A opção do Partido Comunista do Chile nas últimas eleições presidenciais

Miguel Urbano Rodrigues

26 de agosto de 2005


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


O Partido Comunista do Chile não está representado no Parlamento. Uma lei eleitoral antidemocrática, concebida para favorecer os grandes partidos da burguesia, explica a ausência de comunistas nas duas casas do Congresso. Mesmo em circunscrições eleitorais onde o PCCh obtém grandes votações, o tecto nacional imposto funciona como travão, impedindo a entrada de comunistas.

Poderia concluir-se apressadamente que a influência do Partido junto dos trabalhadores e no conjunto da sociedade tem diminuído em consequência da discriminação que o atinge. Mas isso não aconteceu. A presença do Partido de Recabarren nas organizações sindicais é hoje mais forte do que no início da década de 90 e o seu prestígio na classe operaria tem crescido de ano para ano.

Perseguido com selvajaria durante a ditadura, o PC do Chile desenvolveu na clandestinidade as virtudes de um partido revolucionário cujos militantes na luta contra o fascismo, pela reconquista das liberdades, foram exemplares pela coerência, tenacidade e heroísmo. O preço pago foi altíssimo. Os nomes de milhares de comunistas figuram nas listas de patriotas desaparecidos e assassinados na época de Pinochet.

Sem uma intransigente fidelidade aos princípios, o Partido não teria conseguido sobreviver a esse período trágico e emergir dele, duramente golpeado, com a imagem de uma organização revolucionária que – contrariamente a outras da Unidade Popular – não abdicou do seu projecto (sem data) socialista e do seu propósito de combate frontal ao capitalismo e ao imperialismo.

Enquanto Partidos como o Socialista, o da Democracia e o Radical, antes mesmo do fim da ditadura, formalizaram com a Democracia Cristã a aliança da Concertación que levaria ao Palácio de la Moneda Presidentes que deram início ao chamado pinochetismo sem Pinochet, o Partido Comunista denunciou e combateu sempre frontalmente as políticas neoliberais e de subordinação ao Consenso de Washington, impostas pelos EUA.

Essa coerência comunista foi submetida a uma prova muito difícil na campanha eleitoral de 1999.

Dois candidatos fortes surgiram na disputa da Presidência para suceder ao democrata cristão Eduardo Frei, filho do ex-presidente do mesmo nome.

Os partidos da Direita lançaram Lavin, o alcaide de Las Condes, o município mais rico do pais. Para o enfrentar, a Concertación apresentou Ricardo Lagos, um político simultaneamente membro do Partido Socialista e do Partido por La Democracia, do qual foi alias fundador.

Lavin, empresário de êxito, riquíssimo, recebeu o apoio de Washington, que identificou nele uma garantia de continuidade do chamado "modelo chileno", da política económica do neoliberalismo ortodoxo, iniciada por Pinochet e mantida pelos dois presidentes democratas cristãos da Concertacion, Aylwin e Frei. Lavin surgia como o porta-voz da direita quimicamente pura.

Mas a Administração Clinton não hostilizou a candidatura de Lagos. Concluiu que o candidato da Concertación, se vencedor, iria, com uma linguagem diferente, actuar também como um executor dócil da estratégia do Consenso de Washington.

Perante o quadro eleitoral, o Partido Comunista apresentou a candidatura da sua presidente, Gladys Marin.

A campanha foi utilizada pelo PCCh para desmontar a caricatura de democracia existente no país e acompanhar a exposição e defesa do seu programa de uma reflexão profunda sobre a realidade social chilena.

No primeiro turno, Lagos venceu, mas a diferença que o separou de Lavin foi apenas de umas dezenas de milhares de votos.

Ficou transparente que a votação dos comunistas seria decisiva no segundo turno.

Para a direcção do PCCh a opção a tomar, na situação criada, era muito difícil.

O debate travado no Partido foi amplo e de uma profundidade ideológica incomum.

