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Primeira Edição: Publicado no número 24 da revista Política Operária, Março e Abril de 1990, e no livro O Comunismo que aí vem, Compostela, Abrente Editora, 2004
Fonte: Primeira Linha em Rede
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
“A corrente revisionista está perdida porque trocou o caminho da condução da luta revolucionária de classe do proletariado pelo caminho da conciliação de classes e do abandono da revolução”. Esta previsão feita no n.° 1 de Revolução Popular, em Outubro de 1964(1), deve ter sido considerada pelos poucos que na altura dela tomaram conhecimento como uma irreverência esquerdista gratuita. Mas acertava no alvo. Como se está a ver.
Cunhal era o líder incontestado do PCP, única força que conduzia a resistência à ditadura fascista; era geralmente considerado como o mais eminente representante do marxismo-leninismo no nosso país; e sobretudo apoiava-se num colosso como era a União Soviética, cujo estatuto de cabeça do “campo socialista” parecia firme como uma rocha.
Contudo, passados 25 anos, a espectacular autoliquidação do bloco “socialista” e da corrente revisionista internacional veio comprovar que os marxistas-leninistas farejavam a doença mortal que minava o poderoso PCP e que não deixou de se agravar mesmo durante as aparentes horas de triunfo de 1975.
Porquê profetizar que Cunhal estava perdido? Ninguém se lembraria de dizer, mesmo nos piores anos da ditadura, que Mário Soares, por exemplo, “estava perdido”: ele estava obviamente fazendo o seu currículo de oposicionista para ascender a um lugar cimeiro no futuro Estado democrático-burguês.
Mas isso era precisamente o que não podia acontecer com Cunhal. Ele estava perdido porque o seu “comunismo” reformista, patriótico e vinculado à União Soviética, pretendendo situar-se a meio caminho entre a revolução e a social-democracia, o tornava imprestável como dirigente operário mas também como dirigente burguês. O único futuro político à sua frente era de bombeiro das lutas operárias em períodos de crise.
Era evidente, para quem raciocinasse coma marxista, que não podia haver futuro para uma corrente política que buscava criar um híbrido de socialismo e de capitalismo, de marxismo e de liberalismo, de Lenine e de Kruchov, de proletariado e de pequena burguesia. O PCP poderia navegar um tempo à custa da velocidade adquirida como campeão da resistência antifascista mas, a prazo, seria forçado a defrontar o dilema: quem abandona a revolução proletária, tem que acabar por se encaixar no universo burguês se não quiser extinguir-se. E aí, Álvaro Cunhal iria encontrar o lugar ocupado pela social-democracia.
É esse o drama hoje vivido pela PCP e de cuja natureza os seus actores, obviamente, não têm consciência: o PCP rompeu com o espirito de revolta das massas oprimidas mas não conseguiu ser aceite como força de governo. Ficou numa terra de ninguém e por isso extingue-se. Só não se extinguiu mais cedo porque se amparava na fortaleza de papelão do seu “campo socialista”.
No momento em que se fecha o ciclo de existência desta fraude monumental que é o “comunismo” reformista de Cunhal, é oportuno recordar o que dizia Revolução Popular há 25 anos. Sobretudo porque não se limitou a traduzir as teses chinesas, como na época faziam tantas publicações “M-L”, mas abordou a discussão da luta de classes em Portugal, criando assim a base para uma nova corrente de ideias marxistas entre nós.
Naturalmente, não há razão para exagerarmos o papel que teve Revolução Popular no que toca à redescoberta do marxismo no nosso país; enredou-se no guerrilheirismo, não soube pôr em causa o stalinismo, não se atreveu a trabalhar directamente pela formação dum novo partido operário comunista, e com isso ditou o fracasso dessa primeira experiência.
Isto não anula, todavia, o significado histórico da sua ruptura com o reformismo tradicional do PCP. Pela primeira vez em muitos anos, a insatisfação e a desconfiança com que o instinto revolucionário do PCP reagia à mistela democrático-republicana da “Unidade nacional antifascista”, tomou corpo numa critica coerente, não anarquista mas marxista. E Cunhal foi classificado sem cerimónia como “um dos mais destacados reformistas portugueses de todos os tempos” que “submeteu os trabalhadores à burguesia a pretexto da unidade anti-fascista” (64-66).
