Após dois dias e duas noites de vigília, na pequena embarcação que alugara, uma lancha sem conforto algum, Taciana foi avisada de que já estava na baia de La Gaiba.
Apesar de enervada pelo cansaço profundo e pela trepidação da lancha, Taciana sentia a alegria da chegada. Sua alma se renovava.
A emoção sacudia-lhe o coração.
La Gaiba! O porto da esperança daquela alma torturada, daquele coração que palpitava há cinco anos sem fim a espera do seu grande amado. Vida de sua vida.
La Gaiba com suas águas mansas, de aspeto triste, era bem o porto do Desterro de uma brilhante jornada cheia de acidentes de mais de dois anos. Era a Santa Helena daquele Napoleão de que o Brasil tanto se orgulhava pelos feitos surpreendentes de tática e de coragem.
Taciana chegava ao fim da estafante jornada como uma imigrante de 3.ª classe, completamente desorientada, sem saber para onde ia. Desembarcou na floresta, acompanhada do guia que contratara para levá-la “ao acampamento do General Prestes”.
Muita lama pelos caminhos, águas estagnadas, mosquitos por todos os lados. Caminhava despreocupada com a lama dos caminhos, olhar fito para a frente, em busca do barracão indicado pelo redator do “O Jornal”.
— Meu Deus! Como me receberá ele?
Sentado no tronco de uma árvore tombada, ela divisou o primeiro soldado brasileiro. A fisionomia do pobre homem apavorava; dir-se-ia um cadáver ambulante.
Taciana aproximou-se lentamente e pediu informações do General Prestes.
O homem de aspeto faminto olhou espantado para aquele rosto sob o véu diáfano. Havia muitos meses que não divisava um vulto de mulher. Taciana despertava-lhe uma infinidade de lembranças e saudades.
A dispneia não o deixava falar. Levantando a custo o braço seco, apontou para uma choupana que se avistava a uns cem metros. Com esforço inaudito murmurou:
— Nosso grande General... Estamos morrendo... Todos...
Taciana saiu apressada e, pelo caminho foi encontrando deitados, outros soldados moribundos.
Quando chegou à porta da choupana viu um homem de estatura pequena, barbado, como os outros, também de aspeto fúnebre. Um grande chapéu cobria-lhe o rosto. Olhava aquele vulto de mulher, vestida de negro que se aproximava como se fora a Morte. Era, sem dúvida, uma visão provocada pela febre.
Uma mulher ali... Não era possível. Era uma alucinação.
Taciana aproximou-se vagarosamente. Naquela choupana tosca vivia o homem mais admirado da época. Era ali que estava o grande “condottiere” da revolução. Ali estava sob aquele teto miserável o homem que era toda a sua vida; seu pensamento; seu amor.
— Boa tarde, senhor. Por obséquio me informe se o General...
Não concluiu a frase e instintivamente deu um passo atrás.
Seria possível? Mas aqueles olhos... Levantou o véu para ver melhor.
Contrastando com a palidez cadavérica da face, os olhos do homem brilhavam com o ardor da vida.
— Luiz!
Caiu de joelhos aos pés de Prestes. Sua alma também estava de joelhos. Agarrou as mãos do seu amado e beijou-as, inundando-as de lágrimas.
Luiz Carlos Prestes com os olhos fitos no céu, sentia o sangue fugir-lhe das veias Aquela mulher ali! Mas seria possível? A última desgraça que lhe poderia acontecer.
A moça levantou-se, soluçando, e fez menção de abraçá-lo. Desta vez foi ele quem deu um passo atrás.
Fitando a mulher com um olhar atônito, Prestes cruzou os braços.
Sem nada compreender, Taciana olhava os olhos de domador que penetravam todo o seu ser.
— Não me reconheces, Luiz? Sou a sua Taciana. A mulher que vive somente para você e por você. Há cinco anos que o procuro. Meu pensamento é só seu, minha vida é você, meu amor...
— Senhora!...
— Pelo amor de Deus, Luiz, tenha piedade de mim. Você é a minha vida. Há cinco anos que espero este momento para dizer- lhe que sou sua, somente sua, que você é o meu Deus, a minha única esperança. Não posso viver mais um minuto sem você. Ouça-me Luiz. Tenho sofrido muito por sua causa. Só agora venho aqui porque não me foi possível fazê-lo antes.
De braços cruzados, impassivelmente. Prestes olhava aquela mulher que tanto amara.
Em vão ela suplicava um gesto, uma palavra de carinho, uma palavra de consolo.
— Ouça-me, meu amor. Venho aqui para ficar a seus pés até morrer. Sou sua escrava. Amo-o como nunca se amou na vida. Piedade, Luiz!
— Senhora! Foi uma loucura o que fez. Aqui é o lugar da miséria, da morte. Volte para a vida.
— Minha vida é você, Luiz. Você precisa de mim e eu preciso de você como preciso de ar, para viver. Venho tratar de sua saúde. Serei sua companheira na vida e na morte. Sofro desde o dia em que nos falamos pela última vez. Você não imagina quanto tenho sofrido, Luiz. Pelo amor de Deus deixe-me ficar aqui a seu lado. Trago roupa, remédio, frutas para você. Trago o amor puro... ofereço-lhe a vida...
— A senhora não poderá ficar aqui de maneira alguma.
— Mas Luiz...
— É humanamente impossível.
— Vamos então, para longe, para onde você quiser.
