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Redactores, colaboradores e amigos de “Política Operária”, reunidos a 20 de Janeiro, fizeram o ponto das transformações ocorridas nos últimos meses no chamado “campo socialista” e particularmente na Europa Oriental. A discussão foi viva e o artigo que segue, de responsabilidade individual, pretende resumir as principais questões debatidas. Esperamos que outros se sigam sobre o tema.
Na Europa de Leste estão a esboroar-se ditaduras falsamente socialistas, opressoras e exploradoras — porque devem os comunistas, que desde há decénios denunciam o capitalismo de Estado e a sua ideologia revisionista, demarcar-se do júbilo democrático em curso? Por aqui passa, parece-nos, a linha do comunismo face a esta convulsão histórica. Linha que ocorre, como sempre, em confronto com a social-democracia.
Como justificam os social-democratas a sua satisfação pela crise do Leste? Eles pretendem que o fim desses regimes torna mais universais os valores da democracia e que a exploração da situação pelo imperialismo não irá longe, pois “ao roubar espaço aos extremismos de uma lado e de outro, a crise final do stalinismo tira argumentos à direita e alarga o campo da esquerda”. A partir de agora não haveria pois obstáculos ao alargamento da democracia e às conquistas dos trabalhadores, à realização do sonho social-democrata de iguais oportunidades para todos em clima de liberdade.
Mas a realidade é oposto: a satisfação geral pela actual “libertação dos povos escravizados” torna-se verdadeiro entusiasmo por parte das forças da direita; os fascistas estão eufóricos; os bispos celebram a “conversão” da Rússia tão esperada; toda a direita se felicita pelo fuzilamento do “ditador comunista” Ceausescu, no qual vê o anúncio de uma grande desforra histórica.
Sobretudo, são os Bush, Kohl, Thatcher, os chefes de fila do imperialismo, quem inspira e capitaliza a grande viragem. O que eles e os seus ideólogos celebram é a extensão dos tentáculos do capital financeiro ao Leste, o levantamento dos últimos entraves que esses regimes cambaleantes ainda opunham à penetração das multinacionais, a esperança de submeter à sua exploração, como rebanhos dóceis, milhões de trabalhadores do Leste.
O imperialismo não festeja apenas os lucros directos que espera obter da absorção da Europa oriental. Ele entrevê já o restabelecimento integral do mercado capitalista mundial, que havia sido amputado sucessivamente de vastas regiões a partir da revolução russa de 1917. Saúda a perspectiva de melhor fazer ajoelhar por todo o mundo os operários e os povos oprimidos, dizendo-lhes brutalmente: “Percam toda a esperança de se verem livres do capital!”
Como se compreende que a crise dos regimes antipopulares do Leste agrave em vez de melhorara a situação internacional? Até agora, as tendências mais reaccionárias e agressivas do imperialismo eram travadas pelo receio da competição militar da União Soviética e pelo receio de que os regimes “socialistas” ganhassem maior influência nos países dependentes e maior simpatia das massas trabalhadoras e minassem as suas bases de apoio. A partir de agora, livres desse obstáculo (por frouxo e contraditório que ele fosse), proclamando aos quatro ventos a falência do marxismo, podem dar maiores largas ao seu reaccionarismo. E é este reforço do capitalismo que provoca, como é norma, o optimismo da social-democracia!
Isto não significa contudo que estejamos perante uma questão linear. A originalidade da situação mundial actual dá lugar a toda a espécie de interrogações nas fileiras dos que se opõem pela esquerda à social-democracia. Por exemplo: podem os comunistas ter uma atitude pessimista perante revoluções populares que põem fim a regimes por nós denunciados há decénios como inimigos dos trabalhadores e da revolução, e selam a bancarrota do capitalismo de Estado e do revisionismo moderno? Em que podem os novos regimes que se desenham na Europa oriental ser piores para os trabalhadores que os que tombaram? E desde quando beneficia o imperialismo de movimentos de libertação popular? E quem nos diz que as expectativas imperialistas quanto a esses países se vão realizar?
Se as massas se levantam em manifestações gigantescas pela liberdade, de repúdio das ditaduras burocráticas, não têm esses movimentos um carácter progressista e mesmo revolucionário? Não temos a obrigação de estar com eles sem reservas de qualquer espécie. Mesmo que sejam apoiados pela burguesia do Ocidente e pelo imperialismo?
