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Fonte: http://resistir.info
Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.
O 15 de fevereiro de 2003 ficará como data de viragem na grande aventura da humanidade.
Em centenas de cidades da Europa, da Ásia, da América, da África e da Oceania milhões de pessoas saíram nesse dia às ruas para se manifestarem contra a guerra, respondendo ao apelo do Fórum Social Mundial. Nunca antes acontecera algo similar. Foi a primeira manifestação de protesto global da história.
Era tempo. Um projecto imperial de dominação planetária e perpétua ameaça a sobrevivência da humanidade.
Mais elaborado que o do III Reich nazi, não é menos monstruoso. Não sendo a ambição menor, os meios são outros e os povos só agora muito lentamente começaram a tomar consciência do perigo letal que esse projecto representa para a continuidade da própria vida na Terra.
Contrariamente ao que ocorreu na Alemanha dos anos 30, este sonho imperial nasceu num pais cujo povo não se identifica com ele.
O IV Reich, em processo de formação, foi concebido por um sistema de poder gerado nos EUA. Daí um primeiro absurdo. Sendo formalmente democráticas as instituições daquele pais, e apresentadas como modelo civilizacional em amplas áreas do mundo, os governantes estabelecem a confusão quando, invocando-as, promovem a guerra e a barbárie, afirmando agir em defesa da civilização e da liberdade. A escalada do novo Reich a expressão é pesada, mas facilita a tomada de consciência assumiu no ultimo ano uma feição assustadora. Se não for detida desembocará numa tragédia. Seria um erro, entretanto, extrair do acréscimo da sua agressividade a conclusão de que estamos perante um projecto muito recente. É antigo, tem quase sessenta anos.(1)
Noam Chomsky escreveu um artigo importante sobre o tema em 1981, na Monthly Review, mas o alerta foi rapidamente esquecido. O sistema de poder exerce um controlo praticamente hegemónico sobre os meios de comunicação.
Muitos sabem hoje que o controle absoluto do petróleo do Médio Oriente e da Ásia Central é a meta concreta imediata da anunciada guerra contra o Iraque. Bush e Blair não enganam mais os povos quando falam da defesa da civilização para justificar a destruição de um pequeno pais, arruinado pela guerra do Golfo.
A apologia da violência perdeu credibilidade, tornou-se inaceitável para a esmagadora maioria A propaganda não consegue repetir com êxito a grande farsa montada após o 11 de Setembro quando a cruzada bushiana contra Bin Laden e os Taliban funcionou como cobertura ética para a agressão criminosa ao povo do Afeganistão e para a implantação dos EUA na Ásia Central, do Cáspio ao Pamir, nas fronteiras ocidentais da China.
Hoje, aqueles que desfilaram em cidades situadas em todos os Continentes sabem que o Iraque não acumula armas bacteriológicas e químicas de extermínio maciço, e sabem também que Bush se opõe ao desarmamento de Sharon e de outros fascistas, aliados seus como o colombiano Uribe os quais, esses sim, contam com armas, fornecidas pelos EUA. Mas somente uma percentagem mínima dos milhões de cidadãos que se manifestaram no dia 15 contra a guerra e se opõem à agressão contra o Iraque está informada sobre os objectivos e o funcionamento da engrenagem que faz do slogan «desarmar Sadam Hussein» eufemismo semântico simples instrumento de um projecto imperial de contornos fascistas.
Esse ambicioso projecto é inseparável de uma realidade não evidente para as grandes maiorias: a crise estrutural do capitalismo.
O capitalismo não atravessa somente uma crise conjuntural, como a de 29-30, que levou à sua primeira grande reforma, a Keynesiana. Entrou num processo de decadência irreversível. Num lúcido ensaio, Samir Amin utiliza a expressão capitalismo senil para definir essa fase.
O sistema do capital funciona através de uma rede labiríntica de contradições que, no contexto da globalização neoliberal, não pode já superar. Na aparência atingiu o auge do seu poderio. Mas precisamente quando os seus epígonos proclamavam o fim da historia e a eternização do sistema, não consegue mais manter o equilíbrio do binómio antinomico consumo-destruição, imprescindível à reprodução do capital.
