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Uma organização operária em decadência, afogada pelo reformismo – é esta a origem dos conflitos que têm vindo a público.
A organização do PCP em Almada tem estado em foco na imprensa e a presença de Álvaro Cunhal na 5ª Assembleia Concelhia, que teve lugar em 13 de Março, ainda mais veio avivar as especulações sobre a crise que estaria em marcha.
Como as provas dessa crise, para dizer a verdade, são escassas, os pêcêpólogos procuram fazer render o mais possível o pequeno escândalo criado em torno de confusos conflitos pessoais entre autarcas, infectar os despeitos, dar-lhes dimensão política e descobrir associações entre contestatários e o “grupo dos seis” de Vital Moreira.
Avolumar todos os possíveis focos de dissidência no partido e fazê-los confluir numa corrente oposicionista no congresso de Dezembro tornou-se uma causa apaixonante para todos os que aspiram a ver PCP finalmente “modernizado” – isto é, ainda mais dócil e colaborante do que já é.
Mas o caso é que os problemas do PCP na cidade existem e são muito mais sérios do que pode fazer crer a guerra entre autarcas. O relatório de actividade apresentado pela Comissão Concelhia à Assembleia, documento a que tivemos acesso, revela as raízes da crise que corrói a organização “comunista” de Almada. É uma crise política e social que se estende hoje, estamos convictos, a todas as organizações operárias do PCP. E que explica o espaço cada vez maior que no interior do partido encontram os elementos mais oportunistas.
Com 6.500 membros, 120 organismos de empresa, 1.300 Avantes vendidos semanalmente, maioria absoluta em quase todas as autarquias do concelho, influência sem partilha em todas as grandes colectividades populares, a organização de Almada continua a exibir uma aparência de poderio.
Mas os sintomas de doença que transparecem do relatório desmentem essa impressão.
O número de membros teve uma baixa de 400 nos últimos dois anos. Um quarto dos membros tem pouco ou nenhum contacto com a organização. Em Dezembro de 1987, 45,7% dos membros “não tinham pago qualquer quota”. O número de organismos declarados decresceu de 293 para 257 desde a Assembleia anterior, há dois anos, havendo além disso “um funcionamento irregular ou nulo de alguns organismos”. Há organismos que “armazenam” a imprensa em vez de a distribuir. As dívidas de imprensa “já perfazem nos últimos anos algumas centenas de contos”.
A organização real é pois muito menor do que os números globais deixam supor, contrai-se rapidamente e está a envelhecer: enquanto os membros com menos de 30 anos baixaram de 985 para 697, os membros com mais de 50 anos subiram de 2.093 para 2.339. O que significa que o partido não tem poder de atracção sobre os jovens e tende a reduzir-se ao núcleo herdado do tempo do fascismo e do 25 de Abril, núcleo predominantemente inerte.
Mais significativo ainda é o facto de a organização enfraquecer na classe operária, ao mesmo tempo que cresce entre os empregados e quadros: desde a Assembleia anterior, o PCP perdeu em Almada 700 operários industriais, enquanto os empregados, quadros e intelectuais subiram de 1.477 para 1.570, representando actualmente já um quarto da organização. São citadas apenas 18 células de empresa. Constata-se que a grande maioria dos núcleos de empresa “não funciona”. Regista-se a inexistência de células em muitas empresas “apesar de haver membros para as formar”. Em dois anos, o partido perdeu mais de 100 delegados sindicais e dezenas de dirigentes sindicais. A União dos Sindicatos local (USCA) existe só no papel. Os boletins de empresa “perderam dinâmica ou deixaram de se fazer”. Têm diminuído as vendas de imprensa nas bancas e algumas grandes empresas deixaram de fazer bancas.
Explicar esta decadência da organização operária apenas pelos despedimentos na Lisnave e pelo encerramento da Parry & Son, da Comp. Portuguesa de Pesca e da Rankin (cortiça), como faz o relatório, é tentar iludir as causas políticas de fundo.
Que efeitos teve na classe operária de Almada o desgraçado processo de “viabilização” da Lisnave, imposto aos militantes a golpes de campanhas “anti-esquerdistas”? Como podem os operários não se desmoralizar ao ver o contraste entre a propaganda balofa das “conquistas irreversíveis” e as cedências negociadas de cada vez que há um enfrentamento? Há ou não uma desmobilização geral, provocada pela burocratização arranjista da máquina sindical? Tem vindo ou não a política do partido a roubar à classe operária a confiança nas próprias forças?
Sobre tudo isto, é escusado procurar explicações no relatório. O partido “previu e alertou” para o que iria suceder, e com isto deu o seu dever por cumprido. Com isto, e com as lutas simbólicas para “sensibilizar os órgãos de soberania” e com os projectos risíveis de “defesa da economia nacional”.
