Esquerdas e esquerdismo, um livro de Octavio Rodriguez de Araujo
[Prefácio](1)

Miguel Urbano Rodrigues

Novembro de 2004


Fonte: http://resistir.info

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Não é uma história das esquerdas. Nem um ensaio filosófico.

O autor oferece-nos uma reflexão sobre o caminhar das esquerdas desde o período que precedeu a Revolução francesa de 1789, com especial atenção para o confuso panorama que elas apresentam hoje, após a implosão da URSS.

Como se fora num filme, ilumina as novas esquerdas e os esquerdismos que proliferam como cogumelos enquanto tradicionais partidos operários entram em decadência ou desaparecem. Sabe-se o que essas esquerdas rejeitam, mas não é claro o seu discurso. Não se percebe bem o que pretendem e para onde vão.

Octavio Rodriguez Araújo é professor emérito de Ciência Politica na Universidade Nacional Autónoma do México – um gigante onde se movem 380 mil estudantes e professores – uma das mais fascinantes universidades do mundo. Escreveu um livro didáctico do qual numa introdução não é possível transmitir com nitidez nem o conteúdo nem as opções do autor. A dificuldade nasce da complexidade da obra e da amplitude da sua temática.

Os jovens sobretudo podem acompanhar lutas quase esquecidas da história contemporânea e, através de brilhantes sínteses de grandes acontecimentos, serem encaminhados para tomadas de posição não esperadas.

Cabe recordar que o esquerdismo, na perspectiva em que Lenine o viu, é uma forma de extremismo, palavra que Engels utilizou ao definir os adeptos de Blanqui. Mas é também, como nos recorda Marx na sua critica a Bakunine, uma faceta do sectarismo dos anarquistas da I Internacional.

ORA ilumina com muita clareza temas e momentos históricos de que muito se fala cada vez com menor conhecimento deles.

Das polémicas de Marx com Bakunine, por exemplo, e das tempestades ideológicas internas que envolveram a Comuna de Paris.

"Se em Setembro de 1870 – cito – estivesse à frente do proletariado francês o partido centralizado da acção revolucionária, toda a história da França, e com ela toda a história da humanidade, teria seguido outro rumo".

Para milhares de jovens terá hoje força de revelação "descobrir" que após a Comuna a ditadura do proletariado já não era para Marx a definida no Manifesto Comunista, como centralização do poder num aparelho, mas alavanca de que se serviriam os trabalhadores "para erradicar os cimentos económicos em que assentava a existência de classes e portanto a dominação de classe".

Nestes dias em que István Mészaros e Samir Amin relançam o desafio contido na alternativa "Socialismo ou Barbárie", é muito útil o esforço de ORA para demonstrar a actualidade dos grandes debates que na Europa do inicio do século XX foram travados sobre a antinomia reforma-revolução quando Edward Bernstein, subalternizando o objectivo final dos partidos revolucionários, proclamava que "o movimento é tudo", erigindo as lutas reivindicativas dos trabalhadores em objectivo estratégico.

Num contexto histórico muito diferente, o discurso dos chamados "renovadores" do marxismo, de El Salvador a Portugal, da França ao México, tem uma clara inspiração bernsteiniana.

A reflexão de Octavio sobre o revisionismo na Social Democracia Alemã – então o principal partido marxista na Europa – é muito esclarecedora sobretudo ao analisar as lutas no âmbito da II Internacional.

Sem ser uma obra académica, o livro é um ensaio em que de inicio a fim transparece o espírito de rigor do cientista político. Pela sua criatividade e capacidade de síntese o autor ajuda o leitor a "ver" em andamento períodos de historia quase desconhecidos das actuais gerações, vitimas da manipulação e desinformação de um sistema mediático perverso.

A história não se repete. Mas hoje como no início do século é difícil para milhões de pessoas diferenciar "o reformista do revolucionário embora seja bem transparente o perigo – como salienta ORA – de que certos apelos ou acções reformistas, em vez de empurrarem os trabalhadores para posições revolucionárias, os conduzam ao conformismo ou a aceitar como um fim em si mesmo o conjunto de reformas empreendidas".

As páginas dedicadas à III Internacional colocam questões muito polémicas, em que aflora por vezes um pendor trotsquizante. Ao tratar da problemática Estado-Partido no desenvolvimento da Revolução Russa, ORA assume posições das quais com frequência me distancio, não obstante reconhecer a seriedade do autor e estar consciente de que grandes erros (muitos quase inevitáveis) foram cometidos na transição do capitalismo para um socialismo que desde o início se afastou do projecto leninista. Mas, precisamente nesses capítulos, o autor desmonta o oportunismo das correntes social democratas que de capitulação em capitulação, desfraldando as bandeiras do "socialismo democrático" e com um duplo discurso, acabaram renunciando ao marxismo e, aliadas às direitas, cumprem hoje a função de defensoras do neoliberalismo. Quando chegam ao governo administram o capitalismo.

