Stalinismo é Comunismo?

Francisco Martins Rodrigues

2003


Primeira Edição: Política Operária nº 91
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
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Os novos stalinistas, incapazes de situar historicamente a revolução russa, adoram-na sem a compreender.

Pouco tempo depois de ter aqui escrito sobre a questão do “stalinismo” (PO n.º 89), vejo-me forçado a voltar à carga. O 50.º aniversário da morte de Staline evidenciou em certos meios de esquerda uma nítida tendência para a recuperação da sua figura e da sua política. Os artigos do Avante, no seu habitual estilo gaguejante(1), traduziram ao nosso nível a série de celebrações internacionais, entre as quais as promovidas por uma Conferência Internacional de partidos “marxistas-leninistas”(2).

Mas não só. A questão diz-nos também respeito porque, na corrente mais afecta ao comunismo revolucionário, estão a surgir opiniões semelhantes: “Staline não seria tão atacado se não fosse um grande revolucionário”, “os excessos do stalinismo, se enquadrados na situação da época, não merecem condenação porque eram necessários”, “se Staline é um papão para a burguesia, é bom para nós”.

Claro, isto exprime um desejo de desforra, de sair da impotência a que chegámos. Hoje, quando as “grandes causas” da esquerda se ficam, em geral, pela oposição leal e retórica aos governos que arrastam o mundo para a catástrofe, não admira que a imagem de força de Staline seduza o espírito de muitas pessoas com simpatias comunistas.

Louvar Staline é para eles uma forma de manifestar rebeldia contra os propagandistas assalariados do sistema, que reclamam, armados em humanistas, a condenação do demónio Staline para fazer-nos ajoelhar perante a democracia capitalista: Staline foi um “monstro”, igual a Hitler; mas os governantes ocidentais que têm vindo a massacrar milhões de inocentes, da Coreia ao Vietname, da Argélia à Guatemala, da Indonésia ao Chile, esses, quando muito, cometeram “erros”!

Intimam-nos a reconhecer os nossos pecados “stalinistas” passados para nos pôr à defesa e meter-nos, obedientes e arrependidos, no campo da ordem. Por isso respondi ao inquérito do Expresso “Tenho muita honra em ter sido stalinista”. Acho que era a única resposta a dar. Não temos que nos desculpar por termos apoiado a União Soviética quando ela era anti-imperialista; estávamos enganados quanto às realidades da URSS mas não errávamos ao escolher a nossa burguesia como o inimigo.

O problema, porém, é que o culto de Staline que agora renasce não é só o apego ingénuo ao passado do movimento comunista e uma forma equivocada de repudiar a barbárie capitalista, uma espécie de nova religião dos oprimidos. Esta imagem mitificada do passado transporta consigo noções muito precisas sobre o que deve ser a política e os objectivos dos comunistas. Staline é reverenciado como o artífice de uma época “áurea” do movimento comunista. A “questão Staline” não toca apenas na avaliação que se faz da sua pessoa, nem sequer diz respeito apenas ao regime que existiu na ex-URSS: envolve toda a concepção da revolução e do socialismo. Ou seja, não tem a ver só com o passado, diz respeito sobretudo ao que se pretende para o futuro.

E será bom começarmos a tomar consciência de que a concepção que a PO defende a este respeito é radicalmente oposta à dos adeptos do stalinismo.

Por isso, não têm razão os camaradas que tentam deixar a questão em suspenso com o argumento de que ainda seria cedo para poder avaliar com objectividade o papel de Staline, ou de que “é natural os comunistas terem opiniões diversas sobre este assunto”. Creio, pelo contrário, que não é nada “natural” e que nos deve preocupar o facto de termos noções tão diferentes do que deva ser a revolução e o socialismo — afinal o alvo da nossa luta.

E como os debates e artigos que ao longo de dezoito anos têm passado por estas páginas, pelos vistos, não chegaram para convencer diversos camaradas, só me resta insistir em alguns aspectos talvez caídos no esquecimento.

Staline estava certo, dizem-nos, porque só a sua dureza permitiu que a construção do socialismo fosse por diante. Para entender a sua política, deveríamos ter em conta que se tratou da ditadura do proletariado, daquele “período de transição” de que falava Marx, período de luta aguda, sem a qual não se pode chegar à extinção das classes e de todos os vestígios de relações capitalistas.

