MIA> Biblioteca> Francisco Martins Rodrigues > Novidades
Primeira Edição: Inacabado, inédito, 1995
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
1 — Partimos há dez anos com a convicção de iniciar a marcha para um novo partido comunista e um novo movimento comunista internacional; julgávamos que bastaria corrigir o desvio centrista que assaltara a corrente M-L para retomar os carris do leninismo eda revolução russa.
Mas à medida que avançávamos, o panorama ao nosso redor ia mudando, os pontos de referência com que tínhamos partido esvaíam-se no horizonte, novos problemas surgiam. Hoje, dez anos passados, encontramo-nos sob céus estranhos, procurando orientação em novas constelações. As interrogações somam-se às interrogações, na teoria, na estratégia, na táctica, na organização. O objectivo do partido comunista não só não se aproximou de nós como se apresenta hoje mais esfumado no horizonte.
Se não nos desintegrámos e não fomos assimilados pelo sistema como tantos outros, se continuamos a manter uma postura antagónica com a ordem estabelecida, como grupo comunista que edita uma revista comunista, foi, creio, porque a ideia de partida era boa: “Política operária”, ou seja, olhar o mundo sob a óptica exclusiva dos interesses do proletariado. Seguimos um caminho oposto ao dos que acham que hoje em dia já não existe base social para políticas de classe, que não faz sentido tomar a defesa dos interesses do proletariado, que já só são viáveis políticas interclassistas.
2 — Pode perguntar-se: mas não foi incomportável o preço pago por essa oposição irreconciliável à sociedade existente? O grupo inicial dispersou-se, as fileiras rarearam e a OCPO reduz-se a um pequeno núcleo activista, apoiado por umas dezenas de simpatizantes e amigos. Que valor objectivo tem uma revista que chega a escassas centenas de leitores?
3 — Há outra objecção: a aposta na edição da revista e as posições que vem defendendo conduziram-nos ao isolamento e à quase exaustão. Inicialmente, a revista trouxe algo de novo, mas hoje, sem termos muito mais a acrescentar no plano ideológico, limitamo-nos a repisar os mesmos gastos comentários em torno dos novos acontecimentos.
É verdade que a nossa produção ideológica não é famosa. Temos que admitir as limitações do nosso colectivo, agravadas pela retirada de apoiantes iniciais. Mas será que se esgotou o que havia para dizer, que estamos condenados a marcar passo e a desagregarmo-nos se não nos reconvertermos em grupo de intervenção política? Não creio. Os amigos que nos aconselham a tal partem da convicção de que bastaria retomar as “práticas sãs” do antigo movimento comunista para progredirmos politicamente. Não se apercebem de que esse arsenal está envelhecido e de que o colapso do “socialismo real” pôs também em questão toda a estratégia e táctica do MCI. Não apenas porque mudaram as relações de classe, mas porque a perspectiva estratégica que orientou a criação e os primeiros anos da IC estava afectada por uma errada interpretação do que fora a revolução russa e de que tipo de período ela abrira.
Para mim é certo que à luz da política operária com que partimos há dez anos ainda podemos chegar a ideias novas sobre o comunismo hoje. Não nos devemos desmoralizar pela dificuldade em progredir; devemos pelo contrário consagrar-nos a aprofundar o exame crítico dos problemas em aberto diante dos revolucionários, para encontrar um novo quadro para a acção comunista. Quanto mais tempo demorarmos a aperceber-nos de que não se podem refundar partidos comunistas na linha dos anteriores mais anos atrasaremos o renascimento do movimento comunista.
4 — Praticamente toda a gente de esquerda foi ganha para a lógica de que não há nenhuma revolução em perspectiva em qualquer ponto do mundo, logo, se não queremos ficar fora da vida, temos que nos envolver nalguma forma de reformismo, de lutas parcelares por objectivos modestos. Não se trataria mais de desafiar o poder do Capital mas de lhe disputar pequenas posições, obtendo algumas melhorias para as massas e mantendo o espírito da esquerda vivo. Ora, esta postura tem levado sempre à união com as classes médias e ao abandono das reivindicações dos pobres e oprimidos.