O desemprego crónico tornou-se endémico mesmo nos países mais avançados e o fosso existente entre eles e os Estados do Terceiro Mundo aprofunda-se de ano para ano, reflectindo a impossibilidade da sua modernização no âmbito do sistema.
Perante esta crise estrutural, a guerra apresenta-se ao Estado imperial que hegemoniza o sistema como uma condição de sobrevivência. Por um lado garante-lhe o controle de recursos naturais de que carece, pois os seus aproximam-se do esgotamento. Paralelamente, o Estado do capital, cada vez mais parasita, faz da violência um instrumento da continuidade do sistema. O complexo industrial-militar transforma a guerra num negocio fabuloso. O circuito destruição-recontrução (em regime de protectorado) é tão vital para o capitalismo senil como o sistema circulatório para o homem.
A teoria da guerra preventiva, na sequência da cruzada do Golfo e das agressões aos povos da Bósnia e da Jugoslávia, veio iluminar melhor uma estratégia que, gradualmente, está introduzindo uma mentalidade fascista no corpo de oficiais das Forças Armadas dos EUA.
A agressão que atingiu o povo do Afeganistão foi a primeira de uma cadeia de guerra preventivas prevista pelo sistema de poder do Estado do capital.
Na lista dos países a «desarmar» o segundo será provavelmente o Irão. No momento adequado, Washington, com os olhos postos nas suas fabulosas reservas petrolíferas, acusará a pátria de Omar Khayan de produzir armas de extermínio maciço.
Actualmente os EUA dispõem de centenas de instalações militares em 70 países. Na realidade são territórios ocupados.
Para atemorizar os sectores mais passivos e alienados da sociedade estadunidense, a máquina de propaganda oficial exibe na televisão imagens de nuvens mortíferas pairando sobre as cidades do pais.
Enviadas por Sadam, o novo Satã, estariam recheadas de armas bacteriológicas produzidas para aniquilar o povo norte-americano.
A única resposta patriótica a essa ameaça apocalíptica seria «desarmar» o Iraque. Ora no Pentágono desarmar significa, na prática, bombardear, arrasar.
Em Washington admite-se que somente nas primeiras 48 horas explodiriam em Bagdade 800 mísseis de Cruzeiro. Segundo as Nações Unidas uns dez milhões de iraquianos, quase metade da população, seriam mortos, feridos ou obrigados a abandonar as suas residências.
O«desarmamento» do Iraque, a concretizar-se, seria, na realidade um dos mais gigantescos genocídios da historia. Com a agravante de tal projecto haver sido elaborado minuciosamente por iniciativa de um Estado que se apresenta como porta-voz da civilização e defensor dos direitos do homem.
Mas que não haja ilusões. O Iraque, repito, surge no plano como etapa na escalada das guerras preventivas. Sadam é um incidente de percurso na rota norte-americana.
Desintegrada a URSS, o grande inimigo, na perspectiva do sistema imperial, é a China. Ela emerge como o único interlocutor temido pelo sistema de poder o maior obstáculo ao seu projecto de dominação planetária e perpétua.
O medo nasce da dimensão demográfica 1300 milhões de habitantes e do ritmo impressionante do crescimento da sua economia. A manter-se a actual taxa, o PIB chinês será em meados do século muito superior ao dos EUA.
O novo Tratado de Segurança Mútua com a Japão violador da Constituição nipónica quase ignorado na Europa e na América Latina, foi ideado e imposto na previsão de uma futura confrontação com a China no âmbito da estratégia das guerras preventivas.
Hitler, nos primeiros anos do III Reich, invocava a necessidade de espaço vital para justificar a anexação e invasão de países vizinhos. Hoje os cérebros do IV Reich inventaram a formula das guerras preventivas em defesa da segurança e de interesses vitais dos EUA, supostamente ameaçados.
No seu inesquecível discurso de West Point, George W. Bush, dirigindo-se aos futuros oficiais da US Army abriu o jogo com um cinismo que surpreendeu o próprio establishment. Pouco inteligente, levou a hipocrisia ao ponto de afirmar que «Deus não é neutral». Estaria com ele, aprovando a guerra contra o Iraque.
