O Purgante Eleitoral

Francisco Martins Rodrigues

23 de Dezembro de 1990


Primeira Edição: Público, 23 de Dezembro de 1990

Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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capaOs "staffs” dos candidatos nestas presidenciais estão em crise de ideias e não ajudam a despertar os ânimos. Lembrei-me por isso de lhes oferecer algumas sugestões que poderiam dar tópicos interessantes. Isto tendo em conta que a educação democrática é, no geral, ainda baixa.

Toda a gente diz que a pré-campanha eleitoral tem sido um bocada chocha, e é pena. Ninguém me tira da cabeça que, enquanto não experimentarmos os cortejos com “majorettes” e acrobatas, serpentinas e elefantes, não se conseguirá sacudir a modorra dos cidadãos e ter campanhas alegres, mexidas. Em todo o caso, também é verdade que os “stafls” dos candidatos estão em crise de ideias e não ajudam a despertar os ânimos. Lembrei-me por isso de lhes oferecer, com a cooperação do PÚBLICO, algumas sugestões que poderiam dar tópicos interessantes. Isto tendo em conta que a educação democrática é, no geral, ainda baixa e há muitos problemas, mesmo elementares, que fazem confusão na cabeça das pessoas.

Como sejam: porque é que foi justo Portugal colaborar há dez anos com a comunidade internacional na venda de armas a Saddam Hussein para ele atacar o Irão, tendo morrido por isso um milhão de pessoas; e porque é justo, agora que ele usou essas armas para tomar o Kuwait, colaborarmos com a comunidade internacional na morte de um milhão de iraquianos. Uma palestra sobre este tema era uma bela oportunidade para o dr. Mário Soares brilhar.

Outro assunto ainda mal debatido; donde vem a inclinação mórbida dum número crescente de portugueses para viverem em barracas, quando foi já, pela terceira ou quarta vez, decretada a solução final desse problema? Ou um tema mais filosófico: trabalhar 10 a 12 horas diárias e viajar mais 3 horas em machimbombos meio desmantelados para subúrbios cheios de lixo e de bandos de reformadas famélicos — ajuda ou não a cumprir os grandes desígnios nacionais? Ou estoutra polémica curiosa; se Salazar recebia dos mafiosos do Pentágono, a troco duma fidelidade canina, palmadinhas nas costas e aviões velhos —como demonstrar que a atitude dos governos democráticos nada têm de comum com esse passado vergonhoso?'

Até se podiam introduzir na campanha pequenos jogos de aritmética. Exemplo: se ao fim de dez anos de crescimento económico e normalização democrática, o vencimento dum gestor é dez vezes o salário dum carregador, a quanto subirá ao fim de 20 anos? Ou então charadas e adivinhas: qual é o empreendedor que mais dinheiros abichou à conta da formação profissional? E mesmo concursos: acerte no nome das empresas privatizadas pelo Governo habilite-se a ganhar um carro!

Poderão dizer-me que temas assim tão banais não proporcionariam elevação à campanha. É claro que uma boa controvérsia sobre a consensualidade que deve ser timbre do Presidente da República, a solidariedade institucional, o equilíbrio de poderes, é sempre mais educativa. Mas o facto é que o nível cultural do nosso povo é ainda baixo e as pessoas bocejam e não se sentem motivadas ao voto. E aí estão perigo que espreita a Democracia — a abstenção!

Eu julgo que foi com a intenção de espevitar os espectadores que o candidato Basílio Horta introduziu aquelas graças sobre máfias e padrinhos, a que Soares respondeu ao pé da letra com a história do negócio das bananas. O público anónimo, aí, divertiu-se, posso garantir. Alguns já esfregavam as mãos, eufóricos: “Agora é que eles se vão |pegar e vamos ficar a saber os podres!” Mas não tiveram sorte. Veio logo uma reacção escandalizada contra o “espectáculo degradante” e voltou tudo à pasmaceira bem-educada.

Não sei porque têm tantos complexos; discutir roubos, subornos, comissões e dólares durante a campanha eleitoral não é vergonha nenhuma. São os factos da vida, que diabo! Se estamos numa feira da ladra sarnosa e pulguenta, para que havemos de fingir que é um palácio? Este pais está entupido até aos gorgomilos com roubalheiras, clandestinas, semi-legais e legalíssimas; deixem sair as histórias reles por algum lado!

Nem sei de que se queixam os puritanos. Não reclamavam contra as torpezas do anarco-populismo que não deixava governar o país? Isso é que era uma época horrível! As manifestações eram desestabilizadoras, os comunicados das CTs insolentes, as proclamações anti-imperialistas irresponsáveis, os líderes populares anedóticos. Não descansaram enquanto não nos deram a política “adulta” Pois aí a têm! Reconheçam ao menos que este é o tempo dos heróis do cifrão.

Se eu tivesse categoria académica, era mesmo capaz de formular uma lei sociológica. Assim: o volume de roubos praticados pela burguesia dum país e inversamente proporcional ao medo que ela sente do povo. Ora, como o medo dos burgueses em Portugal chegou ao ponto mais baixo...

Já sei que há quem condene irreverências destas, porque o descrédito das instituições democráticas é irresponsável, só serve a Direita, etc. Mas temos que nos entender: o candidato da Direita só pode capitalizar em seu benefício nojo das pessoas pelas instituições porque esse nojo existe; e se ele o utiliza para os seus fins reaccionários é porque não apareceu um candidato de Esquerda a defender uma alternativa a este sistema iníquo. E o resto é conversa.

Para alguns românticos incuráveis, a culpa é de Soares, que deveria desempenhar esse papel de consciência moral da Esquerda. E porquê deveria? Porque eles próprios quiseram convencer-se há cinco anos de que estavam a eleger um Presidente “comprometido com a esquerda”! Mas qual compromisso, se o homem já tinha demonstrado em sucessivos governos que a sua filosofia era gerir os negócios do Estado a contento do capital, com a vantagem de saber levar o povo às boas? É o que ele tem feito, ora essa!

Mesmo assim, sentem se melhor se emborcarem o purgante eleitoral? Pois votem e que lhes faça bom proveito! Por mim, dispenso.


Inclusão 21/08/2019