5 — O anarquismo conhece nova simpatia entre a juventude porque toda a gente toma como indiscutível que a grande lição do fiasco do Leste foi a falência do partido revolucionário e da ditadura do proletariado. Combater esta regressão ideológica para um espontaneísmo folclórico e impotente é uma das batalhas actuais do marxismo.
6 — Um dos males do movimento ML nos anos 60/70 foi não ter sabido combinar o plano político com o plano ideológico, meter as areias na engrenagem capitalista ao mesmo tempo que revitalizava os princípios ideológicos.
7 — Deixamos de dar à revolução russa a designação de Grande Revolução Socialista de Outubro. Não lhe reconhecendo um carácter socialista, rompemos com a corrente M-L, que nesse ponto era comum ao trotskismo, maoísmo, “comunismo de esquerda”. Continuando a ser leninistas, não adoptamos as últimas posições de Lenine sobre a existência de ditadura do proletariado e dum poder soviético na Rússia porque elas estão em conflito com o que Lenine defendera anteriormente. Somos “leninistas críticos”.
8 — Pode-se estar na política duma forma nova, alternativa, basista, liberta da corrida para ganhar lugares nas instituições burguesas? Dizem-nos que não. Concentrar-se nas acções por baixo, greves, protestos, associações populares, pequenos movimentos alternativos, sem o cimento dum projecto político global visando o poder, nunca cresce nem ganha corpo. São intervenções avulsas, sem sequência, que não acumulam forças. Funcionam só como meios de pressão indirecta sobre os verdadeiros actores da cena política, os partidos. Pior: as acções “alternativas”, basistas, são sempre capitalizadas por um ou outro partido contra a vontade dos seus promotores. Acabamos por ver o nosso esforço ir servir a acumulação de forças alheias.
Se queremos surgir perante a massa como portadores duma proposta política temos que apresentar publicamente o nosso programa e medir em eleições o acolhimento que recebe da massa. Logo, o objectivo dos revolucionários em democracia burguesa é legalizar-se e concorrer às eleições. E se ainda não estamos em estado de o fazer, devido à nossa pequenez, nem por isso estamos dispensados de intervir nas eleições, apresentando candidatos independentes dentro do partido A ou B, aconselhando o voto neste ou naquele para derrotar o outro, etc. Tudo o que vá fora disto é utopia “esquerdista” de seita, não tem a ver com política real, com acumulação de forças.
9 — Os saneamentos, ocupações, reforma agrária, nacionalizações, reconhecimento da independência das colónias, parecem sinais inequívocos de estarmos em presença duma revolução. É a tese do PC. Se tudo isso desapareceu a seguir, teria sido por causa duma “contra-revolução”.
Na realidade, deu-se mais um episódio do crescimento do capitalismo em Portugal, bloqueado pelo impasse em que o metera o regime fascista. Perante a incapacidade da burguesia, as massas foram chamadas a libertar as relações sociais e as instituições dos travões que as sufocavam. E isso que os revisas celebram sob o nome de “revolução democrática e nacional”. Mas essa presença popular não chega para dar um carácter anticapitalista às transformações; as massas introduzem, pela sua dinâmica revolucionária, certas “excrescências”, que depois da primeira etapa são podadas pela burguesia, quando esta se recompõe da surpresa e retoma o comando dos acontecimentos.
10 — Uma avaliação distanciada deste século mostra que não há motivos nem para a euforia triunfante da direita nem para as choradeiras dos esquerdistas, órfãos de pai e mãe. O campo “socialista” jamais poderia dar aquilo que uns temiam e outros desejavam, justamente porque era produto, não de revoluções socialistas mas de revoluções burguesas retardadas. Podemos agora enunciar como lei o seguinte: na época do imperialismo as revoluções burguesas retardadas só podem ser levadas a cabo se cilindrarem a burguesia sob a insurreição camponesa, tendo o proletariado como condutor e instituindo um regime transitório de capitalismo de Estado. É neste regime que se torna possível a germinação duma nova geração burguesa moderna, sob a forma dos aparatchiks e tccnocratas.
