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Primeira Edição: Política Operária, 42, Nov-Dez 1993
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
À febre maoísta que há vinte anos assolou a juventude de esquerda um pouco por todo o mundo seguiu-se uma violenta reacção em sentido oposto. Mesmo antes do actual eclipse do marxismo, já Mao tinha passado de moda. Neste centenário do seu nascimento (26 de Dezembro de 1893) são grande maioria os que o ignoram ou ridicularizam a sua figura. Contudo, não é preciso ser devoto do “pensamento maozedong” para reconhecer no líder chinês um gigante do pensamento e da acção revolucionária.
Perante os sangrentos tumultos e tenebrosas conspirações de palácio em que se afundou o poder revolucionário na China, muitos dos mais fanáticos adoradores do maoísmo concluíram que tinham sido enganados e dedicaram-se a demolir o ídolo com tanto ou maior fervor do que tinham posto antes no seu endeusamento. Foi tão forte a ânsia de penitência que alguns só pararam quando se encontraram sentados nas cadeiras de ministros, ao serviço da burguesia que antes davam como moribunda…
Hoje, Mao está praticamente esquecido. Duma maneira geral, a opinião de esquerda regrediu para o tipo de apreciação pretensiosa e tacanha que era timbre dos professores de “marxismo-leninismo” da URSS: Mao careceria de originalidade ou significado, pois, como político teria ido beber às lições da revolução russa; como líder militar, apenas teria copiado os estrategos tradicionais chineses; como filósofo, nunca teria ido além duma confusa dialéctica idealista…
Acontece que o líder comunista chinês apenas conduziu a mais vasta e radical revolução camponesa da história da humanidade, através da qual uma imensa nação, mergulhada na mais abjecta miséria e reduzida à condição de “terreno de caça” das grandes potências, saltou para a idade moderna. As transformações sociais introduzidas pela República Popular na China nos seus primeiros anos de existência ficaram no património das conquistas dos povos neste século e fizeram alastrar o movimento de libertação anti-imperialista a todos os continentes.
Se, pelo fim dos anos 50, a boa estrela de Mao pareceu começar a abandoná-lo e as suas iniciativas, como o movimento das comunas, a campanha contra o “social-imperialismo” e a “revolução cultural” se saldaram por fracassos, a razão deve ser procurada no esgotamento das potencialidades da própria revolução. Expulsos os ocupantes, feita a reforma agrária, criada uma indústria e uma educação moderna, o país debatia-se num impasse comparável ao que afogara a Rússia dos anos vinte: não existiam forças sociais para levar mais longe a transformação e abordar a passagem ao socialismo. Contra esse obstáculo objectivo, Mao e os comunistas chineses não dispunham de nenhum talismã. É absurdo censurá-los por não terem feito o impossível.
Foi em 1927, ao entrar em contacto com a insurreição camponesa, que Mao se formou como revolucionário e abriu um novo rumo à China e ao movimento comunista.
Durante uma viagem pela província do Hunan, Mao foi testemunha de acontecimentos nunca vistos. No espaço de poucos meses, a insurreição dos pobres reduzia a nada a ordem milenar. Os aldeões invadiam as casas dos nobres, confiscavam-lhes os celeiros de arroz, aplicavam-lhes multas, abatiam-lhes o gado. Por vezes, passeavam-nos em cortejos pelas aldeias, amarrados, com carapuços de papel enfiados na cabeça, ao som de gongos e agitando estandartes. As associações de camponeses tornavam-se o único órgão de autoridade, assumiam o controlo das contas públicas, distribuíam as terras, aplicavam a justiça, proibiam os jogos, o ópio, a usura. Em alguns lugares, executavam mesmo os opressores odiados pelo povo.
Nas cidades, aonde afluíam famílias de proprietários em fuga com relatos aterradores, as autoridades encaravam os tumultos camponeses com indignação; esses “vagabundos” iam trazer o descrédito à nova República, ainda em difícil luta para se afirmar contra o poder feudal do Norte do país. Assim, o exército do Kuomintang começou a reprimir o movimento e a prender os camponeses acusados de excessos. Mesmo no partido comunista, que então se desenvolvia rapidamente graças à legalidade, prevalecia a opinião de que a revolta camponesa era inconveniente por minar a aliança das forças democráticas.
Mao pronunciou-se vigorosamente em sentido contrário. Alertou os seus camaradas que se estava perante “um furacão”, “um acontecimento colossal”, “uma revolução sem paralelo na história”. Em vez de lamentar os “excessos” dos camponeses, os comunistas deviam apoiar o movimento a cem por cento. “Sem um período de terror nas zonas rurais será impossível derrubar a autoridade dos nobres”. Lançou-se, portanto, com outros comunistas, a apoiar e organizar a revolta camponesa. Foi o verdadeiro começo da revolução.
No Inverno de 1928, Mao estava à frente dum exército de rebeldes (alguns diziam de “bandidos”) nas montanhas de Tchincam. Nesses dois anos, tudo mudara. O Kuomintang voltara-se à traição contra os camponeses e contra o partido comunista. Os que conseguiram fugir aos massacres reorganizaram-se nas regiões montanhosas. Para muitos, Mao era mais um dos muitos “senhores da guerra” que sulcavam com as suas tropas de maltrapilhos os campos da China. O seu exército chamava-se Vermelho, mas era uma força irrisória – faminto, mal armado, tiritante.
“Com o frio que faz, muitos dos nossos homens continuam ainda a dispor apenas de duas fardas de pano não espesso”, escrevia Mao num relatório. E notava: “Temos uma boa porção de vagabundos e elementos do lumpen. Como é evidente, não convém ter muitos homens desta categoria. Mas eles são capazes de combater e, como a luta prossegue cada dia com maiores perdas, até dentre tal categoria de indivíduos já não é fácil conseguir homens”.
Contudo, facto pasmoso, este exército começava a crescer. Não apenas pela habilidade do seu comandante em furtar-se ao combate com forças inimigas superiores, mas porque nunca ninguém vira uma tropa semelhante. Na maioria, os soldados eram recrutados entre os prisioneiros. Junto dos comunistas, estes eram pela primeira vez tratados como seres humanos. Inclusive, recebiam terras para cultivar!
“Os oficiais não batem nos soldados; oficiais e soldados recebem o mesmo tratamento; os soldados gozam de liberdade de reunião e de expressão; o formalismo e as cerimónias inúteis estão abolidos; as contas são abertas à inspecção de todos. Cada companhia, cada batalhão ou regimento tem o seu comité de soldados, o qual representa os interesses destes e executa o trabalho político”.
E, o que era ainda mais inusitado para as tradições do país,
“todos sofremos iguais privações; desde o comandante do corpo de exército ao soldado que se encarrega da cozinha, todos vivem dos seus cinco fen de ração diária, à parte os cereais que recebem”.
Bem se esforçava a propaganda do Kuomintang por espalhar o terror, afirmando que “os bandidos comunistas matam toda a gente, sem distinção”. O exército vermelho tratava os prisioneiros feridos e soltava todos os que queriam partir, dando-lhes mesmo dinheiro para a viagem. A assombrosa vida nova trazida pelos comunistas corria os campos da China como uma lenda.
Ao fim de vinte anos de combates incessantes, todo o poderio da grande burguesia chinesa, do ocupante japonês, da intervenção norte-americana, foram impotentes para impedir o triunfo da República Popular entre um quinto da humanidade.
Inclusão | 30/05/2018 |