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Primeira Edição: Política Operária nº 23, Jan-Fev 1990
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Aproxima-se o momento em que a resistência encarniçada de ÁIvaro Cunhal não conseguirá suster por mais tempo a onda “renovadora”. O próximo congresso promete tornar-se um marco na ruptura do “comunismo” reformista português em dois ramos, mesmo que formalmente Cunhal saia pela última vez vitorioso. Divulgamos aqui algumas passagens dum livro a editar brevemente.
“O PCP caminha para novas crises internas, em que vai ser elaborado um novo sistema de ideias e um novo estilo, mais adequados ao passo seguinte da sua trajectória: tornar-se um partido de governo. É talvez pressentindo a aproximação desse conflito que Álvaro Cunhal se ocupa no seu último livro em extrair das lutas do passado uma lição moderadora e unitária. Não parece que possa com isso poupar o PCP à sua décima luta interna.”
Deste modo terminávamos há quatro anos (P.O. n° 2, de Novembro/Dezembro de 1985) um balanço às nove lutas internas que marcaram a trajectória de afundamento reformista do PCP ao longo da sua existência. A décima luta interna aí está. Mais explosiva do que poderíamos ter suposto há quatro anos, mas revestindo a carga central que lhe atribuíamos: como fazer do PCP um partido de governo.
Poderá parecer que não é isso que está em questão; o pano de fundo do próximo congresso extraordinário de Maio é a polémica em torno da “perestroika” e da “crise do socialismo”. Na realidade, contudo, pairando por sobre as questões ideológicas, estará o problema político concreto em torno do qual gira há 15 anos toda a vida do partido: como franquear o degrau que falta para PCP se tornar um parceiro social plenamente credível, não apenas em termos de respeito pela ordem, gestor de sindicatos e autarquias (onde já deu bastas provas), mas como candidato a funções de governo.
Aí se contém a difícil opção que divide os responsáveis e quadros do PCP. Com efeito, o regime democrático tornou claro um problema que estava oculto sob o fascismo: um partido que renuncia à estratégia revolucionária não pode ficar-se eternamente pelo uso da acção de massas como alavanca de pressão sobre os governos e o poder; chega o momento em que, ou se mostra çapaz de disputar as instituições e ser governo, ou definha e desaparece.
Não serve de nada ao PCP demonstrar, ano após ano, que “previu e preveniu” nem inventar subtis “alternativas democráticas” se continuar excluído por todos os outros partidos da área do poder e, por esse facto, se vir condenado a ir lentamente definhando e perdendo eleitores e aliados.
Este fracasso alimenta a revolta de boa parte do aparelho contra Cunhal. De facto, os quadros brilhantes e eficazes que o partido formou ao longo destes 15 anos de legalidade democrática estão saturados de ver as suas carreiras políticas cortadas, de serem marginalizados como se tivessem a sida; riem-se com amargura das velhas ilusões com que Cunhal os aquietou durante anos e anos, prometendo-lhes uma “viragem democrática” que um dia faria o PCP sair do gueto onde está metido; escarnecem da “grande vitória” que foi o PS ter finalmente consentido ao PCP… que o ajudasse a eleger Jorge Sampaio para a presidência da Câmara de Lisboa.
Ninguém lhes pode negar carradas de razão. Se todos, “críticos”, “conservadores” ou “conservadores-críticos”, concordam que o objectivo do partido não é fazer agitação estéril entre as massas operárias nem lançar apelos ao derrube dos governos, se é preciso demonstrar a toda a população que o PCP tem uma alternativa democrática “avançada mas responsável”, então é preciso decidir-se a pôr de lado tudo o que ainda impede a admissão dos “comunistas” no governo.
E o que é esse “tudo”? É, naturalmente, tudo aquilo que a burguesia reprova. O que inclui evidentemente a disposição de renegar (explicitamente e não por meias palavras) o leninismo, renunciar aos laços com o PCUS e, se necessário, pôr de lado esse nome estupidamente romântico de “comunistas”, à século XIX, que assusta as pessoas e não serve para nada.
E justamente — reforçam —, que melhor altura pode haver para uma renovação audaciosa do programa, dos estatutos, do estilo, do nome inclusive, do partido do que esta, em que é possível aproveitar o vento de renovação que varre o carunchoso movimento comunista internacional, agora que tudo é possível porque já não há bonzos a ditar o que é permitido e o que é vedado?
Os ortodoxos já demonstraram a sua incapacidade para dar uma resposta satisfatória a estes argumentos. Mas a sua resistência não é pura obstinação de dogmáticos casmurros. Eles desejam tanto como os adversários encontrar uma fórmula que traga o partido para a área do poder. Mas sabem que, nas circunstâncias actuais, essa deslocação lançará o PCP na boca do PS.
