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Primeira Edição: Política Operária nº 25, Mai-Jun 1990
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Os dirigentes do PCP devem estar satisfeitos: o XIII congresso do partido, há dias terminado em Loures, cumpriu os objectivos traçados.
Atalhou o perigo de pânico e debandada devido à derrocada do Leste, convencendo os militantes de que foi só um acidente de percurso, grave mas ultrapassado; preparou a sucessão de Álvaro Cunhal com uma figura neutra, capaz de atenuar tensões internas; e cilindrou mais uma vez as veleidades dos críticos, devolvendo a confiança aos militantes que começavam a intimidar-se com a algazarra geral a favor da mudança.
Se avaliarmos o congresso nesta perspectiva puramente pragmática, poderemos convencer-nos de que consolidou as posições dos “ortodoxos”. Se pensarmos todavia nas questões que se levantam ao PCP em termos políticos, não nos podem restar dúvidas de que a fácil vitória de Álvaro Cunhal em mais esta batalha aproximou a sua derrota na “guerra” que vem travando.
O velho PCP está acabado. Não porque o marxismo-leninismo e a revolução tenham passado à história, como repetem encantados os asnos que entendem tudo ao contrário, mas precisamente porque o leninismo se cansou de sofrer tropelias às mãos dos reformistas e lhes pregou uma partida: duma assentada faliram os referenciais do PCP, no plano internacional como no nacional — lá fora, o “socialismo” da URSS e, cá dentro, a “revolução democrática e nacional”.
Álvaro Cunhal, que tanto gostava de dizer que o PCP “previu e preveniu”, neste caso não previu nada. E vê-se a braços com este problema: o PCP, marginalizado e hostilizado pela sociedade burguesa, sustentava-se da convicção de que estava predestinado a ter o poder; agora, com a derrocada combinada do modelo soviético e da “revolução democrática e nacional”, como vai reencontrar uma estratégia?
A obstinação de Cunhal em não entender o sentido da evolução na União Soviética só pode compreender-se como fruto do desespero; admitir que se está a dar o retorno da URSS ao capitalismo seria para ele uma espécie de harakiri. Mas, ao tentar racionalizar as novidades que chegam da URSS como “novos avanços do socialismo”, é forçado a mergulhar no absurdo.
Diz-se na Resolução Política do congresso, a propósito da evolução da União Soviética, que, “com a consolidação do Estado socialista… o poder popular efectivo foi substituído por um poder fortemente centralizado… tomando decisões de carácter arbitrário e repressivo”. Por outro lado, a partir de agora, com a perestroika, estaria a dar-se “o restabelecimento do exercício do poder político pelo povo, através da reconstituição dos sovietes”.
É uma explicação assombrosa para quem quer que se pretenda marxista. Se os membros do PCP ainda conseguissem raciocinar (coisa de que duvidamos seriamente) perguntariam como pode em qualquer país “consolidar-se o Estado socialista” ao mesmo tempo que se instaura um poder arbitrário e repressivo sobre o povo. Então o socialismo não exige por definição precisamente o poder dos trabalhadores?! E, se se reconhece agora que os trabalhadores não detinham “o poder efectivo”, que estranho poder foi então esse que teria feito avançar apesar de tudo o socialismo? E se agora já não há dúvidas para o PCP de que o poder dos sovietes não existe na URSS (visto que vai ser “reconstituído”), como se pensa que possa ser de novo instaurado sem uma nova revolução semelhante à de 1917?
De qualquer lado que os voltemos, os novos argumentos com que a direcção do PCP pretende digerir o terramoto e recuar para novas trincheiras equivalem a tornar totalmente caótico o seu edifício ideológico. E isto não deixará de provocar efeitos desagregadores na actividade do partido, quando passar a euforia das aclamações do congresso.
