O 18 de Janeiro existiu?

Francisco Martins Rodrigues

26 de Janeiro de 1983


Primeira Edição: Em Marcha, 26 de Janeiro de 1983

Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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Para minha surpresa, li no “Diário de Noticias” um artigo de Pacheco Pereira sobre "As lições’ do 18 de Janeiro”, no qual os leitores são informados sobre o que eu poderia vir a escrever sobre o tema neste “Tiro ao Alvo”. Por acaso, não escrevi nem pensava fazê-lo. Mas, já agora, não tenho outro remédio. E sou forçado a confirmar, ponto por ponto, tudo aquilo que Pacheco Pereira brilhantemente previu.

Acho de facto sensacional que, no ano de 1934, um punhado de operários da Marinha Grande (já agora, seiscentos, segundo o depoimento de um sobrevivente, aqui publicado no último “em marcha”) se tenha convencido de que poderia fazer a revolução e tenha levado a ideia à prática.

Acho um significado histórico no facto de, nesse dia, numa vila perdida, milícias operárias terem aprisionado a GNR, terem proclamado um soviete como seu governo e terem içado, entre vivas, uma bandeira vermelha na Câmara Municipal.

Que tudo isso não tenha passado duma breve ilusão parece-me o menos importante. O que realmente conta, e tem uma importância colossal, é que o projecto da revolução armada e do poder soviético se tenha materializado em acto, algures em Portugal. Actos destes, uma vez realizados. não podem mais ser apagados e vão abrindo caminho na consciência da classe operária. A sua marcha pode parecer incrivelmente lenta. Mas é irreversível. E acaba por amadurecer na revolução. A sério.

O 18 de Janeiro, explica Pacheco Pereira com condescendência, para além de ser um mito, com multo de invenção heróica a engrandecer o facto real, não teve nada a ver com a acção consciente, como a entende o marxismo- leninismo. Não passou de uma explosão de radicalismo pequeno-burguês. Ou seja: o 18 de Janeiro, em primeiro lugar não existiu e, em segundo lugar, não foi revolucionário. Excelente!

Curiosamente, as ideias de Pacheco Pereira sobre a "acção consciente marxista-leninista" como oposta à iniciativa revolucionária das massas são coincidentes com as de Álvaro Cunhal. Uma coisa é o marxismo-leninismo, teoria séria que trata de sindicatos, eleições, governos. Outra coisa completamente diferente são as explosões da luta operária e popular, as revoltas, os tumultos. Isso ai é “radicalismo pequeno-burguês”.

Por isso, Cunhal vai apagando discretamente o 18 de Janeiro, de ano para ano, reduzindo-o às proporções de um movimento de defesa sindical. E Pacheco Pereira vem atrás, a “demonstrar” que ele não passa de um mito.

O revisionismo bem-comportado de Cunhal e o social-democratismo cínico de Pacheco Pereira aliados na tarefa de enterrar o 18 de Janeiro — será por acaso? Deixo o tema à meditação do leitor.


Inclusão 22/08/2019