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Primeira Edição: Público, 22/4/1990
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
22 de Abril, 120º aniversário do nascimento de Lenine. Nas cidades do Leste, os vizinhos que passam para as compras deitam um olhar distraído às gruas que derrubam as estátuas de Vladimir Ilitch. Mais estátua, menos estátua, o caso não dá para grandes comoções — que agora felizmente já há educação cívica.
Este é, verdadeiramente, o prodigioso ano I do pós-leninismo. Por incrível que pareça, o revolucionário da barbicha desfez-se. Com tanta facilidade que alguns ainda duvidam: estará mesmo morto? Os mais afoitos dão-lhe com o pé. Nada! Não se ouve ranger de dentes nem cai um raio do céu. Está morto como um gato morto. Melhor: desvaneceu-se como um fantasma no passado.
Evaporação tornada ainda mais evidente pelas recitações de versículos com que os últimos padres da igreja “leninista” teimam em venerar a imagem do profeta. Explicam eles piedosamente aos últimos ajuntamentos de curiosos como Lenine se viu envolvido, contra vontade, na revolução, como tentou abrir-lhe uma saída moderada e como os maus discípulos não o permitiram…
Deslumbrado, o homem-que-não-quer-ser-escravo-de-ideologias respira a brisa morna da liberdade reencontrada. Sente-se como quer, desperta de um pesadelo, como o menino que descobre que o papão não existe.
Porque a verdade é que a sombra temível do “velho” ainda fazia funcionar o terrorismo intelectual do marxismo, essa chantagem inumana que obrigava a avaliar tudo segundo os interesses de uma revolução proletária que podia estar para chegar.
Agora, a vida vai ser mais alegre, sem esse espelho perverso sempre diante dos olhos, a dizer que a nossa democracia é uma fraude manipulada pelos ricos, que o nosso humanismo é a corrida ao privilégio reles, a nossa coragem o medo de cair na escravidão assalariada, os nossos ideais fancaria pequeno-burguesa, a nossa filosofia um mau cozinhado com restos azedos da Santa Madre Igreja; e que as invenções maravilhosas com que nos preparamos para entrar no século XXI são as pompas fúnebres do “último estádio do capitalismo”.
Morreu Lenine. Entrámos enfim no reino da liberdade. Podemos agora ler numa página do jornal que o presidente Bush apadrinha o direito à autodeterminação dos lituanos fartos da bota de Moscovo, sem termos que a confrontar com a notícia da página seguinte sobre as operações de limpeza das tropas americanas na zona do canal do Panamá, contra as últimas bolsas de desesperados. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Agora já se podem escrever fecundos ensaios críticos demonstrando como é obsoleta a noção de classe operária e como é abstrusa a própria noção de ideologia proletária, sem que venha um qualquer comissário político lembrar-nos que, nas aldeias do Norte, 30 mil meninos entram para a fábrica às oito da manhã pela mão dos pais. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Agora já não vai ser preciso lançar exclamações anti-imperialistas de cada vez que se noticia a fome em África ou as acções antiguerrilha na América Latina. A mania da politização extremista acabou. As coisas acontecem naturalmente, não é preciso arranjar-lhes valores de classe. E se eu quiser ser admirador do pensamento político do presidente Jonas Savimbi, ninguém se vai lembrar de me chamar “lacaio da CIA”.
Agora já não somos moralmente obrigados a condenar a exploração do homem pelo homem. Nem precisamos de nos sentir envergonhados por querer ganhar a corrida do dinheiro e do êxito, ou por ter saudáveis impulsos nacionalistas, pacifistas, humanistas, lúdicos, consumistas. Já não acreditamos que seja preciso “desmascarar a mentira da religião”. Já nos libertámos da ideia tosca de que o mundo esteja a caminhar para fora da pré-história bárbara e sangrenta das sociedades de classes. Rejeitámos essa arrumação redutora e totalitária dos homens em classes sociais, essa visão primitiva do avanço por saltos revolucionários.
Só que há um erro em toda esta história: a verdade é que o velho Lenine nunca existiu. O homenzinho, com a sua vontade implacável, a sua lógica cortante, o seu ódio concentrado, as suas longas risadas silenciosas, nunca passou de um fantasma; foi uma emanação das fábricas e estaleiros de Petersburgo, onde a imprevidência do czar tinha permitido que se amontoassem dezenas de milhares de carpinteiros, soldadores, calafates, costureiras, de cambulhada com estudantes exaltados.
Por um estranho fenómeno ainda mal estudado, o desespero dessa gente suja e andrajosa acabou por se corporizar na figura bizarra de Lenine. Daí veio tudo o mais, como o génio que sai da garrafa: os sovietes, a tomada do poder, o Exército Vermelho dos operários e camponeses, a União das Repúblicas Socialistas, a China, Cuba, o diabo!
A febre acabou por regredir, é certo. Mas a minha dúvida é esta: quem nos diz que nos subúrbios industriais de Manila, Nova Iorque, Moscovo, Hong-Kong, Islamabade, em todo o lado onde a pressão saudável da concorrência comercial gera descuidos na tarefa do arrefecimento das caldeiras sociais, um fenómeno químico semelhante não está a materializar, neste preciso momento, uma dúzia de génios malfazejos? E se um deles já chegou para sacudir o mundo durante meio século, o que será de nós com uma dúzia deles às costas?
Inclusão | 10/06/2018 |