Que o socialismo só pode ser um período histórico de luta de classes acirrada e que nele não haverá lugar para a confraternização evangélica com que sonham os parvos é uma conclusão óbvia para os marxistas. Expropriar a burguesia, desmantelar a máquina do Estado, extirpar os privilégios, os polvos da burocracia e do militarismo, instituir uma nova forma de vida e de governo — não se vê como isso possa ser feito sem violência. Uma ditadura é imprescindível para extirpar o capitalismo. A questão, porém, é: ditadura de quem sobre quem? E que tipo de ditadura?

Se formos ao fundo do pensamento nunca claramente expresso dos entusiastas do “modelo soviético”, vemos que eles imaginam a ditadura do proletariado como um regime em que um aparelho de Partido-Estado de tipo militarizado (a “disciplina proletária”) exerce poder absoluto sobre a sociedade. Isto, reconhecem, pode ser limitado do ponto de vista da “democracia socialista”, mas na “fase inferior do comunismo” a vontade das massas “precisa da mediação da sua direcção política” e é “inevitável uma certa autonomia do poder político sobre as massas”. E como o partido, “força representativa do proletariado”, é “guiado por uma teoria científica”, há condições para tudo marchar em boa harmonia em direcção ao comunismo, etc., etc.

Isto, porém, não passa de sofismas para iludir o óbvio: o regime que vigorava na URSS nada tinha de comum com a “fase inferior do comunismo” a que Marx se referia. Pela simples razão de que o aparelho de Estado, em vez de definhar, agigantava-se, e as massas proletárias, em vez de intervirem em escala crescente na vida política e social, eram reprimidas com mão de ferro. As criações autenticamente revolucionárias do ano de 17 tinham todas desaparecido na voragem da guerra civil, da invasão, da catástrofe económica, e do que se lhe seguiu. Se abstrairmos das fórmulas das cartilhas de “marxismo-leninismo” com que alguns se auto-hipnotizam, e olharmos para a realidade da URSS ao longo dos anos 30, temos de concluir que o regime tinha já adquirido todos os contornos de um poder despótico, embora com as características peculiares ditadas por um capitalismo estatizado.

Não poderia ter sido de outro modo, dado o atraso da Rússia e as forças gigantescas, internas e externas, que se levantaram contra a revolução? Sem dúvida. Para nós está claro que o esvaziamento dos sovietes e a concentração de todo o poder na direcção do partido, a conciliação com os camponeses, primeiro, e a posterior expropriação violenta dos camponeses, o regime ditatorial, foram as únicas saídas que se abriam aos que tinham conduzido a revolução. Ou isso ou chamar os capitalistas de volta. A questão está em saber se estas características, absolutamente inevitáveis naquelas condições, definem uma revolução socialista e realizam a ditadura do proletariado ou se correspondem a outro tipo de revolução e a outro tipo de poder.

O que os actuais “marxistas-leninistas” fazem é tomar as características necessariamente distorcidas do regime “soviético”, devidas ao atraso económico-social da Rússia no momento da revolução, como modelo geral do socialismo. Se a Rússia pós-revolucionária foi obrigada, pela força das circunstâncias, a enveredar pelo regime de capitalismo de Estado baptizando-o de “socialismo”, ei-los embevecidos perante o modelo encontrado do socialismo! Incapazes de situar historicamente a revolução, adoram-na sem a compreender. O pior é que essa adoração os leva a ser reticentes em relação ao que ela teve de realmente avançado, e a aplaudir como modelar o que nela houve de atrasado, e que abriu caminho ao desastre posterior.

Claro que eles reconhecem “insuficiências, desvios e erros” no modelo da URSS. “Desaprovam” os “excessos repressivos”, a consagração de novos privilégios, o dogmatismo unanimista ditado pelo partido, mas acham candidamente que isso são acidentes de percurso do socialismo, uma vez que, já lá diz Marx, “o direito burguês persiste durante o período de transição”…

Com este artifício iludem a questão de fundo: na URSS dos anos 30 o direito burguês recuava ou progredia? Os “erros”, “desvios” e “excessos” eram manifestações marginais, contra a corrente do sistema, ou eram a manifestação inerente e necessária de uma ditadura antipopular, que só pela força podia extrair a mais-valia ao proletariado? E pode algum marxista considerar seriamente o carrossel alucinante do Terror de 1936-39 como um mero “desvio” ou um “excesso”?

