toda sua confiança. Era isso que me permitia desencadear campanhas que tiveram êxito incomum. Por exemplo, lembro-me de uma campanha contra uma quadrilha que arrecadava fundos contra tuberculose.

Era uma entidade com um nome pomposo, que alugava casas, lá instalava um tuberculoso e saia pela cidade pedindo esmolas para sustentar os doentes. Puro gangsterismo. A "Folha da Noite" perseguiu o assunto durante semanas, creio que até meses e desmascarou o bando, até que o governo federal interveio e fechou a entidade. Eis aí um caso do jornal defendendo o interesse público. Outra campanha da qual me lembro foi a que enfrentou um poderoso grupo que pretendia monopolizar o pescado no litoral. O grupo se organizou e começou a atacar, por vezes com violência, os pescadores artesanais, com o objetivo de se apoderar de toda a atividade pesqueira. O jornal investigou, combateu, e o monopólio foi fechado por decreto do governo federal."

As vezes a sorte ajudava. Como na madrugada em que Sacchetta chegou em casa e ligou o rádio, em ondas curtas, ouvindo a notícia da invasão da Normandia pelos aliados. Voltou para o jornal e, juntamente com o plantão da noite e mais dois ou três companheiros que conseguiu mobilizar, pôs na rua uma edição extra com a notícia da abertura da segunda frente na Europa. Antes passou a notícia à radio Record, com a qual o jornal tinha convênio, que a irradiou. Antes do amanhecer, a cidade inteira sabia do desembarque aliado, iluminando todas as casa. "Foi um furo e tanto", diz Sacchetta, já que os outros jornais só apareceram com a edição extra muitas horas depois.

"Da censura do Estado Novo pode-se falar muito. Era uma censura presente, sem dúvida, e como toda censura, incoerente, absurda, por vezes ridícula. As ordens vinham por telefone: nada sobre isso, nada sobre aquilo. É claro que nem sempre eu cumpria ordens, o que causava transtornos ao jornal e a mim. Muitas das ordens da censura eram pedidos de figuras da sociedade ou de altos funcionários do governo. Vinha uma ordem: não dizer que fulano de tal cometeu suicídio e sim que morreu de um ataque cardíaco. Eu dava suicídio. E vinha a tempestade. Do Rio eu recebia telefonemas do capitão "Arvoredo", que era o capitão Amilcar Dutra de Menezes, diretor do DIP, incumbido da censura. Às vezes ele vinha a São Paulo, pessoalmente, para me destratar. Meu argumento era um só: dava os fatos, cumpria minha obrigação profissional. Esse capitão era uma figura curiosa. Certa vez resolveu escrever um livro. Publicou-o e baixou uma ordem peculiar: deu toda a liberdade para que a crítica literária dos jornais falasse sobre o livro. Aconteceu então que o Mário Martins, do Rio, desancou a obra "literária" do diretor do DIP, chamando a atenção para um fato. Numa das passagens do livro o capitão falava de um "arvoredo que contemplava da janela". Não era arvoredo coisa nenhuma. Era uma árvore só. Nunca mais o capitão Amilcar Dutra de Menezes deixou de ser chamado, entre nós, de "capitão Arvoredo". E depois da crítica do Mário Martins veio nova ordem da censura: nada sobre o livro. E não merecia nada, mesmo."

O vespertino "Folha da Noite" era agressivo quando se tratava do interesse do público. Uma de suas campanhas foi contra a proliferação das chamadas siderúrgicas. Tão logo Getúlio Vargas falou em siderurgia nacional, surgiram em São Paulo dezenas de companhias siderúrgicas, de vários feitios, vendendo ações a prestação para pessoas de baixos recursos. Sacchetta narra:

"As "Folhas" iniciaram o ataque, desmascarando diariamente esses grupos, alguns dos quais eram sem dúvida ligados a pessoas da alta administração estado-novista. Justiça seja feita, pouco tempo depois um decreto de Getúlio fechou todas as possibilidades a esses grupos. Fizemos campanhas contra gente poderosa também. Algumas, senão as principais manifestações "queremistas", por exemplo, eram financiadas e organizadas por uma grande companhia paulista. Pois nosso jornal deu nome aos bois. Isso poderia contrariar frontalmente os interesses comerciais da empresa jornalística, mas acontece que era assunto. A direção da empresa "Folhas" não interveio nem me proibiu o assunto."