11 — Desde já, cabe perguntar se o ciclo destas revoluções se deve considerar encerrado ou se são de esperar novas revoluções semelhantes no século que se inicia (em países como Índia, Bangladesh, Paquistão, Irão, Brasil, Indonésia, Filipinas, Peru, Colômbia…). Porque, por maior que seja a desilusão com o “socialismo” que não era socialismo, se a crise se declarar nesse tipo de sociedades devido à miséria das massas camponesas, a revolução acabará por romper e tomará previsivelmente a forma duma revolução nacional-camponesa radicalizada sob o influxo do proletariado. Poderia assim iniciar-se uma segunda série modificada de revoluções “socialistas”.
12 — Desde o início o movimento comunista pareceu condenado a oscilar entre um voluntarismo visionário, conducente ao “esquerdismo” e ao sectarismo, e uma política realista de acumulação de forças, que pelo contrário derrapava sempre para o oportunismo e o reformismo. A opção era: ou fiel aos princípios e então reduzido a uma seita, ou de massas, e nesse caso corrompido pelo oportunismo.
Na origem deste estrangulamento, esteve uma dedução errada quanto ao carácter da revolução russa. Considerou-se que se tratava duma revolução socialista, porque: 1) fora detonada pela classe operária sob direcção comunista; 2) vinha na sequência da revolução de 1905, revolução democrático-burguesa; 3) provara que o proletariado, armado com uma teoria científica e um partido de vanguarda, podia acelerar o amadurecimento de situações revolucionárias.
Hoje sabemos que todas estas deduções eram erradas. Mas na época pareciam plausíveis e alimentavam duas tendências contraditórias nos partidos europeus (e dos restantes países capitalistas avançados).
Sectarismo: como não tentar avançar a todo o vapor, mesmo isolando-se da massa, quando verificavam a sua incapacidade para reproduzir nos seus países as condições revolucionárias do ano de 17? Logicamente, se as condições objectivas estavam preenchidas, a falta era das “condições subjectivas”, do próprio partido, da sua capacidade de elevar as massas à insurreição. Havia que superar esse desfasamento por um enorme esforço de vontade.
Mas também, paralelamente, oportunismo: se a primeira condição para a revolução é ganhar a confiança da maioria dos trabalhadores, teriam que considerar-se adequadas todas as tácticas que, nas condições europeias, conduziam a isso. Daí, o engodo pelo parlamentarismo, pelo reformismo sindical, pelo legalismo, o namoro das classes médias…
O percurso dos partidos foi sendo feito por meio de compromissos entre estas duas tendências opostas e inconciliáveis. E só uma correspondia à situação real: a segunda. Assim, com o correr dos anos, a perspectiva de “repetir o feito dos camaradas russos” foi degenerando em retórica vazia, perdendo espaço, passando a servir apenas para os discursos heróicos dos dias de festa, enquanto a segunda se impunha e moldava o partido à sua lógica reformista. Foi a degenerescência revisionista.
Também podemos ver hoje que a pretensão da corrente M-L de dar batalha ao revisionismo e repor os partidos comunistas nos carris leninistas estava condenada ao fracasso. E isto porque o seu trunfo imaginário era tentar fazer reviver no solo europeu a imagem mítica duma Grande Revolução Socialista de Outubro que não acontecera.
Hoje, podemos finalmente libertar-nos dessa contradição e olhar de fora essa época dramática. A Rússia tivera o bolchevismo e o leninismo porque estava madura para a revolução, a sua revolução própria, nacional-burguesa; a Europa não conseguia produzir partidos revolucionários de massa porque não estava madura para a revolução. E o paradoxo aparente de uma Rússia atrasada estar à frente duma Europa avançada desfaz-se se olharmos a etapa da revolução em jogo em cada caso: lá, burguesa, aqui, socialista.