Pode ser instrutivo ver como responde a FER a esta questão. No nº de Janeiro do seu jornal Alternativa Socialista, saúda sem meias tintas as “revoluções” em curso e justifica os traços suspeitos ou francamente reaccionários destas como resultado duma
“busca às apalpadelas”, inevitável “em países onde uma prolongada idade das Trevas, fascista ou estalinista, privou a classe dominada dos mais elementares meios de expressão e organização”. “Negar a autenticidade dessas revoluções porque não nos agrada a sua ideologia oficiosa” — acrescenta — “seria o mesmo que negar, por exemplo, a autenticidade da revolução russa de 1905 porque os camponeses que a iniciaram… começaram por entoar cânticos religiosos e dirigir súplicas ao czar”.
E quanto ao facto surpreendente de nenhuma destas ”revoluções” ter à sua frente um partido revolucionário, Alternativa Socialista assegura que
“o que tem de surpreender-nos é a rapidez com que as massas em luta aprendem e dão valiosos passos de organização”.
Temos assim revoluções populares “às apalpadelas” que derrubam ditaduras estalinistas de tipo fascista e que estão em vias de forjar as suas “vanguardas revolucionárias” no decurso da luta. Não é uma análise muito profunda mas tem o mérito de ser clara. Para ir já direito às conclusões, diremos que o ideal da “revolução política” trotskista para o Leste fica bastante à direita do nosso 25 de Abril. Mas como isto pode passar por um mau gracejo “sectário” vamos analisar o concentrado de ideias reaccionárias que a FER nos ofereceu grátis para facilitar o debate.
A FER deveria saber que os marxistas não podem repetir como papagaios a expressão “revolução popular” com que toda a burguesia brinda os movimentos em curso na Europa de Leste e na União Soviética. É o povo sem dúvida que sai para a rua a exigir a liberdade e a demissão dos bonzos “comunistas”. Mas põe-se a pergunta: qual a correlação das forças de classe dentro deste “povo”? É a classe operária que arrasta atrás de si as massas semiproletárias e pequeno-burguesas ou é o inverso? Compreendemos que esta pergunta nem sequer se tenha posto aos propagandistas da FER porque o seu conceito de proletariado é tão elástico que engloba praticamente todos os que não são patrões, mas nem por isso a questão deixa de existir.
Porque parece indiscutível a quem ainda não se deixou embebedar pelo festival que varre a Europa Oriental que os movimentos de massas se limitam a revindicações e palavras de ordem democrático-burguesas, manifestam um nacionalismo exacerbado, são acompanhados pelo renascimento de suspeitos partidos “camponeses” e “cristãos-democratas”, não condenam mas saúdam o imperialismo, etc.
Os movimentos marcadamente proletários nesta onda de agitação têm sido até agora marginais, são de carácter económico e quando formulam reivindicações políticas não vão além da democracia burguesa.
Isto tem um nome: é indiscutivelmente a pequena burguesia que exerce uma hegemonia incontestada nas “revoluções” em curso e que arrasta atrás de si, utilizando ao seu serviço a classe operária.
Ainda mais (e aqui revelamos sem complexo o nosso revoltante “stalinismo”): não temos dúvida de que a CIA, os serviços secretos da Alemanha Federal e a Igreja católica têm uma intervenção activa nestas “revoluções populares”.
Com efeito, só os inocentes políticos ignoram que, depois de Bush ter extorquido a Gorbatchov um compromisso de que deixaria a Europa de Leste seguir o seu caminho, os agentes ocidentais instalados em Budapeste e Varsóvia puseram em movimento os seus agitadores, estabeleceram ligações. Apoiaram o ressurgimento dos novos partidos, difundiram as palavras de ordem. Já tinham a experiência ganha nas jornadas de 1956 na Hungria e de 1968 na Checoslováquia, tão semelhantes às actuais pela sua dinâmica social e política que bem podem ser consideradas como ensaios gerais das actuais “revoluções”.
Com isto não negamos a base social própria do movimento. Obviamente, não é a CIA que o fabrica; mas a burguesia ocidental conspira, impulsiona, conjuga e orienta, aproveitando o vazio político criado pela decadência das camarilhas revisionistas e pela confusão dos trabalhadores. E isso também deve ser dito por nós, para desmistificar a imagem de um levantamento puramente espontâneo, como a propaganda procura fazer crer, com o fito de lhe criar melhor aceitação pela opinião pública internacional.