"Certo dia o Otaviano Alves de Lima apareceu na redação para me comunicar um fato importante: havia vendido o jornal. Vendera para um grupo liderado por Costa Neto. O dr. Nabantino Ramos, iria assumir a direção da empresa. Respondi ao Otaviano que as "Folhas", também naquele momento, acabava de perder seu secretário-geral. E eu repetiria esse gesto hoje, se o jornal em que trabalhasse fosse vendido, na minha opinião, para um governo ditatorial. O fato é que eu saí e comigo saíram mais de 50 companheiros. Fundamos um novo diário, o "Jornal de S. Paulo", financiado pelo grupo da rádio Record. Era um jornal que seguiria a mesma orientação que eu já havia imprimido às "Folhas". O "Jornal de S. Paulo" durou um ano e meio ou dois anos, não conseguimos resistir mais por falta de publicidade. Novamente sem emprego, passei para os "Diários Associados", onde assumi a direção a convite de Assis Chateaubriand, impondo, porém, uma condição. Era diretor dos "Diários" o Alvimar Caldas, que estava de licença, doente. Fiz o Assis me escrever uma carta, na qual dizia que o cargo era meu enquanto o Caldas estivesse doente. Tão logo pudesse assumi-lo, eu o deixaria. Lá fiquei, contando com a colaboração de excelentes profissionais, o que me permitiu aumentar a venda avulsa em pouco tempo. Algum tempo depois saí e fui para o "Shopping News", onde trabalhei durante 9 anos. Saí também, por questões de dignidade profissional: o filho de um dos diretores do jornal queria dar ordens à redação. Não deu para permitir isso. Voltei para os "Diários" e houve minha prisão."

Sachetta narra o episódio que provocou sua detenção pela Polícia Federal.

"Creio que foi em 1968. Os terroristas, sob o comando de Carlos Marighella, haviam assaltado as instalações da Rádio Nacional e de lá transmitiram uma longa mensagem, lida duas vezes pelo próprio Marighella. Eu publiquei o fato e a mensagem. Era, evidentemente, um assunto jornalístico e que já era do domínio público, pois uma estação de rádio transmitira a mensagem por duas vezes. A própria Rádio Nacional emitiu um comunicado se desculpando perante os ouvintes e narrando os fatos. Publicando, já em segunda e terceira mão um assunto dessa ordem, o jornal que eu dirigia não estava mais ameaçando o regime, as instituições nem estava subvertendo coisa nenhuma. Pois fui levado à Polícia Federal, onde um delegado me tratou grossamente. E fiquei preso alguns dias. Foi também chamado o Edmundo Monteiro, diretor da empresa, também recebido com grosseria. E ocorreu algo interessante. Esse mesmo delegado, tempos depois, foi demitido pelo AI-5, e além de demitido, preso, em Recife, para onde foi transferido. Em consequência disso, deixei mais tarde os "Diários", voltei anos depois para a "Folha de S. Paulo" onde coloquei minha experiência a seu serviço e pouco tempo depois deixei este jornal."

Do ridículo à incoerência

Durante o Estado Novo a censura era exercida com certo rigor. As ordens eram telefônicas e por vezes transmitidas pessoalmente, pelo censor, que visitava as redações dos jornais. Algumas dessas ordens são curiosas, pela incoerência.

EM JANEIRO DE 1943:

EM FEVEREIRO:

MARÇO:

ABRIL:

MAIO:

JUNHO:

JULHO:

AGOSTO:

SETEMBRO:

OUTUBRO:

NOVEMBRO:

DEZEMBRO:

MARÇO DE 1944


Inclusão: 19/05/2021