Cunhal disse-o no CC de 23-24 de Janeiro: “O que os críticos querem é a fusão entre capitalismo e socialismo, a fusão do PCP no PS, sob a bandeira de uma hipotética reunificação do movimento operário”. A viragem que lhe reclamam cheira-lhe a aventura suicida. E pergunta: o “comunismo democrático” é uma inovação audaciosa que promete uma nova era de expansão ao partido ou é uma armadilha, uma ponte de passagem para dentro do PS? A Cândida Ventura, o Silva Marques, também queriam “renovar” a imagem do partido… Por isso, a sua decisão está tomada: não pactua com a liquidação da corrente que ele mais do que ninguém neste país ajudou a construir.
E ninguém o convence de que seja inadiável mudar. Portugal não é a Espanha nem a França. Durante meio século, a esquerda, aqui, foi o PCP. O antifascismo foi o PCP. A resistência sindical foi o PCP. Os socialistas, ninguém soube deles até às vésperas do 25 de Abril. Os trabalhadores nunca os conheceram.
Se o partido atravessa um declínio (motivado em grande medida pela questão internacional) e tem que manobrar, não é loucura deitar pela janela fora o seu capital histórico, a sua identidade inconfundível, só porque o PS o exige? “E quem nos garante que, depois de acedermos a todas as renúncias que nos exigem, não nos põem de lado como um trapo velho? E em que estado ficará o moral dos militantes do partido que tenham que pedir desculpa aos socialistas pelos conflitos passados — porque é isso que representa a viragem proposta?”
Cunhal sente-se cheio de razão. Ele tem preservado e cultivado, através de todas as adaptações, as marcas distintivas do PCP face ao PS, não apenas por amor à tradição, não apenas para adular as bases mais radicais do partido, mas porque tem a percepção nítida de duas coisas:
Mas é precisamente essa última fronteira que os renovadores agora lhe exigem que transponha, com argumentos irrespondíveis. Porque se o leninismo foi há muito abandonado e se resume a uma bandeira, qual o préstimo de continuar a agitar essa bandeira que segrega o PCP da sociedade real?
Ambas as facções vão bater-se pelos seus argumentos mas o problema não tem solução pela razão simples de que o “comunismo” reformista de Cunhal, esse monstro de seis patas, chegou ao fim do caminho que podia percorrer e esgotou as suas possibilidades de manobra. A lógica de Cunhal é uma lógica de conservação do que morreu. É possível que ele ganhe o congresso, fazendo apelo a toda a sua autoridade junto do aparelho partidário. Mas então a cisão será inevitável a prazo mais ou menos curto. Não há força no mundo que possa impedir o reformismo criado por Cunhal de se transformar em reformismo de corpo inteiro — mesmo correndo o perigo de vir a acabar como uma sensibilidade do PS.
O mais duro para Cunhal é que não tem pela frente apenas um punhado de intelectuais diletantes em política. Seria uma brincadeira se tivesse que se haver apenas com Zita, Vital, Judas. A questão é que por detrás dos “críticos” está não só o PS mas também a União Soviética. Situação monstruosa que há meia dúzia de anos pareceria impossível mas que é verdadeira! Os funcionários de Moscovo já deram a entender a Cunhal, sem grande cerimónia, que é melhor passar a pasta a gente nova e retirar-se, sob pena de transferirem o seu apoio para as “forças renovadoras”, deixando-o sozinho, como fizeram aos Honecker e Jivkov!
E este é na verdade o dilema trágico em que Cunhal se debate. Ele estava convencido de que a URSS jamais arriaria a bandeira da oposição ao mundo burguês ocidental. Nunca quis acreditar que a evolução da URSS conduziria forçosamente algum dia à fusão com o mundo burguês, foi tão incrivelmente ingénuo que acreditou que o pacifismo, os namoros ao imperialismo e à social-democracia, as correcções à ideologia, seriam só tácticas para ganhar forças intermédias. Até ao último momento, acreditou piamente que Gorbatchov estava a lançar uma manobra ainda niais audaciosa, mais flexível do que todas as anteriores, para deslocar novos apoios para o campo do socialismo. Nem por sombras admitia que se estivesse perante o saldo final do campo socialista, do movimento comunista, da bandeira do leninismo.
Mais duro é agora o despertar. Mesmo os discípulos fiéis são obrigados a perguntar “se o grande prestígio pessoal do camarada Gorbatchov não está a ser ganho à custa do enfraquecimento do socialismo”. O facto mete-se de tal maneira pelos olhos dentro que até mesmo os broncos funcionários incondicionais têm que interrogar-se.