Pela primeira vez desabrochou uma sombra de sorriso amargo naquela boca que Taciana tanto beijara.
— Acompanhe-me, senhora.
E ambos entraram na choupana.
Apesar de avisada dos quadros dantescos que iriam ferir a sua vista e desnortear o seu espírito, Taciana não deixou de se apavorar com a dolorosa tragédia de La Gaiba.
Os soldados que ficaram até o último momento ao lado do grande General, estavam morrendo, abandonados, sem a menor assistência. Pelo chão, como cães leprosos, aqueles bravos sentiam a vida bruxulear como a lamparina dos altares.
Miséria indescritível. Dor perene. Uma visão do “Inferno” de Dante.
Taciana não sabia o que dizer, tinha a impressão da loucura. Olhava para Prestes como se olhasse para Cristo. Olhar melancólico pedindo misericórdia. Ele, o grande General, ali estava dando alívio, com a sua presença, àqueles bravos soldados moribundos.
A presença de Taciana naquele cenário de dor espantava os doentes, aumentava-lhes a dor moral, despertava-lhes a saudade da vida. Ela sentia-se mal naquele ambiente de dor, de miséria, por não poder fazer coisa alguma em beneficio dos soldados da invita coluna Prestes.
Como poderia ficar ali? Mas como poderia deixar ao abandono o homem que era a sua própria vida? Taciana conjeturava.
Prestes tinha necessidade de uma pessoa que cuidasse dele com o mesmo carinho de mãe amorosa.
Suas mãos, iluminadas pela luz de um amor puro e santo, tratariam dele com a sensibilidade das mãos de uma mãe ao limpar a ferida profunda do seu filhinho amado.
Sem se preocupar com as lágrimas da mulher que o adorava até ao sacrifício, Prestes a ouvia sem a interromper.
Soprava um vento forte. As nuvens negras se avolumavam galopando no espaço. Dir-se-ia que o céu se incendiava.
Ante a impassibilidade daquele homem-deus a mulher ia perdendo a coragem e toda a esperança.
As palavras de Taciana não o convenciam. Esforçava-se para que Prestes compreendesse seu estado de espírito, para que penetrasse seu pensamento.
— É-me impossível viver mais sem você, meu amor...
Prestes falava pouco. Não deixaria os seus companheiros por hipótese alguma.
Taciana queria saber, ao menos se ele ainda a amava.
— Só amo a minha Pátria.
Suas respostas secas e duras penetravam os ouvidos de Taciana como os gemidos dos moribundos.
Como o “camelot” do drama de Rachilde — “Le vendeur de Soleil” que enlouquecera pelo desespero da fome e que começara a apregoar a venda da “maior riqueza do mundo, da fonte geradora de todas as forças vitais”, e apontava depois do agrupamento dos populares, para o sol, com o desapontamento de todos, Taciana gritava abotoando com suas mãos trêmulas, a túnica de Luiz Carlos Prestes.
— Ofereço-lhe o meu amor, o meu corpo, a minha alma, a minha vida! Tudo é seu!
Toda a sua esperança acumulada em cinco anos de sofrimento se desfazia naquele momento como um floco de paina soprado pelo vento.
Toda a sua vida se desmoronava. Nada mais restava daquele sonho de felicidade.
Prestes a convidava a retirar-se. Ali não poderia ficar. Era humanamente impossível.
Taciana agarrava-se a ele como uma mãe a quem lhe roubam o filhinho.
Que ele meditasse, que ouvisse a voz do seu coração. Como poderia ela viver agora? Aquele momento era o mais fatal de sua existência. Era a cena final da tragédia de sua vida amorosa. Ela morreria fatalmente.
— A morte é o maior bem que nos proporciona a vida. Vá em paz, senhora.
Era o fim. A atitude de Taciana era de quem começava a perder a razão. Olhava aparvalhada para aquele homem que destruía todo seu sonho de felicidade, que a atirava ao abismo da sepultura.
— Onde está seu coração, Luiz?
— Ficou no Brasil, minha senhora.
Também ela perdera a sua grande batalha na vida.
Prestes tinha ainda uma réstia de luz e de esperança. Adélia estava bruxuleando como a luz da lamparina cujo azeite se esgotou aos pés da imagem de Cristo. O vendaval que se aproximava a apagaria para sempre...
— Adeus, Luiz. Que Deus, o ajude. Adeus.
Era o fim.
Taciana retirou-se lentamente arrastando o cadáver do seu sonho...
Quando chegou à lancha mandou desembarcar toda a bagagem que levara e entregá-la ao General Prestes.
A embarcação partiu como se acompanhasse os funerais daquele grande amor.
Horas depois desencadeava-se a grande tempestade. Choveu abundantemente durante a tarde. À noite aumentou a tormenta, com descargas elétricas. Os estrondos apavoravam os tripulantes da lancha que dificilmente cortava as águas revoltas da baia de La Gaiba.
Madrugada alta passou a tempestade Um lindo dia em perspetiva.
Mas, ao chegarem a Puerto Suarez, os homens da lancha deram por falta de Taciana.
Rio, 1929.
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Este livro foi escrito em 1929. Esteve em mãos de quatro editores e nenhum deles o quis publicar. Só agora encontrei um editor, o Sr. Calvino Filho. Eis a razão por que escrito em 1929, só é publicado em 1938.
A. Figueiredo Pimentel
Rio de Janeiro