A Rússia não estava construindo o socialismo mas fazendo (embora numa modalidade totalmente nova, e partindo dum arranque operário) a revolução que a Europa fizera mais de um século antes. Por isso, o modelo russo pôde ser copiado (com adaptações) pela China, Vietname, pelos países que ainda esperavam pela sua revolução nacional-burguesa, mas não pelos países capitalistas.
A revolução de Outubro deixou aos explorados grandes lições, mas que diziam respeito aos países em situação social semelhante, em transição retardada para o capitalismo, não aos países capitalistas avançados. O valor universal de Outubro cinge-se aos seus pressentimentos socialistas, que não puderam nem poderiam ser realizados.
13 — De facto, a conquista pelos comunistas de postos dirigentes nos órgãos representativos (parlamento, sindicatos, etc.) tem um determinado impacte numa sociedade à beira da revolução, mas tem outro impacte muito diferente numa democracia burguesa estável, e outro ainda mais ambíguo numa sociedade avançada, minada pela decomposição social própria do imperialismo. Nas metrópoles do pujante imperialismo europeu do século XX, a conquista pelos partidos comunistas de fortes representações parlamentares, centrais sindicais, etc., vistas na época como baluartes preparatórios da conquista do poder, foi na realidade factor e anúncio de apodrecimento reformista. “As moscas conquistaram o papel mata-moscas”. Uma análise realista da situação social nesses países teria mostrado à partida que esse era o tipo de “vitórias” que havia que evitar, se se queria preservar a identidade revolucionária dos partidos.
Isto significa que, ao abordar a tarefa da reconstituição do movimento comunista, temos que submeter a revisão crítica todos os conceitos tácticos até hoje aceites, relativos à conquista gradual de posições no parlamento, sindicatos, autarquias, cooperativas, etc. e avaliar sobriamente se aproximam ou afastam os partidos comunistas da meta da insurreição. Fica em aberto a pergunta: como podem então os comunistas inserir-se no movimento real e evitar a degeneração grupuscular dos puros grupos de propaganda?
14 — Os nossos esforços no plano internacional devem visar a entreajuda com grupos que tenham feito a ruptura com o revisionismo e o centrismo, mas só com esses, numa base de princípios rigorosa. Qualquer política de concessões na expectativa da reconstituição dum novo MCI levar-nos-ia para o pântano porque não se pode esperar o renascimento do MCI disseminado à escala mundial. O movimento comunista tenderá a ressurgir num país ou grupo de países onde se verifique uma situação revolucionária. Só em caso de triunfo duma revolução popular será de prever a expansão internacional duma nova corrente comunista. Até lá, é de prever que prevaleça em absoluto na área da “esquerda” a colaboração de classes.
O anterior movimento comunista nasceu como fruto da revolução russa, conduzida por um partido comunista isolado no seio do movimento marxista. Antes da grande revolução, a II Internacional caíra sob o domínio do reformismo. A corrente comunista manteve-se enquanto se fizeram sentir os ecos dessa revolução e veio definhando no reformismo e revisionismo à medida que o campo “socialista” foi perdendo todas as características iniciais e confluindo com o campo imperialista.
15 — Se fizermos um levantamento sumário de problemas tácticos que têm causado polémica e que esperam resposta, encontramos:
16 — Há dois traços comuns nos levantamentos proletários que chegaram à fase de concretização: ocorreram quando o crescimento capitalista estava bloqueado e durante guerras que enfraqueceram o poder de Estado: Comuna de Paris, Rússia, China. Até hoje, as experiências de revoluções proletárias em países dominados pelas relações capitalistas (Alemanha, 1918) goraram-se no ovo, o que pode ser indicativo de que as condições económico-sociais ainda não estavam maduras para passar além do capitalismo.
17 — Durante a maior parte deste século coexistiram três formações principais: capitalismo avançado, capitalismo de Estado e feudal decadente. Os conflitos entre essas formações, com as convulsões daí resultantes, abriram espaço para a intervenção comunista. Com a nova ordem e a globalização do capitalismo monopolista, os conflitos não deixam de ser violentos (talvez até tendam a tornar-se ainda mais violentos) mas processam-se dentro de uma única formação social; já não há “espaço exterior” ao capitalismo.