E o pior é que não é só o “campo socialista” que “Gorby” vende em hasta pública; é também o mal chamado “movimento comunista”. A verdade brutal é que a direcção soviética decidiu deixar cair os últimos fiéis no exterior porque já não lhe são de nenhum préstimo e se tornaram um empecilho à negociação com as forças que realmente contam neste mundo: os homens de negócios, os governos, as multinacionais.
O mais humilhante para Cunhal é constatar que lhe mentiram em cada uma das suas viagens a Moscovo. Os líderes soviéticos, para assegurar o êxito da operação, mantiveram os “ortodoxos” na ignorância do que estava a acontecer; negaram categoricamente que se pretendesse liquidar o movimento, e foram deixando entrever o objectivo final por etapas, até obrigar os adeptos a reconhecer que já não há outra saída e que é preciso dar o salto no abismo, fundir-se com a social-democracia.
O comportamento de Gorbatchov é o de um traidor consumado e aqueles que mais indefectíveis foram na defesa da “confiança inabalável na grande União Soviética”, os tolos que não se souberam distanciar a tempo são os que mais sofrem. Mas mereciam eles outra coisa?
Vai acesa a polémica nas fileiras dos PCs para saber quem é melhor e mais sincero perestroico, quem tinha divergências há mais tempo, quem foi o primeiro a defender as “posições justas”. Cá por casa não com a mesma desenvoltura que em França, por exemplo, onde corre um verdadeiro festival de renegações; mas, mais ou menos em surdina, cada um quer provar que nunca foi stalinista nem sequer brejnevista, que pôs reservas às posições “dogmáticas”, que há muito defendia uma renovação…
Discussão obscena que é um sinal do desmanchar de feira a que chegou o PCP. Esta gente não nota o espectáculo que dá, de falta de carácter, de rebaixamento moral, de capitulação. Se ainda sobraram ao PCP militantes com dois dedos de inteligência e de instinto de classe, como poderão deixar de se sentir humilhados e repugnados com esta cena?
Porque tanto Cunhal como os outros mentem descaradamente quando alegam que não sabiam das “violações da legalidade”, dos “desvios aos princípios”, da vida faustosa d os chefes “socialistas”. Todos eles simplesmente fechavam os olhos, porque era tudo pela boa causa. Era esse o seu ideal, de que agora se envergonham.
Mas que idealismo era esse que os levou a apoiar todas as “rectificações”, viragens, golpes, desde que fossem caucionados pela direcção soviética e que acabou por os trazer ao ponto de aplaudirem tudo aquilo que no passado consideravam como “revisionismo” inadmissível?
Na verdade, esse ideal que levava tanto Cunhal como Vital, tanto Abrantes como Judas a fechar os olhos e os ouvidos a todas as provas da suja degeneração burguesa da URSS era apenas um: o sentimento de segurança que lhes dava “o poderio da grande União Soviética” e “a força do campo socialista”. Era tranquilizador apoiar-se a uma grande potência de recursos imensos, que parecia instalada de pedra e cal e prometia vir um dia a dominar o mundo tudo era questão de ter paciência. Eis o sumo dos vossos princípios, eis o argumento decisivo que vos guiava nas vossas lutas “ideológicas”!
Nunca me posso esquecer de 1963, quando, em Moscovo, discuti pela última vez com Cunhal e Francisco Miguel. Estava em debate na época a indecorosa renegação de Staline pelos seus companheiros de equipa, a teoria da passagem pacífica ao socialismo, a rejeição da ditadura do proletariado, os namoros aos governantes “sensatos” dos Estados Unidos, o isolamento da China revolucionária. Era o leninismo pura e simplesmente virado de pernas para o ar.
Mas perante as provas de que o PCUS abandonara todos os princípios do leninismo e de que só podíamos continuar a ser comunistas se cortássemos com a URSS, Cunhal e Francisco Miguel encolhiam os ombros, com um sorriso condescendente, como quem ouve uma loucura. Não tinham argumentos para contrapor. Só sabiam que romper com a tutela da União Soviética por causa de questões ideológicas seria uma infantilidade…
Quando hoje Cunhal fala, numa entrevista ao Avante, das “características revolucionárias e exaltantes da perestroika”, que “veio reconstituir o poder dos sovietes”, ele mente como o padre que, depois de ter perdido a fé, continua a rezar porque é essa a sua profissão.
Culmina assim uma longa carreira de cínico cálculo político, baseado numa ficção — continuar a jurar em nome do leninismo mesmo depois de o ter posto de lado. É tão pouco decente este fim de carreira de Cunhal como o prometedor início dos seus críticos.
Inclusão | 02/10/2018 |