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Primeira Edição: Política Operária nº 24, Mar-Abr 1990
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
A imprensa esforça-se por criar suspense em torno das lutas entre “ortodoxos” e “liberais” que rodeiam a preparação do próximo congresso do PCP, como se estivesse em jogo uma opção decisiva entre duas linhas antagónicas. Mas quem acompanhe os destinos da esquerda e do movimento operário e não tenha esquecido o percurso desse partido, particularmente depois do 25 de Abril, sabe que o antagonismo é muito relativo.
Tão difícil nos é imaginar Álvaro Cunhal no papel de arauto dos princípios em que ele agora se procura colocar, como esquecer que os actuais “críticos” foram os executantes incondicionais da sua política. Na realidade, em que consiste a “ortodoxia” de Cunhal? Stalinista com Staline, kruchovista com Kruchov, brejnevista com Brejnev, perestroico com Gorbatchov, ele tem encontrado sempre argumentos de princípio para concordar com os ventos dominantes na URSS. E os actuais dissidentes seguiram-no em todas as cambalhotas.
Cunhal e Vital, Abrantes e Judas, Zita e Pato atravessaram juntos, sem a sombra dum desacordo, todo o processo de engano e amordaçamento da classe operária ao longo dos últimos vinte anos, pelo menos. Só entram em choque quando soa a hora da liquidação do projecto que todos eles patrocinaram até hoje — o do “comunismo” reformista e patriótico. Discutem as modalidades, o timing e o preço da liquidação — mais nada.
Para que não se diga que há má vontade “sectária” da nossa parte, recordemos alguns episódios da crise de 74-75, hoje esquecidos.
Em Outubro de 74, no relatório político ao 7.° Congresso, Cunhal afirmava que “os trabalhadores portugueses estão dispostos a pagar o preço da liberdade trabalhando mais e melhor”, “aumentar a produção em ritmo acelerado”, “não prejudicar a economia com greves” e, em tudo e por tudo, apoiar o MFA.
Isto não era uma simples declaração de intenções; foi, como todos sabem, a prática diária do partido no primeiro ano da “revolução”: contra as greves dos CTT, Jornal do Comércio, Timex, etc.; contra as manifestações inoportunas que exigiam o regresso dos soldados das colónias; contra a manifestação anti-pides à porta da Penitenciária; contra as primeiras ocupações precipitadas de casas e terras.
Ansioso por causar boa impressão ao MFA, o PCP fez mais: subscreveu no Inverno de 74 uma lei antigreve (Vasco Gonçalves/ Costa Martins) tão repressiva que nunca chegou a ser aplicada; proibia as greves políticas e de solidariedade, a ocupação dos locais de trabalho e os piquetes, impunha 50 dias de negociação e um aviso prévio de sete dias úteis, previa a mobilização militar dos grevistas em casos particulares, a prisão até seis meses para quem violasse a lei…
Com típica estupidez pequeno-burguesa, os responsáveis do PCP procuravam ganhar as boas graças da burguesia para a sua “revolução”. Eles alimentavam a ambição de chegar ao poder, mas não pela luta revolucionária frontal, que lhes parecia “loucura”; o seu sonho de “revolucionários realistas” era conquistar o poder amparados em manobras dúplices e à sombra das próprias forças armadas burguesas.
Isto exigia não apenas a bajulação aos oficiais do MFA mas mesmo um trabalho indigno para um partido que lutara na clandestinidade: o namoro às forças repressivas.
Em 3 de Março de 75, numa sessão de esclarecimento do PCP para a PSP e GNR, no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa, Joaquim Gomes, um dos principais dirigentes do partido, rebaixou-se a dizer: “Confiamos em vocês e esperamos que confiem em nós”, e fez os militantes gritarem: “Polícia amigo, o povo está contigo!”. Como ia longe o programa do PCP de 1965 no qual se exigia solenemente a destruição do Estado fascista e a dissolução das forças repressivas!
A ânsia por reciclar as forças de repressão levou a uma baixeza maior. Em 19 de Maio de 75, no aniversário do assassinato de Catarina Eufémia pela GNR, o director do Diário sentou-se numa homenagem em Baleizão ao lado de oficiais da GNR, para demonstrar ao povo alentejano que o passado era para esquecer e que já não havia razão para olhar essa força como inimiga. Foi uma reconciliação que muito facilitou o trabalho à burguesia quando a GNR começou, dois anos depois, a desalojar os trabalhadores à bastonada das herdades da Reforma Agrária…
Com esta obsessão por angariar apoios no aparelho de Estado, não é de estranhar que tremessem de indignação quando os “esquerdistas” diziam que a chamada Revolução de Abril não se tinha destinado a salvar o povo, mas a salvar o capital. Aquilo que devia ser uma conclusão elementar para qualquer marxista aparecia-lhes como uma provocação intolerável que poderia levar os democratas a virar costas à “Revolução”.
É bom lembrar que nessa aversão ao “esquerdismo” não houve desacordos entre eles. Tanto Cunhal como Vital estiveram contra a manifestação da Lisnave, esse marco no avanço da consciência operária, contra “as provocações ao Patriarcado” em Junho de 1975, contra “o vergonhoso assalto à Embaixada de Espanha” (cujo governo fascista acabava de massacrar cinco revolucionários!).