A crise dos partidos comunistas europeus merece muita atenção, a partir da contaminação pelo eurocomunismo. O Partido Italiano desapareceu como tal ainda antes da implosão da URSS, o Francês entrou em decadência acelerada ao aliar-se ao Partido Socialista no governo da gauche pluriel (durante a administração Jospin houve mais privatizações do que, somadas, as concretizadas nos governos de Balladur e Juppé), o PC de Espanha diluiu-se progressivamente na Esquerda Unida. O Partido Comunista Português, o Grego e o Akel de Chipre foram excepções num quadro em que a grande maioria dos partidos comunistas da Europa, em vez de se mobilizarem contra as políticas neoliberais impostas pela direita e pela social democracia, se tornaram cúmplices indirectos ou directos das mesmas. Na sua reflexão sobre a vaga reformista que descaracterizou (ou destruiu) partidos comunistas europeus, com repercussões profundas na América Latina, ORA identifica-se com aqueles que se opuseram à teorização revisionista:

"Concluiu-se a meu ver com razão – escreve – que a partir da interpretação do estado capitalista deveria resultar a estratégia "correcta para o socialismo, pois o reformismo nas suas diferentes versões eludia esse ponto ou tendia a levar a crer que – como Lassalle quis na sua época – que para se atingir o socialismo era suficiente apoderar-se da máquina ou do aparelho de estado e não, como Marx havia afirmado, que era necessário destruir o Estado capitalista através da instauração da ditadura do proletariado, como fase de transição entre o capitalismo e o socialismo".

No capitulo em que analisa e comenta a guinada para a direita de muitos partidos comunistas e a aceitação de facto do neoliberalismo pela social-democracia, Octavio tenta iluminar as fronteiras actuais da esquerda. Tarefa difícil nestes tempos em que numerosos partidos socialistas – entre os quais o português – aprovam as agressões imperiais do monstruoso sistema de poder dos EUA e patrocinam a institucionalização do capitalismo na União Europeia através de uma Constituição.

A que aspira hoje aquilo que aparece como esquerda? – pergunta. A resposta não é fácil quando o próprio Exército Zapatista de Libertação Nacional, do subcomandante Marcos "não afirmou em momento algum, explicitamente, que luta pelo socialismo".

A perplexidade de ORA é compartilhada por milhões de pessoas. Pessoalmente evito cada vez mais utilizar a palavra esquerda ao referir-me a partidos ou movimentos políticos. Quando a televisão em Portugal promove mesas redondas para confrontar representantes da esquerda e da direita e exclui delas os comunistas, somos colocados perante uma perversão ostensiva e consciente do conceito de esquerda. Agrada à burguesia mascarar de esquerda personalidades comprometidas com o sistema.

O último capitulo do importante ensaio de Octavio Rodriguez de Araújo é dedicado àquilo a que chama "as novas esquerdas".

O livro foi escrito antes de Toni Negri e John Holloway terem, em obras traduzidas em muitos idiomas, contribuído para dar alento a grupos esquerdistas que contribuíram para aumentar a confusão em movimentos que proclamam a sua disponibilidade para o combate à globalização neoliberal.

Mas Octavio Rodriguez de Araujo (que posteriormente manteve uma polémica com John Holloway) terá sido na América Latina um dos primeiros intelectuais a sublinhar que "no eclectismo ideológico e político das novas esquerdas se misturaram ingredientes do anarquismo com marxismo e derivados, com algum predomínio do anarquismo, especialmente nos movimentos maioritariamente juvenis".

As consequências do discurso anarquizante dos inspiradores desses grupos são desmobilizadoras. Em vez de funcionar como estimulo á acção, a teorização desses reformistas de novo tipo conduz ao imobilismo. Na pretensa "adequação ao 'presente' omitem a referencia ao capitalismo, ao Estado, às classes sociais, ao imperialismo e a categorias semelhantes".

Na sua critica às "novas esquerdas", Octavio Rodriguez Araujo antecipou e definiu algumas das tendências que pesaram no rumo de muitos movimentos sociais anti-globalizaçao que, afirmando combater o capitalismo, ambicionam reformá-lo, tendências em que se manifesta um anticomunismo que se expressa, por exemplo, numa atitude hostil perante os partidos revolucionários como instrumento decisivo nas lutas em defesa da humanidade.

Critico severo dos partidos tradicionais, Octavio Rodriguez Araújo, ao sublinhar o papel de fundamental importância cumprido pelos movimentos sociais após Seattle, está, entretanto, consciente das limitações dos protestos e movimentos espontaneístas. Compartilha as dúvidas de Samir Amin quanto ao rumo do Fórum Social Mundial, ou mais exactamente sobre a sua possibilidade de se transformar numa força real de mudança.

Prudente, não entra pela estrada das previsões com sabor de utopia.

Não perdeu a esperança de um novo internacionalismo como o imaginado por Marx na apologia da comunidade de acção que tornou possível a Associação internacional dos Trabalhadores. Mas, sabe que estamos muito longe, longíssimo, de um programa teórico comum do movimento operário mundial.

Acredito que Esquerdas e Esquerdismos será, como obra polémica, didáctica, inteligente e bem documentada, um contributo valioso para o aprofundamento da reflexão da juventude portuguesa sobre uma crise de civilização que ameaça a própria continuidade da vida na Terra, pátria do homem.

Serpa, Novembro/2004


Notas de rodapé:

(1) Octávio Rodriguez Araújo, Izquierdas e Izquierdismos, Ed. Siglo XXI, México, 2002. Edição portuguesa: Campo das Letras, Porto, Fevereiro/2007, 232 pgs, ISBN 989-625-039-1. (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021