Na realidade, é impossível abarcarmos toda a dimensão e a dinâmica do movimento em curso se não tivermos em conta que ele é o coroamento de 40 anos de campanha imperialista pela “libertação dos povos de Leste vítimas do totalitarismo da bota soviética”.
Parte integrante desta campanha era a imagem democrática e socialista com que eram embelezados o Solidarnosc e Walesa, os Dubceks e os Nagy, os Sakarov e Kundera — todos os que se levantavam, não em defesa dos direitos revolucionários dos trabalhadores do Leste mas da sua entrega ao capital ocidental. É necessário dizer que a democracia pequeno-burguesa, devido à sua miopia e estupidez política, mais uma vez serviu de agente do imperialismo.
Estes factos dificilmente podem ser contestados. Mas — respondem-nos — o que queríamos nós? Que as massas não se levantassem, como sabem e podem, contra os burocratas e que esperassem uma melhor oportunidade, para não dar trunfos ao imperialismo? Além disso, o que impede que as revoluções democráticas, uma vez resolvida a tarefa mais vital e mais premente das estruturas totalitárias, passem a abordar de imediato as suas tarefas anticapitalistas? Quem nos garante que a pequena burguesia não vai passar para segundo plano, deixando à classe operária a condução do movimento?
E encostam-nos à parede com a pergunta: a nossa recusa a congratularmo-nos com a libertação dos povos do Leste europeu, apontando-lhe toda a espécie de erros e perigos, não revela uma nostalgia encapotada pelo stalinismo?
Aqui há um esclarecimento prévio a fazer: é que, se a acusação de “stalinismo” como chantagem para arrancar concessões resulta sempre quando se trata dos revisionistas, ansiosos por limpar a sua reputação de bons democratas, a nós, que vimos fazendo a crítica ao stalinismo pela esquerda, não nos impressiona muito.
Não, não lamentamos o desmoronamento dos regimes de capitalismo burocrático pela simples razão de que constituímos a nossa corrente (há um quarto de século) precisamente sobre a denúncia do carácter anti-operário desses regimes. A questão está em saber se a forma como essa derrocada se está dar serve os interesses do proletariado e da revolução. Ora, até agora, ela está a ser utilizada sem partilha pelo imperialismo e pelos seus criados social-democratas, com o fito de transferir os trabalhadores da Europa de Leste das grilhetas do capitalismo estatal, para as grilhetas do capitalismo monopolista, que aparece pintado com belas cores democráticas e prometendo a prosperidade para todos. Esta é a questão.
A comparação consoladora com a Rússia de 1905 invocada pelo jornal da FER não tem ponta de senso. Esquece que em 1905, os camponeses bem podiam rezar e dirigir súplicas ao czar: o seu movimento conduzia objectivamente, quer eles o soubessem ou não, à revolução burguesa. Mas é absurdo imaginar que as multidões que hoje, na Europa Oriental, aclamam o fim da “ditadura comunista” e o restabelecimento da iniciativa privada, estão a avançar sem o saber para a revolução socialista! Elas exprimem, como toda a gente menos a FER percebe, o desejo de reforma e reforço do capitalismo.
Recusando-se a admitir a ideia pessimista de que “a tendência natural do movimento de massas desencadeado a Leste seja para a restauração do capitalismo” a FER revela uma ignorância dupla: primeiro, desconhece que as bases do capitalismo já estão restauradas há muito nesses países; e segundo, desconhece que a “tendência natural” dos actuais movimentos de massas é justamente a busca de mais liberdade e melhores condições de existência no quadro do regime capitalista.
Tendência tanto mais “natural” quanto o movimento aparece privado por completo da intervenção de qualquer vanguarda revolucionária. Quantas experiências mais serão necessárias para que os trotskistas e outros líricos se convençam de que a revolução proletária não brota espontaneamente das nascentes da insatisfação popular, nem da coordenação dos comités de greve, nem das jornadas de luta pele liberdade?