18 — Abstenção — Como de costume, fomos censurados por alguns por não nos lançarmos na batalha eleitoral. Supondo que concorríamos, que programa de governo poderíamos agitar entre as massas: ocupar as empresas com salários em atraso? instituir a semana das 35 horas para dar trabalho aos desempregados? sanear os gestores? sair da UE? dissolver as polícias? expropriar o grande capital? instituir a autogestão? É evidente que tais propostas não teriam eco na massa, aparecer-lhes-iam como pura demagogia, porque o movimento se encontra muito distante de poder abordar essas tarefas. O nosso programa de governo, para ter alguma receptividade popular nesta fase de refluxo do movimento de massas, teria que se cingir a reivindicações recuadas e sobre questões parcelares, consentidas pela ordem existente. É esta lógica que arrasta a UDP, PSR, MRPP, para os programas reformistas, sem nenhuma utilidade para a acumulação revolucionária de forças e pelo contrário úteis ao regime, na medida em que embelezam a manigância eleitoral com ornamentos pluralistas e de “esquerda”.
19 — Dizia-se antigamente que “os comunistas fazem suas todas as causas democráticas e progressistas e nesse processo agrupam forças para a revolução futura”. Esse princípio continua de aplicação clara nos países dependentes mas tem que ser reformulado na situação actual das metrópoles imperialistas. À medida que a gangrena capitalista invade todos os interstícios da sociedade, as relações sociais são levadas ao ponto em que, à frente, só se situa o derrube e expropriação da burguesia. Aí já não restarão aos operários outras causas que não sejam a luta pelo comunismo; ver-se-ão privados das alianças com as classes que se sentiam roubadas pelo rolo compressor do capital.
20 — Há quem repita que o mal da P.O. é “não ter política, reduzir-se à ideologia”, e isto é dito com tal frequência que já é tomado como verdade incontestável. Poderíamos aqui recordar as nossas posições políticas insistentes, feitas a propósito dos acontecimentos, pelo desmascaramento dos fascistas, dos crimes da guerra colonial, da Igreja Católica; pelo desmascaramento do PS como comissário do capital financeiro; contra a deriva reformista da antiga extrema-esquerda; contra a conquista neocolonial dos PALOPs; pondo a nu o antagonismo dos interesses do PCP e da classe operária; contra a burocracia sindical como agente do patronato junto do movimento operário; pela libertação dos presos políticos. Isto no plano nacional. Na política internacional, combatemos permanentemente as agressões e espoliações do imperialismo EUA e europeu, apoiamos os direitos à independência dos povos da Palestina, Irlanda do Norte, Timor-Leste, revelamos os aparelhos burgueses de manipulação e controlo sob a máscara democrática…. a lista seria longa.
De modo que temos que nos interrogar: a P.O. não tem posições políticas ou essas posições são olhadas como “ideologia” por serem vistas à partida como “demasiado gerais”, “irrealistas”, “inviáveis”? Ao condenar-se a “ausência de posições políticas” não se pretenderá ver defendidas outras? E nesse caso, quais? É assunto que se pode discutir. Mas não nos digam que não temos posições políticas e que só tratamos de ideologia.
Mas se a refutação do marxismo é gratificante por proporcionar farta colheita de louvores sem muito esforço, ela tem o inconveniente de reduzir com frequência os seus virtuosos refutadores à indigência intelectual.
(A burguesia, todos o sabem, é contrária à violência; se se vê constantemente atascada nela, por um lamentável concurso de circunstâncias, não deixa contudo de preconizar a sua abolição).
Surge aos adeptos da ordem como uma bênção, um milagre auspicioso, a provar a eternidade da civilização burguesa.
Modemismos retrógrados
Aconselham-nos tolerância para com o intolerável
A economia de mercado é mesmo o estado natural e último da humanidade ou será o prólogo anunciador dum terramoto global?