O episódio suscitou um comentário irónico de Fidel, lembrando que o Papa condena a guerra. Afinal, perguntou, «quem pode falar em nome do Senhor, Bush ou o Santo Padre e os chefes de todas as igrejas?»
Não há exagero na afirmação de que o projecto de dominação planetária do Estado internacional do capital repito isso constantemente configura uma ameaça sem precedentes à humanidade.
A política que supostamente visa erradicar o terrorismo e eliminar os arsenais de armas de extermínio maciço pode, pela sua irracionalidade desencadear uma incontrolável vaga de terrorismo e contribuir para a disseminação e uso de armas bacteriológicas.
Aliás, até hoje o único país que usou a mais destruidora das armas a nuclear foi o de Bush, ao lançar as bombas atómicas (o Japão já estava então militarmente derrotado) sobre Hiroshima e Nagasaki.
Entretanto, a elite genocida, surda aos clamores da humanidade em defesa da Paz, desenvolve uma actividade frenética, empenhada em promover o holocausto do Iraque.
Um punhado de pequenos homens, investidos de muito poder, tentam nestes dias empurrar o mundo para o abismo.
Curiosamente, super falcões como Rumsfeld, Wolfowitz (o maquiavélico subsecretário da Defesa) e Perle (conselheiro do Likud sionista ) nunca vestiram o uniforme. Esses senhores, que fugiram ao serviço militar, entoam hoje cânticos guerreiros e têm pesadas responsabilidades no alastramento entre o corpo de oficiais da Força Aérea e do Exército de uma mentalidade fascinante.
Que argumento utilizará hoje Colin Powell em defesa dos crimes monstruosos cometidos no Afeganistão (o sangrento saque de Kandahar, o massacre de Mazar-i-Charif e o corte de línguas dos prisioneiros em Sebergham, por exemplo) sob a responsabilidade directa de oficiais superiores do Exército dos EUA?
Os feld marechais de Hitler que invocaram em Nurenberg o respeito sagrado pela disciplina na tentativa de justificarem os crimes da Whermacht e das SS foram condenados à morte. Hoje, militares dos EUA responsáveis por crimes similares são elogiados como heróis por Bush e os seus falcões. A contradição coloca-nos perante a dramaticidade dos desafios que a humanidade enfrenta.
O tempo escasseia. A resposta dos povos, no dia 15, ao discurso da guerra foi comovedora, belíssima. Excedeu as previsões mais optimistas. Ficou transparente que o mundo condena a guerra exigida pelo sistema de poder dos EUA.
Os povos da União Europeia repudiaram, nas mais gigantescas manifestações de sempre, o comprometimento da maioria dos seus governos com a estratégia de loucura que Washington tenta impor.
Mas uma ambígua decisão pelo Conselho da NATO, dois dias após as manifestações, abriu a porta ao envolvimento daquela organização na anunciada guerra contra o Iraque. O recuo da França, ao viabilizar a unanimidade mediante um artifício, veio dissipar ilusões românticas.
Foi a pressão corajosa dos povos da França e da Alemanha, eu diria mesmo o temor de que a capitulação perante a arrogância de Washington provocasse explosões sociais nos dois países-chave da UE, foi o medo dos seus povos, que determinou as tomadas de posição de Chirac e Schroeder contra a guerra. Porque ambos são, obviamente, políticos conservadores. Por si só, as contradições que opõem os interesses do capital francês e alemão à estratégia do sistema de poder dos EUA seriam insuficientes para os fazer assumir a posição que abriu fissuras na Comissão Europeia e na NATO e provocou a divisão do Conselho de Segurança.
Posta em movimento, a engrenagem da guerra não foi detida pelo protesto dos povos.
Bush e Colin Powell foram claros. Repetiram o discurso da mentira. Blair, consciente de que começam a faltar-lhe apoios no próprio partido, limitou-se a admitir um adiamento.