Este teve sem dúvida a percepção do que era posto em jogo com as críticas de Revolução Popular. Por isso mesmo, no panfleto com que, alguns anos mais tarde, reagiu às criticas generalizadas que lhe eram feitas no campo da oposição (Radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista, 1970), cuidou em rebater exaustivamente todos os argumentos dos seus críticos, mesmo os mais fúteis e inconsistentes, todos excepto precisamente os argumentos de Revolução Popular. Fugindo à luta de ideias no terreno do marxismo, comportou-se exactamente como teria que se comportar um reformista; confirmou por inteiro o nosso diagnóstico.
Mas não se pode atribuir só ao abafamento da luta ideológica pelo PCP o facto de as críticas de 1965 não terem dado frutos políticos. Hoje vê-se com nitidez que se o comunismo revolucionário não se afirmou entre nós como uma alternativa política real ao PCP, isso deveu-se em larga medida à falta de continuidade nesse esforço de ruptura ideológica iniciado por Revolução Popular. Os diversos grupos M-L que se guerrearam entre 1968 e 1975 estavam mais preocupados em afirmar-se como a “verdadeira vanguarda” e em obter o reconhecimento da China ou da Albânia do que em prosseguir na edificação dos alicerces duma corrente marxista de pensamento.
Ao vigor polémico e à independência critica que tinham feito a força de Revolução Popular sucedeu a menoridade perante os “partidos-guias” e o rebaixamento da ideologia à mastigação de slogans. O PC(R) nasceu asfixiado numa série de tabus, disfarçados de bolchevismo, mas que cobriam uma atitude geral de compromisso de classe; mais não podia do que arrastar uma dolorosa agonia como um aborto, um híbrido entre marxismo-leninismo e revisionismo.
Esta degenerescência não resultou apenas da influência externa, chinesa e albanesa. Hoje tem que concluir-se que, se Revolução Popular deu o impulso de partida para uma nova corrente comunista em Portugal ao pôr a nu os aleijões teóricos do cunhalismo, esse impulso não foi suficientemente global e coerente para dar vida a uma nova corrente de ideias e a um novo partido comunista. Essa é uma tarefa que poderemos preencher (e que estamos a tentar preencher) apoiando-nos no que apesar de tudo foi inovador e marxista em R.P.
Nunca ninguém pusera em causa o carácter revolucionário do “Levantamento Nacional”, propugnado por Cunhal desde 1944 como forma de derrubamento do fascismo. Pelo contrário, essa palavra de ordem era considerada altamente subversiva pela maior parte dos democratas. R.P. veio abalar definitivamente este mito ao denunciar o apreço de Cunhal pela “Unidade de todos os portugueses honrados” e pelos “oficiais patriotas” e a sua aversão por todas as manifestações de violência popular antifascista: o líder do PCP visava, dissemos então, “um golpe militar da burguesia apoiado pelas massas” (9). A única via para garantir que a queda do fascismo seria o prólogo da revolução estava em formar uma “organização combatente” e “proceder ao armamento dos trabalhadores no decurso da insurreição antifascista” para “instaurar um poder popular” (8).
A forma como se materializou o derrube do fascismo e os carris em que meteu a crise revolucionária subsequente confirmaram inteiramente o alerta feito por Revolução Popular. O 25 de Abril e a Aliança Povo-MFA foram a tradução fiel na vida real da perspectiva cunhalista do “Levantamento Nacional” – a saída menos arriscada para o domínio de classe da burguesia, tendo em conta os factores de ruptura acumulados.
Durante alguns meses, Cunhal sentiu-se como o pai espiritual da nova democracia portuguesa. Só não contara com o 25 de Novembro…
Quando R. P. começou a publicar-se, a direcção do PCP acabara de meter uma lança em África, expondo finalmente aquilo que até aí fora incapaz de precisar: a sua perspectiva quanto ao carácter da revolução em Portugal. A “Revolução Democrática e Nacional”, hoje completamente desacreditada, apresentava-se com pretensões de “aplicação criadora do leninismo à realidade nacional”.