Por muita prudência que recomendem os ideólogos da burguesia, o “pesadelo” recomeçará: sovietes, poder operário, partidos comunistas no poder, expropriações… Só que duma forma mais avançada, mais próxima do comunismo. E muito mais difícil de reverter ao capitalismo.
Mas é visível, neste vigésimo “retomo a Marx” dos nossos eméritos filósofos, um tom de condescendência protectora, como se ao velho barbudo, desvalorizado por inúmeros fracassos, não restasse outra alternativa senão deixar-se despachar em saldos.
Porque o imperialismo é mestre em campanhas “democráticas” de isolamento e descrédito, que podem, em certas circunstâncias, ser tão intimidatórias como a prisão e as torturas.
A confiança na revolução não tem nada a ver com piedosos palpites sobre a vitória iminente do socialismo, em que os revisas são mestres.
O marxismo, que todos os parvos dão agora como fracassado, Pode-se prever qual seja o seu impacte nas novas revoluções em maturação. Do facto de essas revoluções não terem ido além dum capitalismo de Estado que apelidaram de “socialismo” e “ditadura do proletariado”, deduz-se o descrédito (“definitivo”!) desses conceitos. Da decadência e colapso do regime do capitalismo de Estado, transitório por natureza, deduz-se a inviabilidade de qualquer sistema não baseado na propriedade privada, na concorrência e no lucro. Da transição actual desse capitalismo embrionário, espartilhado, para o capitalismo pleno, integrado no mercado mundial, tira-se a “prova” a falência do socialismo. E assim por aí fora, num amontoado dc inépcias que desmoralizaria o próprio Marx.
Afinal que confiança merece uma teoria que, dum momento para o outro, passa de doutrina oficial dum quarto da humanidade para o zero absoluto?
É um tempo em que os comunistas são acusados por quererem acabar com o direito dc propriedade privada e de contratação de assalariados, direitos “democráticos” por excelência, ao que parece, embora (oh mistério!) deles seja por natureza excluída a esmagadora maioria da população.
Como resumiu há tempos lapidarmente um comentador do Expresso, “unir milhões de insurrectos à escala universal, sem um partido, é ineficaz; com um partido, é uma via para o totalitarismo”.
Na realidade, se há grandes mudanças sociais, uma das mais significativas é a prática extinção da intelectualidade revolucionária ——. O renascimento da corrente comunista está preso da activação de convulsões revolucionárias. ——Ora, isto é cada vez mais difícil às classes médias e aos seus porta-vozes intelectuais. O pendor marxista duma boa parte da intelectualidade europeia neste meio século resultou do espaço que lhe era aberto pela confrontação entre os dois blocos. Hoje, a insolente exibição de autoconfiança do capitalismo contagia todos os que giram na sua órbita e faz-lhes aparecer a adesão ao comunismo como uma imbecil loucura de juventude.
Até porque, neste imperialismo avançado, as classes médias mudam de natureza. Integradas no regime de trabalho assalariado, acorrentadas como todo o mundo à produção para o mercado, esse facto (que serve de ponto de partida a alguns para divagações sobre a “proletarização” universal) não as toma mais mas menos radicais; perderam a revolta de pequenos burgueses arruinados e ganharam em compensação laços de dependência que os levam a identificar os seus interesses com os do sistema. A sua capacidade para uma crítica racional e independente à burguesia é cada vez menor. Preocupados em ganhar o seu certificado de bom comportamento, não podem dar-se ao luxo de conotações subversivas.
Para esta “humanidade pensante”, estreitamente entrelaçada com os exploradores, beneficiando por mil canais da exploração, o cerne do marxismo — a preparação do levantamento das vítimas do Capital — tem de aparecer como uma utopia, uma aberração e um perigo. Podem ver utilidade no marxismo, mas apenas para fins académicos, parlamentares, sindicais — para facilitar a “respiração” da ordem burguesa, não para a destruir.
Vivemos uma época em que o desprezo é a resposta aos que insistem em falar claro.
Inclusão | 16/11/2018 |