Assim, na indústria naval do concelho, onde nos últimos anos foram lançados à rua mais de 6.000 operários, o PCP gaba-se de ter apresentado em devido tempo “um plano de renovação da frota” e de se ter batido pelo “desbloqueamento dos grandes projectos nacionais”. Se os governos, possuídos de “fúria destruidora”, insistiram em“desmantelar a capacidade produtiva instalada”, que mais poderia o PCP fazer?
A negociação de novas capitulações vai continuar. Na ENI, que está em viabilização depois de ter suprimido mais de 300 postos de trabalho, o relatório avisa que “os trabalhadores vão ter que negociar direitos e regalias”. Por toda a parte, o quadro é o mesmo: recuar sem luta; lutar a sério seria “aventureirismo”.
Por estranho que pareça à primeira vista, a constante perda de influência operária não é o que mais preocupa os dirigentes “comunistas” de Almada. O relatório olha para mais longe. A ausência de directivas para recuperar base operária contrasta com os avisos de que “se mantém preocupante a baixa percentagem de técnicos e intelectuais” e de que “há desatenção e incompreensão pelos problemas dos quadros técnicos e intelectuais e outras camadas médias”.
Na realidade, nada há de estranho nisto. Os dirigentes do PCP em Almada seguem a linha geral do partido nesta questão, que é apostar no recrutamento de técnicos e administrativos como chave para ganhar influência nas empresas, apostar na conquista de intelectuais como meio para alargar espaço na opinião pública.
É a opção lógica de um partido que ambiciona fazer ouvir os seus pareceres acerca da reforma da sociedade, influenciar governos, criar uma “convergência democrática” a qualquer preço. Evidentemente, para o PCP a classe operária continua a ser importante, mas apenas como base de apoio e de pressão; os quadros é que são a verdadeira alavanca para aplicar o seu programa. Operários já há muitos; o que falta são quadros.
Isto, contudo, não pode ser dito assim, cruamente, para não espantar os operários. Por isso tem que se insistir no mito de uma identidade de interesses entre os operários e os quadros:
“Sendo uma camada social numerosa e em crescente proletarização, cujos interesses são cada vez mais coincidentes com os dos demais trabalhadores – diz o relatório – os quadros técnicos e intelectuais estão cada vez mais com os restantes trabalhadores na luta em defesa dos seus direitos e interesses”.
E como os operários resistem por instinto a passar atestado de proletários aos engenheiros, a sua desconfiança de classe é censurada como reaccionária:
“A direita tem tentado aproveitar todas as tendências de obreirismo, igualitarismo e sectarismo que aqui e ali ainda proliferam e que temos de corrigir”.
Esta lógica da “convergência democrática” leva mesmo o relatório a reclamar maior apoio aos pequenos e médios comerciantes e industriais e a congratular-se com a criação da Confederação das Pequenas e Médias Empresas. Aqui desliza-se já para um compromisso directo com o patronato, contra os interesses dos trabalhadores, que devem deixar de ser “sectários”…
Sobre as questões de política geral do partido, o relatório limita-se naturalmente a papaguear as posições do Comité Central, insistindo no hábito mórbido de transformar em êxitos as sucessivas derrotas acumuladas desde há dez anos.
Ficamos a saber que “se tem tornado cada vez mais difícil aos governos enganar aqueles que sentem na carne os efeitos dolorosos de uma política de desastre nacional”; “tem sido crescente a participação dos trabalhadores e da população na luta por um novo governo e uma nova política”; e que “a luta pela convergência e unidade democrática” deu provas positivas nos diversos processos eleitorais. Porquê, apesar disso, tudo corre contra as previsões do PCP? Mistério que não é explicado aos militantes.
Nas eleições de 19 de Julho, a táctica do partido teria sido ajustada; a CDU “fez uma campanha alegre e viva em que o esclarecimento foi a nota dominante”. Mas, sem que ninguém perceba porquê, constata-se a seguir que “houve um aumento da abstenção e grande parte desta é do eleitorado CDU”, o que colocou o PSD pela primeira vez como o partido mais votado no concelho.
Nada desarma porém o optimismo suicida dos funcionários do PCP de Almada. O absurdo é atingido quando se afirma com toda a segurança que
“a consolidação das nacionalizações torna praticamente inviável o rumo capitalista para a economia portuguesa“ (!).
Os operários da base do partido não devem pois desanimar porque as conquistas continuam “irreversíveis”…
A agonia da organização que continua ainda hoje a ser a única que agrupa grandes massas operárias em Portugal é evidentemente motivo de satisfação para todos os sectores da burguesia. Para os comunistas é mais um motivo para afirmar a urgência de fazer ocupar o lugar abandonado pelo PCP por um verdadeiro partido comunista operário.
Inclusão | 23/05/2018 |