Sem estofo para encarar de frente a realidade crua da luta de classes, tentando salvar a “confiança na revolução” à custa de histórias da carochinha sobre vitórias imaginárias, a FER aplaude, com argumentos nobres, a pouco exaltante explosão democrática pequeno-burguesa do Leste, essa mesma que a social-democracia nos vende como “uma grande vitória do mundo livre”. Será preciso dizer mais uma vez que esta função de tradutores de esquerda da democracia pequeno-burguesa, este jeito para apimentar o caldo democrata com temperos “revolucionários”, confirma os trotskistas no seu papel histórico de reserva da social-democracia?
Vínhamos desde há muito denunciando o carácter anti-operário e antipopular das chamadas “repúblicas populares e socialistas” da Europa Oriental, e prevendo a sua inevitável passagem à restauração integral do capitalismo. Mas fomos, como todos, colhidos de surpresa pela rapidez com que esses regimes começaram a desabar como castelos de cartas, perante manifestações pacíficas, sem serem capazes de disparar um tiro. A Roménia foi até agora a única excepção mas, mesmo aí, a ditadura revelou uma debilidade extrema.
A ausência de qualquer base social de apoio é o que ressalta dos acontecimentos. Todo o impressionante edifício do partido, dos ministérios, da polícia, do exército e das organizações de massas vem a terra. Os revisionistas acabam odiados e abandonados por todos.
Isto parece à primeira vista confirmar a teoria de que esses regimes (à excepção da Albânia, onde a degeneração do poder não seguiu o mesmo ritmo e onde o triunfo da “revolução” poderá ter que passar por uma guerra civil) se baseavam exclusivamente em camarilhas sustentadas pelo terror e pela ocupação militar soviética. Mas essa teoria simplista (compartilhada com ligeiras variantes pela direita e pela social-democracia) oculta o carácter social e as causas da decadência da “democracia popular”.
Que a União Soviética tinha um papel decisivo na sua manutenção, tal como teve no seu surgimento, ninguém duvidava mas ficou evidenciado com total clareza. Assim que a cúpula do PCUS decidiu largar lastro para evitar o afundamento do barco, ou seja, ceder à exigência imperialista de que abandonasse os seus bastiões avançados obtidos desde o fim da segunda guerra mundial, o destino das “democracias populares” ficou traçado.
Isto, contudo, não pode de forma alguma retratar o conjunto do fenómeno. Os regimes “populares” puderam ser vendidos em saldo porque tinham chegado ao máximo de impopularidade e estavam maduros para cair; só não nos apercebemos disso por não termos sabido tirar todas as consequências da crítica que nós próprios fazíamos ao capitalismo de Estado e por não termos posto em causa há mais tempo a versão maoísta desse regime como uma ditadura forte, ao serviço duma burguesia estruturada, de tipo fascista (o “social-fascismo”).
Efectivamente, a burguesia de Estado, pela sua própria natureza, não podia ganhar uma consistência e coesão comparáveis às da burguesia privada. A sua função de administradora do capitalismo estatal proporcionava-lhe privilégios mas não lhe permitia concentrar capitais nem constituir-se em grupos financeiros. Daí a sua fraqueza interna, a dificuldade em elaborar uma estratégia de classe, o comportamento vacilante.
A tese de que a burguesia de Estado, pela sua fusão com o aparelho estatal, se tornava mais poderosa do que a burguesia “clássica”, foi mais uma revisão do marxismo desmentida pela vida.
A capitulação final dos revisionistas vem coroar uma sucessão de capitulações por nós apontadas desde há 25 anos e que muita gente achava “exagero” da nossa parte. Se a fragilidade interna da burguesia de Estado se mantinha oculta sob a carapaça do monolitismo, ela vinha contudo dando sinais de ruptura iminente.
De facto, ao encetar, lentamente, ao longo das últimas décadas, a via das reformas, tentando reanimar a economia estatizada pela introdução controlada de mecanismos de mercado pelos estímulos materiais, autonomia de gestão das empresas, restrições ao papel da planificação, tolerância a determinados ramos da pequena burguesia, flexibilidade e abertura face à ideologia pequeno-burguesa — os partidos revisionistas no poder internaram-se numa experiência suicida.
O resultado das concessões à acumulação e ao mercado, admitidas não como recuos tácticos mas como “aperfeiçoamentos do socialismo”, só podia ser a ascensão em espiral das reivindicações burguesas. E uma vez que essas reivindicações sempre crescentes se chocaram com o muro da economia estatizada, elas derivaram para a especulação e a corrupção, a quebra da produtividade, o impasse económico, o vazio social, preparando a cena para o epílogo.