Como se sabe, os comunistas revolucionários têm uma outra análise para os acontecimentos, a qual lhes permite entender o encadeamento dos factos e até prever com acerto o sentido da sua evolução. Resumidamente: não há nem podia haver socialismo na URSS, antes de mais porque o poder dos sovietes desapareceu poucos anos após a revolução, debaixo do oceano camponês pequeno-burguês. O que restou foi uma formação social aleijada — o capitalismo de Estado, idealizado desde o tempo de Staline como “socialismo”, mas que, pela sua natureza, iria evoluir irresistivelmente para a restauração capitalista.
Dizer-se que a perestroika vai trazer a “reconstituição do poder dos sovietes” é um mau gracejo de Gorbatchov, que só Cunhal levou a sério. A perestroika vai obviamente trazer — e já está a trazer — joint ventures, “verdade dos preços”, desemprego, privatizações, ditadura da burguesia.
Compreendemos que isto seja inacreditável para os 2.061 delegados presentes no congresso. À força de serem treinados em “confiar nos camaradas soviéticos”, os militantes do PCP são capazes de se precipitar todos por uma ribanceira abaixo, de preferência a mostrar dúvidas. É o caso dum militante indefectível (José Manuel Jara) que, num artigo recente de jornal, tenta à viva força fazer-nos divisar no descalabro do Leste “uma imprevista afirmação! da versatilidade táctica e estratégica do marxismo-leninismo” (!).
Mas não se trata apenas da decomposição das sociedades serviam de bandeira ao PCP.
Trata-se também do lugar deste na política nacional. Duma forma não tão espectacular como a do naufrágio do “socialismo” do Leste, mas não menos demolidora, o homem da rua vai-se apercebendo com certo espanto de que, ao realizar aquilo que anunciava como uma “revolução democrática e nacional”, o PCP estava simplesmente a ser o servente da transição ordeira do fascismo para a democracia burguesa. As nacionalizações, a reforma agrária, a Constituição, o movimento sindical unitário, as “conquistas de Abril” foram espectaculares mas tão inseguras, tão pouco revolucionárias, que em pouco tempo se derreteram como neve ao sol. A “revolução democrática e nacional” nunca existiu, a não ser nos relatórios de Álvaro Cunhal e na cabeça dos militantes do PCP.
E agora, que os partidos da burguesia se apanham consolidados no poder, depois de terem derrubado como um castelo de cartas toda a fortaleza laboriosamente erguida pelo PCP, eles vedam-lhe o acesso ao poder alegando que “não dá garantias democráticas”!
Protestar contra esta deslealdade é inútil. O PCP comportou-se, durante a crise de 74/75 e no seu rescaldo, com um respeito exemplar pelas regras do jogo burguês, respeito que ainda sobressai mais se tivermos em conta as possibilidades que lhe proporcionava a sua implantação operária e popular pouco comum. Agora tem a paga por esse respeito.
Entre os militantes, cai bem a intransigência com que Álvaro Cunhal repudia as propostas dos críticos e reafirma a fidelidade ao marxismo-leninismo. Só que esta ”firmeza de princípios” vem tarde demais.
De facto, quem convenceu vinte vezes o movimento operário a sacrificar os seus interesses para apoiar republicanos, socialistas, eanistas; quem forçou o partido a adiar os embates de classe que eram exigidos pela vida em 1974/75, e mais tarde, em defesa da Reforma Agrária e das outras conquistas populares; quem concordou com todas as revisões do marxismo adoptadas pela URSS, admitiu a “possibilidade de passagem pacífica ao socialismo”, apoiou o namoro ao imperialismo e à social-democracia; quem escolheu o momento do tumulto popular, em que tudo era possível, para apelar à “batalha da produção” e retirar do programa o objectivo da ditadura do proletariado — está mal colocado para vir hoje travar batalhas de princípios.
Entrando em polémica com os “renovadores” com o seu calor habitual, Álvaro Cunhal não nota o ridículo de estar a acusar os outros por cedências que são o desenvolvimento lógico das que ele próprio introduziu.
