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Primeira Edição: Política Operária nº 29, Mar-Abr 1991
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
… “E ao romper de alva, estando os inocentes dormindo com suas mulheres e filhos, atiravam-se (os espanhóis) ao povoado, lançando fogo às casas, que comummente eram de palha, e queimavam vivos os filhos e as mulheres e muitos dos demais, antes de acordarem. Matavam quantos queriam e àqueles a quem poupavam a vida matavam-nos depois com tormentos, para que lhes dissessem eles de outros povoados com ouro, e aos que restavam marcavam-nos com ferros em brasa, a escravos”.
”… vendo-se todos eles morrer e perecer sem remédio, começaram alguns a fugir para os montes, outros, desesperados, a enforcar-se, e enforcavam-se maridos e mulheres, e consigo enforcavam os filhos. E por via das crueldades dum espanhol muito tirano (que conheci), enforcaram-se assim mais de duzentos índios”.
… ‘‘Inventaram então (os índios) uns fojos a meio dos caminhos, aonde caíssem os cavalos e se lhes fincassem nas tripas umas estacas agudas e tostadas de que os fojos estavam cheios, por cima cobertos de relvas e ervas, não parecendo haver lá nada. Uma ou duas vezes, não mais, caíram cavalos nesses fojos, porque os espanhóis souberam evitá-los. Porém, para se vingarem, fizeram lei os cristãos que a quantos índios, de todo o género e idade, poupassem a vida, os haviam de atirar para os fojos. E assim as mulheres prenhas e as paridas, e as crianças e velhos, e quantos podiam apanhar, a todos atiravam para aquelas covas, até as encherem, trespassados pelas estacas, que grande lástima era vê-los, e mais ainda as mulheres com seus filhos.”
“… levaram infinitos índios carregados com cargas de três e quatro arrobas, presos em filas acorrentes. Cansando-se algum, ou desmaiando com fome e por via do trabalho e da fraqueza, logo lhe cortavam a cabeça pela coleira da corrente, a fim de não pararem para desacorrentar os outros que iam dentro dos colares, e assim caía para uma banda a cabeça decepada e para outra o corpo, e repartiam a carga deste por sobre as que levavam os mais.
…… e cortou muita quantidade de mãos de mulheres e homens, e atou-as a umas cordas e dependurou-as ao comprido, para que os mais índios vissem o que haviam feito àqueles, e ao todo deveriam ser uns setenta pares de mãos; e cortou ainda muitos narizes a mulheres e crianças”.
“… para manterem os ditos cães (bravios e ferozes) trazem muitos índios acorrentados pelos caminhos, como se fossem varas de porcos, e matam neles e têm carniça pública de carne humana, e uns aos outros dizem; “Empresta–me um quarto dum velhaco desses para dar de comer aos meus cães”…
Alonguei propositadamente as citações porque não vi outro modo de transmitir o horror que se desprende desta Brevíssima Relação da Destruição das Índias, a obra clássica de Frei Bartolomé de Las Casas, agora editada entre nós com grande sentido de oportunidade (e vá lá, também com alguma coragem) pela Antígona. Vem mesmo a tempo de dar uma bofetada nos Soares, Cavacos e outros Freitas, de cada vez que abrirem a boca para discursar sobre “a gesta dos Descobrimentos” e o “abraço entre duas culturas”.
Qual foi esse abraço é o que nos conta Las Casas. Com duas civilizações em etapas diferentes de desenvolvimento económico, a mais avançada pura e simplesmente devorou a mais atrasada. Dezenas de milhões de seres humanos foram varridos da face da terra antes que os conquistadores se apercebessem de que, para além de lhes roubarem o ouro, podiam também domesticar a sua força de trabalho. Chamou Marx a isto a acumulação primitiva do capital; ela deu o tom do que seria daí em diante a civilização capitalista. Até hoje, sempre em crescendo.
Claro que na Brevíssima Relação fala-se dos espanhóis, não dos portugueses. Mas, para o relato nos dizer respeito, basta ao leitor transportar-se das Índias Ocidentais para o Brasil, Angola, Ormuz, Malaca; e, onde se fala das proezas de Pizarro, Cortés, Alvarado, ponha Gama, Albuquerque, Cabral, Castro… Não tivemos um Las Casas mas não faltam os relatos de atrocidades lusitanas tenebrosas, a provar que a história foi semelhante por toda a parte.
Naturalmente, este relato do aniquilamento duma civilização, duma cultura, dum povo, levado a cabo com tão inaudita ferocidade pelos chamados “cristãos”, tinha que se tornar uma obra maldita. Editada pela primeira vez em Sevilha em 1552, a Brevíssima Relação foi proibida, desmentida, achincalhada, posta em esquecimento. Historiadores e outros representantes da cultura oficial castelhana tentaram ver-se livres por todos os meios da tremenda acusação de genocídio documentada na obra de Las Casas.
Entre as tentativas “científicas” para desacreditar o padre Las Casas alegou-se por exemplo que os seus números terríficos sobre milhões de vítimas não mereciam confiança (como se fizesse muita diferença terem sido assassinados vinte, dez ou cinco milhões de índios pelos espanhóis). Na realidade, segundo o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, no século e meio que se seguiu à viagem de Colombo, a população ameríndia baixou de 70-80 milhões para 3,5 milhões. Veio a concluir-se modernamente que os números de Las Casas pecam por insuficiência, não por exagero!
A campanha periodicamente renovada nos meios da cultura oficial para valorizar a “epopeia” dos Descobrimentos não tem encontrado uma oposição firme do pensamento de esquerda. Diz-se que os portugueses não são atreitos a orgulho nacional e sofrem, pelo contrário, do vício de se apoucar sistematicamente. Não nos iludamos. A ironia com que o português médio fala da história pátria, dos descobrimentos, dos Lusíadas e da colonização, reflecte em geral a amargura da nação imperial que se viu destronada e reduzida à mendicidade. Não é uma superação do nacionalismo, é uma defesa do orgulho chauvinista ferido e profundamente enraizado. Se não fosse assim teria o fascismo podido manter as guerras coloniais durante treze anos?
Ainda há pouco, quem tomou contacto, durante a guerra do Golfo, com as reacções do “homem da rua” — operários, empregados, estudantes, donas de casa decerto observou a naturalidade com que a larga maioria aceita o direito de polícia dos Estados Unidos, a indiferença pelo massacre de populações árabes, o sentimento de fazermos parte do “primeiro mundo”. Quando muito, havia receio às eventuais consequências da guerra; mas nenhum sentimento de solidariedade anti-imperialista. Por isso o campo dos opositores da guerra foi talvez o mais escasso e tímido de toda a Europa.
E, no entanto, Portugal é um pequeno país, pobre, miserável mesmo, pelos padrões europeus; perdeu o seu império e tem governos tão servilmente dependentes do estrangeiro que mais parecem marionetas. Porquê então este chauvinismo lorpa, que nem sequer se alicerça em privilégios materiais? Não será porque as sombras dos conquistadores, dos desbravadores de sertões, dos galeões carregados de ouro e escravos, pairam ainda entre nós? Mais um motivo para fazermos circular o relato terrível do padre Las Casas.
Inclusão | 02/10/2018 |