Revolução Popular mostrou que, sob a imponente fraseologia “marxista” amontoada por Cunhal, havia apenas uma etiqueta pedida de empréstimo aos revisionistas soviéticos para dar um ar nobre ao velho esquema cunhaliano de marchar a reboque da burguesia democrática. O oportunismo e a indigência política do PCP apenas eram disfarçados com esta elaboração teórica; o seu reformismo não recuava, pelo contrário tornava-se mais venenoso.
“A Revolução Democrática e Nacional”, escreveu R. P., “é a teoria e a prática da passagem de Portugal dum regime capitalista antiquado a um capitalismo moderno” (84), aponta para a efectiva entrega da hegemonia à burguesia e para uma “recomposição liberal do Estado burguês” (8). O desenrolar posterior dos acontecimentos confirmou inteiramente este diagnóstico.
É certo que R. P. se mostrou incapaz de contrapor à fraude da R.D.N. a perspectiva da revolução socialista. Manteve-se agarrada ao mito da revolução “democrático-popular”, que fazia parte da herança do stalinismo, considerada nessa época intocável. Mas essa limitação não a impediu de tocar no cerne da questão: uma verdadeira revolução em Portugal dependia da capacidade do proletariado para “demarcar os seus interesses em relação aos de todas as outras classes e adoptar uma posição irreconciliável para com a burguesia” (66). E isto era uma ruptura totalcom o PCP.
Ao mostrar que toda a perspectiva “revolucionária” de Cunhal contra o fascismo assentava na esperança de captar as boas graças da burguesia oposicionista e ao alertar que isso estava a conduzir à impotência da classe operária nos acontecimentos que estavam para vir, Revolução Popular atacou um preconceito enraizado, característico da menoridade do movimento operário português. Avisou que “em vez de caminhar no sentido de se tornar cada vez mais uma força arruinada, aguerrida e revolucionária, como pretende Cunhal, a burguesia não-monopolista, e sobretudo a média burguesia e a parte mais abastada da pequena burguesia, tende a tornar-se cada vez mais instável, e a cair frequentemente sob a direcção deste ou daquele grupo monopolista ou imperialista” e que só na cabeça de Cunhal havia esse abismo a separar a “boa” burguesia democrática da “má” burguesia fascista (71-73). Insistiu em que “as condições de Portugal fazem da burguesia liberal e radical uma força intermédia, arrastada não na via revolucionária mas na via de um reajustamento da ordem burguesa existente, na negociação dum compromisso com a grande burguesia e o imperialismo” (8).
A polémica parecia na altura puramente teórica mas os acontecimentos que se sucederam ao 25 de Abril demonstraram a sua importância política prática. Verificou-se não só instabilidade como verdadeiro horror à revolução por parte de toda a burguesia. Pode dizer-se sem exagero que, ao apostar no revolucionarismo da burguesia democrática, Álvaro Cunhal lhe entregou o movimento operário amarrado de pés e mãos e determinou o aborto da “revolução dos cravos”.
Nesse tempo, a palavra de ordem de Cunhal para uma Reforma Agrária “que dê a terra a quem a trabalha” era considerada nos meios de esquerda como o extremo da audácia. Mas Revolução Popular não teve dúvida em afirmar que a reforma agrária,
“no quadro de uma aliança com a burguesia e não no quadro duma estreita aliança revolucionária entre as massas oprimidas da cidade e do campo”, nunca passaria duma ilusão. Era preciso que a reforma agrária resultasse da “destruição violenta da ordem capitalista e semifeudal existente nos nossos campos”, fosse a “consagração jurídica da revolta triunfante dos camponeses” (18).