Quem viu o pânico histérico com que os responsáveis do PCP reagiram à manifestação operária da Inter-Comissões contra a entrada duma esquadra americana no Tejo, em Fevereiro de 75, ficou elucidado sobre a natureza social e até moral do “comunismo” do PCP. Os poucos actos realmente independentes, rebeldes, antifascistas e anti-imperialistas, que salvaram a honra da nossa crise revolucionária, para não ficar reduzida a uma farsa ignóbil, foram condenados por ambas as actuais alas do PCP como “provocações irresponsáveis”. Como podem agora pretender-se adversários?
Precisamente, aquilo que retira o mínimo de dignidade política aos debates em curso no interior do PCP é a ausência total da mais pequena autocrítica pelo seu comportamento vergonhoso durante a crise de 74/75.
No momento em que os operários precisavam, como pão para a boca, que lhes expusessem a necessidade absoluta da sua ditadura de classe para desapossar a burguesia e tornar possível uma verdadeira democracia, Cunhal baniu-a do programa do seu partido (Outubro de 74), alegando que a expressão “ditadura do proletariado” poderia levar pessoas mal informadas a pensar que os comunistas eram adeptos de uma ditadura e não os melhores defensores da democracia… Argumentação que reflecte como um espelho as preocupações da pequena burguesia durante esses dias conturbados: para eles, o perigo não estava na falta dum bloco operário comunista, capaz de ganhar a maioria e fazer pender a balança para o lado da revolução; o perigo estava em se poderem assustar as pessoas “mal informadas” e vacilantes…
Acaso a situação portuguesa, por muito original que fosse, podia fugir à lei marxista de que a ditadura da burguesia não se extingue enquanto não for suprimida pela ditadura do proletariado? Acaso o MFA, com toda a sua indiscutível sinceridade, boa vontade, progressismo, podia ser algo mais do que o colchão pequeno-burguês amortecedor do impulso popular, promovido à ribalta da política precisamente porque o aparelho burguês, paralisado e desorganizado, precisava de alguém que desgastasse e ganhasse tempo?
Com a sua emenda antileninista de 74, aprovada por unanimidade, Cunhal, Zita, Abrantes, Pato e Vital cortaram as últimas amarras que podiam ainda ligá-los ao marxismo. Mais ridícula é a discussão que hoje têm em tomo do comunismo e do marxismo-leninismo.
Estudámos as teses submetidas pelo Comité Central do PCP à discussão do partido com vista ao próximo congresso. Depois duma penosa leitura, verificámos que nelas não se avança um única ideia nova como reflexo das convulsões em curso na “comunidade socialista”.
Os “acontecimentos tumultuosos” e as “mudanças vertiginosas” em curso no Leste (é patente a vertigem que o tumulto causa à direcção do PCP) são apenas um entre os quatro pontos que o congresso é chamado a debater. Entrados neste ponto, terão os militantes que se debruçar previamente sobre os êxitos passados e sobre o contraste entre a perestroika, “conduzida pelo Partido Comunista no poder”, e os “processos descontrolados” (outra palavra reveladora) na Europa oriental, para depois abordar as “cinco características fundamentais de uma sociedade socialista” que teriam sido infringidas, tornando-se assim as “cinco causas das lamentáveis ocorrências, das quais haverá que extrair as correspondentes “cinco lições”.
Tudo isto cheira a mofo mas, além disso, cheira a vigarice. A verdade é que o CC de Álvaro Cunhal recorreu mais uma vez ao velho expediente, aprendido na tarimba de Moscovo, de diluir as questões polémicas numa massa oceânica de palavreado (484 teses e “subteses”, ao todo!). Por um reflexo adquirido ao longo de muitos anos, os dirigentes do PCP tornaram-se incapazes de responder frontal e directamente a qualquer objecção; fizeram-se mestres na arte dos “por um lado” e “por outro lado”, das distinções subtis, da sábia parcelização dos problemas difíceis até os evaporar. Fazem-se suceder as listas de factores positivos e negativos, os considerandos e os pseudo-argumentos, até cansar e adormecer a perplexidade dos militantes, até à náusea, até as pessoas levantarem o braço quando chegar a vez de votar.
É claro que não é só o PCP a usar este truque da política burguesa. Mas o PCP, que justamente não o deveria usar se quisesse respeitar o seu nome de “partido dos trabalhadores” é quem o usa em maior escala e com maior descaramento. Só que, no afã de esconder as chagas, acaba por revelar tudo com transparência cristalina. Veja-se esta “lição” espantosa que o PCP colhe dos acontecimentos, e que vale por uma confissão cabal: “Com a consolidação do Estado socialista, o poder popular efectivo foi substituído por um poder fortemente centralizado e cada vez mais afastado da vontade do povo.” Como é possível, perguntamos, que se consolidasse o Estado socialista quando o poder se afastava da vontade do povo?
Chegar, ao fim de 70 anos, a uma “lição” destas, não equivale a confessar que a vossa concepção de socialismo é completamente alheia ao marxismo e à classe operária? Quais poderiam ser as teses básicas a pôr a debate no XIII Congresso do PCP? Como os seus dirigentes parecem ter vergonha de as enunciar, decidimos oferecê-las, grátis, aos militantes. Não 484, mas apenas 13.
Inclusão | 02/10/2018 |