Nesta corrida para neutralizar o descontentamento da pequena burguesia através de concessões, a burguesia burocrática de Estado foi queimando a vacilante base de apoio operária e popular que tinha ganho nos primeiros anos graças à expropriação dos capitalistas e latifundiários, sem nada obter em troca a não ser acalmias temporárias.
A história das ”Democracias Populares” nos últimos trinta anos foi assim uma sucessão de abandono de princípios “inabaláveis”, que cada vez tornavam mais iminente a conclusão final: a renúncia definitiva ao mito socialista.
A pequena burguesia, tal como o imperialismo, nunca apoiou os chefes revisas; apoiava as suas concessões. E a cada concessão obtida, exigia outra nova. Por isso, os “liberais” adulados numa etapa corriam o risco de ser considerados como “conservadores” na etapa seguinte, numa longa marcha para trás.
Chegaram assim ao resultado final da sua “exaltante” experiência renovadora — o momento em que é preciso dar o último passo, entregar o poder aos representantes dos patrões, privatizar a economia, aderir ao FMI, negociar com os chefes dos partidos que tinham banido, e render-se e ir para cãs de rabo entre as pernas para não ser abatidos, como aconteceu a Ceausescu.
Os contornos do movimento parecem agora claros: estamos perante um movimento revolucionário burguês, que vem libertar as forças do Capital, manietadas pelo regime do capitalismo de Estado. Essa variedade de capitalismo congelado que tem vigorado no Leste e a caricata burguesia vermelha que lhe corresponde tinham-se tornado um dique ao crescimento das forças produtivas; tinham que ser varridos e foram varridos.
A ruptura deste dique pseudocomunista terá, sem dúvida, a longo prazo e para o conjunto do movimento operário internacional, consequências positivas, na medida em que permite o amadurecimento da luta de classes, aberta, sem disfarces nem hipocrisias “socialistas”.
Mas estas revoluções burguesas que agora se completam, após um alenta germinação de decénios, não têm qualquer parecença com as revoluções do século passado nem com as revoluções de libertação nacional deste século.
Porque não aparecem os operários à cabeça da luta para derrubar as camarilhas revisionistas no poder, porque se limitam a ser uma força de choque ao serviço das reivindicações da pequena burguesia?
Quando nós, como outros, esperávamos esse desenlace para a degeneração revisionista não tínhamos em conta a profunda desagregação ideológica e política sofrida pelo proletariado da Europa Oriental sob a “democracia popular”. Na verdade, a consciência das massas depende muito mais da luta de classes em que estão envolvidas do que de experiências passadas ou de ensinamentos teóricos. Ora, as massas operárias do Leste conheceram desde a geração anterior, sob o nome de “socialismo”, um regime de privilégios camuflados, repressão e estagnação económica. A conclusão que tiraram foi de que o marxismo-leninismo é uma fraude e que, dos dois regimes que existem de facto (na prática e não em teoria), o socialismo é um fracasso. Ao rejeitá-lo a sua primeira tendência foi voltar-se para o único outro regime que existe.
Mas a explicação do fenómeno não é apenas ideológica. Os operários do Leste não puderam ter iniciativa política própria e independente porque a natureza social do regime lha roubou. De facto, nas “Democracias Populares”, a luta de classe do proletariado contra a burguesia estava não só posta fora da lei, como nos regimes fascistas; ela estava castrada pela necessidade, evidente para qualquer operário, de defender o regime (mesmo inoperante e corrupto) contra a ameaça de restauração dos capitalistas e latifundiários.
Eis o detalhe que não conseguem compreender os que se recusam, “por uma questão de princípio” a fazer distinção entre “stalinismo” e fascismo. Ambos são efectivamente regimes tirânicos — mas um nasce sobre a expropriação da burguesia, o outro nasce como a trincheira terrorista da burguesia que não quer ser expropriada. Por isso o alinhamento das classes em cada um destes regimes não tem nada de comum.
A paralisação política da classe operária do Leste, arrastada a suportar os burocratas no poder devido à miragem da “defesa das conquistas revolucionárias” afastou-a da ribalta da cena política e abriu um campo imprevisto à pequena burguesia.