As cedências iam-lhe surgindo como necessidades espontâneas do movimento, impostas pela vida: era preciso glorificar Lenine e a revolução de 17 mas encobrir as misérias do “socialismo real”; mobilizar os operários, primeiro contra o fascismo, depois pelas “conquistas de Abril”, mas sem espantar os democratas; namorar a social-democracia mas tentar liquidá-la; denunciar os crimes do imperialismo mas chamá-lo à razão; defender a legitimidade dos regimes “socialistas” no poder mas declarar-se adepto da via parlamentar para o socialismo; combater o “dogmatismo” dos que não queriam evoluir mas também o “revisionismo” dos que evoluíam depressa demais…
E assim, ao fim de meio século de manobras destas, Álvaro Cunhal está reduzido a bater-se até à última… por um punhado de palavras sem nada dentro.
Mas se o PCP se tornou, pela sua ideologia e pela sua prática, um partido reformista, parte orgânica do sistema, porque continua a burguesia a discriminá-lo e a não lhe permitir o acesso ao governo? Justamente porque o PCP ainda não se decidiu a renunciar expressamente ao marxismo-leninismo e ao modelo da revolução russa de 1917. A burguesia pode ser incoerente em muita coisa, mas no que toca aos seus princípios sagrados não transige.
Quer que o PCP diga e escreva com todas as letras que será leal em todas as circunstâncias à ordem estabelecida, que rejeita Lenine e a revolução russa, que renuncia ao nome de “comunista” e à campanha contra o imperialismo; enfim, que faça um corte explícito e não envergonhado, à luz do dia, com as suas origens, para se desautorizar definitivamente face às aspirações anticapitalistas dos operários.
Há nesta exigência, se quiserem, muito de estreiteza ideológica. Os nossos burgueses ainda não tiveram analistas que lhes explicassem que a culpa da bagunça de 75 não foi do PCP mas da massa anónima, que se o PCP não tivesse cedido a um certo radicalismo, poderiam ter-se perdido as rédeas da carroça do Estado, e que, no fim de contas, devem pôr as mãos ao céu por terem tido à frente dos operários o PCP e não outro partido qualquer.
Guardando rancor a Cunhal comportam-se como aquilo que são: uma burguesia terceiro-mundista, prodigiosamente cobarde, que salta pelas janelas em pânico de cada vez que o povo espirra, para voltar depois cheia de complexos e de desejos de desforra.
O certo é que essa recusa da burguesia a acolher o PCP como um partido igual de pleno direito é o motor que agrava a crise interna do partido. Perante os exemplos que vêm do Leste, a tentação de ceder às exigências não pode deixar de crescer. “Que sentido faz privarmo-nos de ir para o governo aplicar as nossas reformas, só pela birra de nos dizermos leninistas?”, interrogam os críticos.
Mas a questão não é só de palavras e Álvaro Cunhal, com a sua longa experiência, sabe-o bem. A questão é: como reagirá o operário medianamente politizado no dia em que o PCP abandonar os slogans que ainda o ajudam a manter uma ficção de coerência com as origens, de independência de classe e de oposição à social-democracia? Ou, por outras palavras: o lucro que uma liberalização apressada poderá trazer ao partido do lado das classes médias compensa as perdas que ela causaria do lado do proletariado?
Para os críticos, a resposta está dada: os operários bem podem ir ao diabo porque já não contam para nada em política. Barros Moura pôs a questão com franqueza num artigo:
“Sem abandonar a solidariedade com os mais pobres e sem deixar de lutar contra as injustiças sociais, o PCP pode protagonizar os interesses de camadas sociais muito mais dinâmicas e influentes numa transformação democrática e socialista da sociedade”. (Expresso, 13/1/90, sublinhado meu).
Os “ortodoxos” têm outra opinião. Sabem que a força do PCP, neste país de capitalismo atrasado que ainda é Portugal, nasce dum operariado pobre que fez o ano de 75 e que continua alérgico à social-democracia. E não querem correr o risco de que “renovações” inconsideradas empurrem uma corrente operária revolucionária para se cristalizar à sua esquerda.
E isto e só isto que se perfila por detrás do confuso debate entre as duas (ou três) alas do PCP.
Inclusão | 10/06/2018 |