Entendamo-nos. Uma coisa é reconhecermos a revolução proletária de 1917 como a mais avançada na história da humanidade, vermos o percurso posterior da União Soviética como o resultado inevitável da ausência de condições mínimas para o proletariado exercer o poder, valorizarmos o papel da URSS de Staline na resistência ao imperialismo; outra coisa, muito diferente, é tomar esse regime como modelo, considerar autêntico o seu proclamado “socialismo”, assumir a sua política externa como “revolucionária”, encontrar justificações “marxistas” para tudo o que nele foi antiproletário e até obscurantista. A verdade é que o salto espantoso da URSS de Staline para a industrialização e a “colectivização” agrária difundiu no movimento comunista uma autêntica revisão do marxismo: o socialismo seria possível pela propriedade estatal e pela planificação, mesmo que a ditadura do proletariado se reduzisse ao miserável sofisma da “vontade das massas exprimindo-se pela mediação do partido”.

Aqueles que se obstinam em querer ver na URSS de Staline uma “sociedade socialista em construção” não conseguem explicar como foi possível o “país dos sovietes” ser levado gradualmente pelo caminho das reformas económicas e da coexistência pacífica até à restauração plena do capitalismo privado de 91, sem se disparar um tiro. A teoria de que uma sociedade socialista pode regredir pacificamente ao capitalismo, por causa dos “erros”, do “culto da personalidade”, da “falta de vigilância”, do “subjectivismo” e outras tretas do mesmo jaez é um verdadeiro insulto ao marxismo.

Porque teimam os “ortodoxos” (chamemos-lhes assim, para facilitar) em querer ver socialismo onde ele nunca existiu? Porque julgam que a ausência de iniciativa, liberdade e poder popular pode ser suprida pelas grandes realizações económicas, pela melhoria do nível de vida das massas, pela difusão da instrução. Porque têm uma concepção paternalista do socialismo, como um regime em que as massas devem agir sob a tutela vigilante do aparelho comunista; porque vêem no partido, não a vanguarda consciente do proletariado e das massas, não o fermento revolucionário, mas o autor da revolução e o proprietário do poder.

Claro, eles nunca se esquecem de elogiar o papel do movimento de massas e os sovietes como a sua criação revolucionária, mas vêem-nos como um empecilho, pelo seu carácter “incontrolado”, e um perigo para a actuação “científica” do partido; querem-nos reduzidos a um papel subordinado e puramente decorativo. Do facto de ter havido sovietes que caíram sob influência pequeno-burguesa e se rebelaram contra o governo de Lenine não concluem que isso era um sinal certo da agonia da revolução; deduzem argutamente que o melhor é domesticar os sovietes, para não estorvarem o partido.

Na sua tacanhez, nem lhes passa pela cabeça que, a única hipótese de derrubar o poder burguês e levar a revolução anticapitalista ao triunfo está na erupção de um verdadeiro terramoto social que levante os milhões de explorados — o que pressupõe uma enorme liberdade criadora. Não percebem que é impossível eliminar os mecanismos de produção e reprodução do capital a menos que esse seja o objectivo assumido da classe no seu conjunto, empenhada na edificação de uma nova maneira de viver. Acreditam piamente (e nisto coincidem com a superstição burguesa vulgar) que a revolução de 1917 foi maquinada por Lenine, quando a genialidade deste consistiu em compreender as forças motrizes da revolução para tornar possível ao partido orientar a torrente popular no sentido mais favorável à emancipação do proletariado. Aquilo que deve ser o regime de ditadura das massas sobre a burguesia é por eles transformado num regime de ditadura do partido-governo sobre toda a população — e chamam a isto “ditadura do proletariado” e “socialismo”!

Esta incompreensão grosseira sobre o que seja o papel das massas na revolução leva mesmo alguns a considerar “falso e dogmático supor que a sua existência [de “órgãos proletários de tipo conselhista”] seja condição sine qua nonde uma revolução socialista; a história já o provou.”. Ora, “a história já provou” precisamente o contrário: sem a emergência (e muito mais do que isso: sem o poder pleno) de órgãos proletários de tipo conselhista, pode haver revoluções de libertação (burguesas), revoluções populares (burguesas), mas não haverá revolução socialista nenhuma.