Isto não significa contudo que a classe operária dos países de Leste não possa ser chamada a curto prazo para a vanguarda da luta. O agravamento brutal da sua situação económica que já se começa a fazer sentir, a voracidade do imperialismo e da nova burguesia que precisa de ritmos rápidos de acumulação, a previsível passagem da actual lua-de-mel “democrática” para regimes autoritários, ditatoriais ou militares, vão dar-lhe lições vivas de marxismo e despertá-la do torpor em que foi mergulhada.
Porque não estão os comunistas a capitalizar a derrocada geral do revisionismo e a afirmar-se como a corrente hegemónica do movimento operário? Porquê, em vez disso, chegam ao momento que deveria ser do seu triunfo, desmembrados em seitas e sem clareza teórica? Estamos a sofrer a consequência dos nossos erros. Que não foram a “fidelidade dogmática a uma doutrina envelhecida” mas a falta de firmeza marxista na ruptura que iniciámos com o revisionismo nos anos 60. Começámos por fazer um retorno tímido, truncado e deformado aos princípios do leninismo e viemos, com uma lentidão exasperante e deixando inúmeras baixas pelo caminho, redescobrindo os fundamentos do marxismo, cobertos por camadas sobrepostas de revisionismo e dogmatismo.
Primeiro que nos decidíssemos a reatar a linha de continuidade com o bolchevismo, oscilámos por uma série de adaptações oportunistas do marxismo, desde o guevarismo ao stalinismo e ao maoísmo, e nessa oscilação deixámos perder mais de 20 anos, que poderiam ter sido um período precioso de acumulação de forças.
Gastámos em ninharias o tempo que devíamos ter consagrado a entender e explicar as causas do declínio do campo “socialista” e do movimento “comunista”. Não tivemos uma acção coerente que polarizasse para o nosso lado um sector de vanguarda da classe e que neste momento poderia ser decisivo para a nossa implantação.
De modo que quando os revisas entram na derrocada há muito prevista por nós, não estamos em condições políticas, ideológicas, organizativas para recolher o apoio operário que eles vão perdendo. Saem-nos caros os nossos erros.
Para muita gente poderemos aparecer cada vez mais como os ultra-extremistas. Nós sabemos que o mal foi o oposto: fomos vacilantes. É preciso que essa lição nos guie no período que agora começa.
Por muito impopulares que sejamos, devemos colocar-nos em posição antagónica à social-democracia se quisermos continuar a salvaguardar os interesses do proletariado.
Com efeito, desde que surgiu, há três decénios, a nova corrente comunista que representamos aprendeu, através de uma série de lutas políticas, que era muito fácil cair num anti-revisionismo de direita, se nos deixássemos arrastar pela linha do menor esforço e da mais fácil popularidade.
Hoje isso ainda é mais verdadeiro. Qualquer vacilação ou contemporização da nossa parte face às teses social-democratas ser-nos-ia fatal. Ela está decidida a explorar a fundo a vantagem que lhe é proporcionada pelo colapso dos regimes de Leste; crê chegado o momento para uma ofensiva final contra os últimos redutos das ideias leninistas; quer aniquilar a herança da revolução russa de 1917, da insurreição operária, da ditadura do proletariado, do poder dos sovietes, desacreditar de uma vez por todas os ideais do comunismo.
A social-democracia sonha com “um mundo novo” em que ninguém à sua esquerda tenha crédito para desmascarar as suas traições ao movimento operário, em que lhe fique a pertencer de pleno direito a representação exclusiva da esquerda, para poder negociar os seus arranjos reformistas com total liberdade de manobra e impunidade. Pretende anexar os caquéticos partidos revisionistas (o que provavelmente vai conseguir) mas não só; faz chantagem sobre todas as forças de esquerda para que, associando-se às congratulações pela “libertação dos povos escravos”, reconheçam implicitamente a falência do leninismo e ditem a sua própria autoliquidação. Este é o desafio que nos é colocado pelos acontecimentos.
Que campo abre esta crise final do revisionismo à nova corrente comunista? Será que temos à vista perspectivas radiosas para a luta do movimento operário, como pensam alguns camaradas? Ou será que vai ser preciso esperar muitos anos ou decénios para se reformular a teoria da revolução proletária e do comunismo, para reagrupar uma nova vanguarda comunista e levantar de novo a esperança na revolução proletária?