A direcção, interpretando o sentir das bases e identificada com ele, decidiu não aprovar uma indicação de voto.

Lavin representava a direita sem máscara. Mas o Partido concluiu que qualquer tipo de apoio a Ricardo Lagos, mesmo acompanhado de reservas, implicaria um afastamento dos princípios

E porquê?

Lagos fora na juventude, como docente na Universidade, um quadro activo da Unidade Popular. Dizia então ser allendista e marxista. Foi um dos muitos intelectuais ligados à UP que conheceu o exílio. Mas sofreu com os anos uma transformação camaleónica. No período que precedeu a transição, no final dos anos 80, destacou-se como um dos principais arquitectos da Concertación, essa estranha coligação de partidos que optou por uma política que negava as ideias que defendera na juventude.

O PCch não desconhecia as diferenças entre Lavin e Lagos. Sabia que este, se chegasse à Presidência, teria um discurso formalmente democrático e que as suas relações com as Forças Armadas reflectiriam a condenação da ditadura. Mas os comunistas acreditavam que Lagos não romperia com "o modelo" económico neo-pinochetiano, e talvez o aprofundasse. A indicação de voto nele implicaria, portanto, uma ruptura com princípios e valores comunistas.

Não se tratava de escolher entre o mal menor. Num momento em que Hugo Chavez, na Venezuela, interpretando as aspirações do seu povo, iniciava a caminhada que desembocaria na revolução bolivariana, pedir aos comunistas que votassem em Lagos seria, de alguma forma, leva-los a crer que o candidato da Concertación poderia corrigir, minimamente que fosse, na política interna e na internacional, o rumo seguido pelos governos de Aylwin e Frei. E o PCch estava consciente de que isso não aconteceria.

Ricardo Lagos foi eleito, como, aliás, se esperava. Mas a diferença que o separou de Lavin não foi muito superior à do primeiro turno. Cada comunista votou de acordo com a sua consciência.

O desenvolvimento da história confirmou a correcção da análise a que procedera o PCCh.

Ricardo Lagos actuou ao longo do seu mandato – o regime é Presidencialista – como um adepto convicto do neoliberalismo. E reforçou a aliança com Washington. Perante o fracasso da ALCA, assinou com os EUA um Tratado de Livre Comercio bilateral que faz do Chile uma colónia de novo tipo. Hostilizou Cuba e a Venezuela bolivariana. O Chile é na America Latina um dos países onde a distribuição da riqueza produzida contribui para aumentar a desigualdade social. O abismo entre os de cima e os de baixo aprofundou-se nos últimos anos.

Não esquecerei a atmosfera em Santiago em Agosto de 2003 quando o povo chileno recordou o golpe do 11 de setembro de 73.

O governo de Lagos prestou uma homenagem simbólica à memória de Allende. Mas não somente ignorou todas as iniciativas das forças progressistas no âmbito do evento "Allende vive 30 anos depois", como, em manobra intimidatória, mobilizou quase 30 mil carabineros que durante dias imprimiram nas ruas à capital chilena a fisionomia de uma cidade ocupada. O objectivo, fracassou.

Eu vivi esses dias em Santiago quando as forças mal chamadas "da ordem" fizeram o possível para dificultar o acesso do povo à praça onde, frente a La Moneda, milhares de pessoas se concentraram para o grande acto de massas que encerrou aquelas jornadas.

Deixei então o Chile com a convicção reforçada de que o PCCh agira correctamente ao recusar o apoio a Ricardo Lagos na segunda volta das eleições.

Guardo na memória palavras ouvidas de Gladys Marin, a dirigente recentemente falecida, uma revolucionária exemplar que muito admirei como comunista e amiga:

"Tudo o que Lagos fez até agora na presidência e aquilo que não fez confirmam que o Partido fez a opção que se impunha. O apoio no segundo turno teria implicado uma concessão ao sistema, uma ruptura com os nossos princípios".


Inclusão: 01/08/2021