A teoria da “ditadura do proletariado representada pelo seu partido” é uma invenção antimarxista e antileninista do corpo dirigente da URSS, destinada a justificar o sistema de poder de uma classe burguesa burocrática, administradora do capitalismo de Estado. A obstinação com que alguns continuam hoje a querer ver nesse regime traços de socialismo só se compreende pelo esquecimento a que chegámos do que seja uma revolução real. De facto, conceber a ditadura de toda uma classe como um governo ditatorial, apoiado numa pirâmide de aparatchiks obedientes e acéfalos, a censurar jornais e a prender dissidentes, é uma visão macabra do que seja a democracia dos produtores.

A ditadura do proletariado só é possível quando a classe proletária chega à decisão de derrubar a burguesia, desapossá-la, extinguir as relações capitalistas, desmantelar a máquina do Estado, criar o seu próprio autogoverno. O partido comunista é o fermento indispensável deste terramoto, mas será absolutamente impotente se quiser substituir-se à iniciativa criadora das massas.

Donde se segue que, se a sociedade ainda não tiver reunido as condições para o proletariado derrubar a burguesia e instituir-se como classe dirigente, não será certamente pela ditadura “benévola” do partido comunista que isso será possível. “Ditadura do proletariado” sem poder proletário (autêntico, não por delegação) só pode configurar-se como uma ditadura burguesa de novo tipo, sejam quais forem as boas intenções dos que ocupem o poder.

Justamente porque o stalinismo concebe as massas como um mero auxiliar do partido, ele coloca no centro da revolução a organização. Para o stalinismo, tudo o que diz respeito à revolução — acção política, teoria, propaganda — tudo são tarefas auxiliares, que giram à volta da organização, do poder do aparelho. Daí a inevitável tendência para o dogmatismo (só nos interessam os factos que favorecem as necessidades do centro), para o oportunismo (são boas todas as acções que reforcem o poder do aparelho), para o autoritarismo (não toleramos entraves às decisões da direcção).

É por isso que a crítica do stalinismo não diz respeito apenas à meta socialista que buscamos (para nossa desgraça ainda longínqua) mas também às tarefas actuais de acumulação de forças para a revolução — na luta pela hegemonia do proletariado, na política de frente, na vida interna partidária, nas relações partido-massas, na solidariedade com os povos e nações oprimidos, na questão da mulher, etc. Só pela crítica de princípio ao nosso passado stalinista abriremos caminho ao renascimento de uma corrente comunista livre das taras do passado. Espero voltar ao tema numa próxima oportunidade.


Notas de rodapé:

(1) Há que ter em conta as “experiências positivas e negativas da construção do socialismo”; praticaram-se “erros e crimes”, mas as “vítimas” do stalinismo (entre aspas) não terão sido tantas como pretende a propaganda imperialista, e, além disso, “tinham vestido a farda do inimigo nazi”! (retornar ao texto)

(2) Refiro-me à corrente que se reagrupou desde há dez anos na Conferência Internacional de Partidos e Organizações Marxistas-Leninistas, a qual reúne duas dezenas de grupos, europeus e latino-americanos sobretudo, mas também alguns asiáticos e africanos. A par de meritórias tomadas de posição anti-imperialistas, divulgadas no órgão Unidade e Luta, os partidos organizados nesta corrente defendem a restauração da política praticada pelo movimento comunista nos anos 30-50 do século passado, reclamam a “reapreciação dos méritos de Staline”, prestam homenagem ao “grande guia e mestre da humanidade”, ao “mestre da edificação socialista”, e promovem reuniões e seminários internacionais em que se retoma devotamente o estudo das suas obras. Para a edição francesa de Unidade e Luta, consultar http://www.geocities.com/pcof_fr. Contacto:enavant@club-internet.fr. Também o Partido do Trabalho Belga promoveu uma sessão solene de homenagem, em que foram retomados os mesmos temas. (retornar ao texto)

Inclusão 08/05/2018
Última alteração 20/09/2018