É certo que a vergonhosa falência do revisionismo tornará clara, pouco a pouco, para muitos operários e outros revolucionários, a razão das críticas que lhe fazíamos. Ao caminhar-se para o apagamento das fronteiras sociais e ideológicas entre o campo “socialista” e o campo capitalista, passamos a ser os únicos a levantar as bandeiras do marxismo-leninismo, da revolução proletária e da ditadura do proletariado, que os revisas deitam fora. A longo prazo, isso criar-nos-á um espaço que até agora não tínhamos.
Mas, para já e talvez durante anos, tudo jogará contra nós porque essas bandeiras ficaram desacreditadas. A derrocada do Leste pôs em movimento uma enorme vaga anticomunista fomentada pelo imperialismo, pela direita e pela social-democracia. O descrédito do marxismo, do socialismo e dos partidos comunistas junto da classe operária terá consequências ainda difíceis de prever.
Para já, a ideia propagada pela direita e pela social-democracia de que o leninismo esgotou as suas potencialidades, e mais, teria repousado desde o início num equívoco voluntarista e autoritário, parece hoje demonstrada a muitos. Olham para o ciclo revolucionário que se encerra, não como uma época de realizações prodigiosas erguidas sob o heroísmo de milhões de militantes do proletariado, que nos deixaram uma riquíssima herança de combate anticapitalista, mas como uma sucessão de erros dos comunistas! Como se não tivesse sido graças aos comunistas que essas revoluções, forças da natureza que inevitavelmente explodiriam, receberam o seu mais vigoroso desenvolvimento.
Mas o peso das derrotas turva o raciocínio. Dizem-nos alguns: se nos “elos fracos” se provou que a revolução sucumbe, por carregar demasiados estigmas pré-capitalistas e tornar inviável a passagem ao socialismo, e se nas metrópoles imperialistas a atmosfera social apodreceu em extremo, criando ambiente para tudo menos para revoluções — não indica isto que é preciso rever as ideias básicas do leninismo, e mesmo do marxismo? Ainda se pode insistir em ditadura do proletariado, insurreição armada, partido de tipo bolchevique, alastramento gradual da revolução de uns países para outros? Ou isso já nada tem a ver com o mundo de hoje?
Este raciocínio melancólico, típico dos que vêem o mundo à imagem e semelhança da paz podre das suas metrópoles imperialistas, ignora a contínua acumulação de forças explosivas que empurram o capitalismo a caminho de tempestades destruidoras.
O mais importante para nós é que a crítica ao ciclo das revoluções deste século não se torne um pretexto para baralhar todos os dados do problema e recuar para trás do leninismo. O século XX provou que a revolução socialista não conseguiu impor-se a partir dos elos fracos pré-capitalistas (Rússia, China). Ficou agora demonstrado que só a revolução num país capitalista pode ter base económica e forças motrizes para iniciar a transformação socialista e alastrar a outros países. Se amanhã rebentassem revoluções dirigidas por comunistas na África, na Indonésia ou no Paquistão, tudo indica que repetiriam de certa forma a trajectória abortiva da Rússia e da China.
Mas não há razão para deduzir daqui que a revolução proletária deixou de ser possível por não ter condições propícias nem nos países pré-capitalistas nem nas metrópoles imperialistas. Esses dois pólos extremos do mundo actual criam, cada um deles, os seus bloqueamentos próprios à marcha da revolução. Mas há hoje outros elos fracos muito diferentes dos do tempo de Lenine e muito mais amadurecidos para a revolução: são os países capitalistas periféricos, carregados de contradições, dominados por burguesias distorcidas e vulneráveis, dotados de fortes classes operárias, como é o caso da Coreia do Sul ou de Taiwan, do Brasil ou do Chile, da Palestina ou do Egipto, da Polónia ou da Bulgária… Talvez neste mesmo momento em que o imperialismo canta vitória o segundo ciclo de revoluções proletárias já esteja a germinar. A tarefa dos comunistas é reagrupar-se em torno das lições do período histórico que se encerra, e preparar-se para intervir na luta de classes que não se esgota.
Agora que a aparência de divisão do mundo em dois campos sociais antagónicos de desvaneceu, a luta pela revolução socialista, no Leste como no Ocidente, vai tornar-se uma necessidade evidente aos olhos de milhões de proletários. Afinal, é a burguesia, não nós, que está a mais no mundo de hoje.
Inclusão | 11/09/2016 |