A crítica era plenamente justificada. Ao limitar os conflitos no campo à oposição contra os latifundiários e as autoridades fascistas, ao impedir toda a manifestação de antagonismo dos pobres contra a burguesia rural “para não prejudicar a unidade antifascista”, Cunhal sacrificava qualquer hipótese dum movimento revolucionário camponês, roubando ao proletariado toda a esperança de contar com aliados seguros. Atribuir aos caciques republicanos de província a categoria de “representantes do campesinato” (17) e fazer do jornal clandestino A Terra “uma tribuna à disposição da burguesia camponesa” (48), denunciou R.P., era renegar por completo o leninismo.
Dez anos depois de esta critica ter sido feita, o PCP viveu as suas breves horas de triunfo com a Reforma Agrária realizada sob a tutela do MFA. Mas o desmoronamento desta espécie de revolução ordeira não podia tardar. Em breve, as massas camponesas do Norte, do Centro e das Ilhas, mobilizadas como reservas activas da direita, deram base social ao golpe contra-revolucionário de 25 de Novembro, o que não era de modo nenhum fatal mas fruto da escolha deliberada feita pelo partido nos anos da resistência antifascista.
E em seguida foi a vez da fortaleza inexpugnável da Reforma Agrária do Sul ser metodicamente desmantelada pela burguesia, entre apelos de Cunha! para os trabalhadores recuarem “sem perder a confiança no futuro”, porque “bastará um dia para voltar a reocupar as terras”…
Para o espirito colonialista boçal que dominava não apenas os apoiantes do regime fascista mas praticamente toda a sociedade portuguesa, a reivindicação pelo PCP do “direito de autodeterminação e independência para os povos das colónias” soava como impecavelmente leninista. Mas, aqui ainda, R. P. olhou para além das aparências e disse algumas verdades chocantes:
“A ditadura de Sa!azar não é a causa mas o efeito do colonialismo”, “ocultar o passado do colonialismo português é ocultar a sua própria natureza e incapacitarmo-nos para um combate decisivo contra ele”, “todas as camadas da burguesia têm interesses colonialistas e são portanto inimigas do movimento de libertação dos povos oprimidos”, “há chauvinismo entre o povo e nada é mais reaccionário do que pretender ocultá-lo (…). Seria caso para nos maravilharmos com o milagre de um dos povos com maior tradição imperialista na história estar imunizado contra o chauvinismo”(141-146).
Mas a crítica não ficou por aqui. R. P. provou que o PCP só via o colonialismo dos fascistas porque também estava infectado pelos reflexos do chauvinismo reinante no país e na Oposição democrática; mostrou que a direcção do PCP minimizava em 1964 as insurreições e as guerras de libertação nas colónias, por receio de que estas atrasassem a construção da sua frente unida com a burguesia; e mais, tentava exercer um inadmissível direito de tutela sobre os movimentos de libertação coloniais para os pôr ao serviço da URSS na manobra da cooperação sovieto-americana.
Ao saudar as insurreições coloniais como “uma iniciativa revolucionária que representa a maior viragem nas perspectivas de luta do proletariado português depois da revolução socialista de Outubro de 1917” (149), pode dizer-se que R.P. colocou pela primeira vez a luta contra as guerras coloniais numa base internacionalista, leninista.
Em conclusão: parece-nos indiscutível que no desértico panorama do marxismo português dos anos 60, as críticas de Revolução Popular tiveram o mérito de romper com o mito do “leninismo” do PCP e de Álvaro Cunhal e de iniciar a abertura de um espaço ideológico à esquerda do PCP, o que até aí nunca acontecera.
Isso permite que, na hora da agonia do revisionismo cunhalista, a crítica de Revolução Popular conserve intacto o seu potencial de vir a fecundar uma corrente operária revolucionária. E isto porque foi guiada por aquilo que sempre faltou ao moderado reformismo cunhalista — o ódio de classe à burguesia, à exploração capitalista, à opressão, a aspiração à revolução proletária e à ditadura do proletariado, sem a qual o socialismo não passa dum logro, como temos vindo a dizer e os factos demonstram de forma definitiva.
Notas de rodapé:
(1) Os números indicados a seguir entre parênteses referem-se aos números de página da reedição de seis números da revista, feita em 1975 pelas edições “Voz do Povo”. (retornar ao texto)
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