Provavelmente a data em que terá inicio o holocausto iraquiano já foi fixada. Mas o mundo poderá respirar durante duas semanas, até que o sueco Blix, chefe dos inspectores, apresente o seu próximo relatório, no dia 28, certamente tão ambíguo como os anteriores. Washington já informou que apresentará então uma nova resolução. Por outras palavras, o texto em que pedirá o aval do humilhado Conselho de Segurança para o genocídio de um povo. O NÃO à guerra do dia 15 confirmou que uma parcela importante da humanidade a mais combativa principia a tomar consciência de que o povo é o sujeito da historia.
Que vai acontecer nas próximas duas semanas?
Não há tempo para se promover um protesto ecuménico como o do último sábado. Mas o choque emocional por ele desencadeado continuará a produzir efeitos. Os governos, sobretudo os da Europa dos 15 (os da Polónia, Hungria, Bulgária, Republica Checa e Eslováquia rastejam perante Bush de mãos estendidas) não podem ignorar o significado de uma recusa firme dos povos da UE e da Rússia a serem envolvidos numa guerra imperial imposta pelo sistema de poder que governa os EUA. As manifestações assumiram aspectos de movimento insurreccional contra a guerra. Não é possível fechar os olhos a essa realidade e tapar os ouvidos.
Mas Washington e Londres insistem. Exigem a guerra. Bush e Blair, surdos ao clamor dos seus povos, comportam-se cada vez mais como porta vozes de democracias de fachada.
De Washington podem vir surpresas. Não é de excluir sequer a hipótese de que ocorram nos EUA atentados terroristas (organizados pela CIA ou organizações similares) com o objectivo de mobilizar apoios reticentes e enfraquecer a oposição à escalada belicista. Uma engrenagem tão perversa como a instalada ali nos centros de poder desconhece o que seja a ética na política.
Mas, aconteça o que acontecer, o capitalismo senil não vencerá a crise estrutural que lançou no desespero os sacerdotes do sistema. Está condenado. A chamada globalização neoliberal agravou os seus problemas em vez de os resolver.
Como sublinha Istvan Meszaros, a globalização capitalista «acciona forças que colocam em relevo não somente a incontrolabilidade do sistema por qualquer processo racional, mas também e simultaneamente, a sua própria incapacidade de cumprir as funções de controle que se definem como sua condição de existência e legitimidade».(2)
Na esperança de preservar o sistema, as forças mais retrogradas do sistema de poder dos EUA idearam e tentam executar um projecto de dominação e controle da Terra que, pela sua irracionalidade ameaça repito a própria sobrevivência da humanidade. Porque às hecatombes das guerras preventivas se somam a pilhagem e esbanjamento dos recursos naturais e a destruição galopante do ambiente.
O novo imperialismo planetário, prisioneiro de um circuito infernal produção-destruição, não pode subsistir sem as guerras preventivas que alimentam as caldeiras do capitalismo senil.
O malogro de experiências que, inspiradas no projecto de Marx, dele desviaram criando uma legenda negra em torno do partido revolucionário, e do Estado burocrático nascido da sua perversão não retiram actualidade à alternativa que Rosa Luxemburgo, num contexto histórico muito diferente, formulou pela primeira vez: Socialismo ou Barbárie.
Porque não há outra escolha possível.
Um socialismo de contornos desconhecidos o andamento da história os traçaria aparece como a única alternativa ao extermínio da humanidade como desfecho inelutável da dinâmica do capitalismo destrutivo.
O maravilhoso protesto humanista do 15 de Fevereiro reforçou a esperança. Afinal, é o homem o sujeito da Historia.
O IV Reich precisa ser detido. E isso está ao alcance dos povos.
Notas de rodapé:
(1) Ver Comunicação ao Fórum Social Mundial 2003 que apresentei em Porto Alegre a 25/Jan/2003. Foi no final da II Guerra Mundial, durante a Presidência de Roosevelt, que o War and Peace Studies Program elaborou o primeiro esboço do actual projecto de dominação planetária dos EUA (retornar ao texto)
(2) István Meszaros, «O século XXI: socialismo ou barbárie?», pg. 104, Editorial Boitempo, São Paulo, 2003. (retornar ao texto)