São Indispensáveis a Crítica e a Autocrítica de Nossa Atividade para Compreender e Aplicar uma Nova Política

Luiz Carlos Prestes

29 de Marcço de 1958


Primeira Edição: Semanário A Voz Operária, n.º 460, 29/03/1958.
Fonte: PCB: Vinte Anos de Política (1958-1979)
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, junho 2006.
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A discussão de uma nova orientação política exige a apreciação, do ponto de vista autocrítico, da orientação política anteriormente seguida pelos comunistas. A autocrítica é um elemento imprescindível e um ponto de partida para determinar com precisão as mudanças de nossa tática.

Os erros fundamentais da linha geral que seguimos nos últimos anos têm como fonte comum o subjetivismo, que impregnou todo o nosso pensamento político. Este subjetivismo se manifestava em duas atitudes simultâneas e inseparáveis. Por um lado, transformamos os ensinamentos do marxismo-leninismo em dogmas abstratos, em fórmulas gerais, uniformemente aplicáveis a todos os países, sem exame das particularidades concretas do seu desenvolvimento histórico. Por outro lado, menosprezamos o estudo da realidade brasileira, perdemos de vista o movimento real, os processos que estavam em curso na vida econômica e política do país. A nossa política deixou de ser, assim, a decorrência direta das condições objetivas do Brasil e se tornou uma adaptação mecânica de fórmulas gerais ou de experiências acertadas em outras partes do mundo. Deixamos de ver os fenômenos políticos e sociais em movimento e custamos, por isto, a perceber as transformações que se operavam na vida real. Não soubemos, em suma, aplicar corretamente os princípios universais do marxismo-leninismo às particularidades específicas do desenvolvimento histórico brasileiro.

A análise de nossa política anterior nos mostra que, em primeiro lugar, partíamos de uma falsa apreciação da situação internacional. Nesta ocorreram, sobretudo após a segunda guerra mundial, transformações essenciais, que mudaram a correlação de forças a favor do socialismo e do movimento de libertação nacional dos povos. O aparecimento do sistema socialista mundial com a URSS à frente se tornou o fator decisivo que passou a exigir a postulação dos problemas internacionais de maneira inteiramente nova. As guerras deixaram de ser inevitáveis e surgiu a possibilidade real de impedi-las.

Nós, porém, superestimávamos a força do imperialismo, julgávamos desfavorável a correlação de forças e tínhamos uma perspectiva fatalísta a respeito da eclosão de uma nova guerra mundial. Como conseqüência, criamos uma concepção profundamente subjetivista de rápida radicalização da situação política e de revolução a curto prazo.

Igualmente não conseguimos perceber que, nas novas condições internacionais, as formas de conquista do Poder pela classe operária e de construção do socialismo se tornavam cada vez mais variadas, conforme a situação particular de cada país.

Despreocupados com a análise objetiva da realidade brasileira, ficamos cegos às transformações que se acumulavam na estrutura econômica e nas instituições políticas de nosso país. Embora se houvesse acelerado ultimamente o desenvolvimento das forças produtivas e o capitalismo fizesse importantes progressos na indústria e também na agricultura, formulávamos a situação econômica do Brasil como sendo de estagnação. Isto nos levou a uma compreensão unilateral da situação nacional. Vendo somente a penetração imperialista norte-americana e deixando de levar em conta as forças que a ela se opõem, formulamos a tese errônea, de caráter fatalista, sobre a colonização crescente do Brasil. Esta tese contribuía também, juntamente com a falsa análise da situação internacional, para a concepção da revolução a curto prazo e para a prática de uma política profundamente sectária.

Uma vez que não levávamos em conta o desenvolvimento capitalista nacional, era inevitável que desconhecêssemos os fenômenos dele resultantes. Não víamos que a burguesia interessada no desenvolvimento independente da economia nacional ganhava força não só nos partidos políticos e no parlamento como no próprio governo. Com a participação destes setores da burguesia no Poder do Estado, mudava parcialmente o seu caráter, bem como, em particular, do governo. Não se tratava mais de um Estado de latifundiários e de grandes capitalistas a serviço do imperialismo norte-americano, como continuávamos a formular, mas de um Estado em que participava também a burguesia interessada no desenvolvimento independente da economia nacional. E assim é que, com a formação do governo do sr. Juscelino Kubitschek, se tornou mais flagrante a incorreção da tese geral de "governo de traição nacional" e a orientação tática esquerdista e aventureira voltada para a "derrubada do atual governo".

Partindo de premissas errôneas na caracterização do Estado, tornamo-nos incapazes de analisar com justeza as modificações que se verificavam no regime político, em conseqüência do processo de democratização resultante das mudanças ocorridas na estrutura econômica e da ação das forças progressistas. Víamos somente as limitações antidemocráticas, os aspectos reacionários, os atentados às liberdades, quando o movimento operário restabelecia a liberdade sindical e as massas ampliavam cada vez mais a prática das liberdades democráticas. A Constituição era definida como um "código de opressão", quando, na verdade, ao lado de aspectos reacionários que encerra, ela consagra as liberdades democráticas fundamentais e importantes direitos sociais das massas. Proclamávamos que as eleições eram "uma farsa" e, entretanto, as massas nos ensinavam que através delas era possível modificar as composição do parlamento e do governo e influir nos destinos do país no sentido do nacionalismo e da democracia.

Tudo isto nos impossibilitou de compreender, em conclusão, que o processo da revolução brasileira não podia ser o da imediata liquidação do regime econômico-social existente, mas o da gradual acumulação de reformas profundas e conseqüentes dentro do próprio regime atual, chegando até às transformações radicais exigidas pelo desenvolvimento histórico brasileiro em sua presente etapa.

A falsa apreciação da situação internacional e das modificações ocorridas no regime econômico e social brasileiro impediu-nos de interpretar de modo justo a nova disposição das forças sociais do país e a questão da frente única, que tem no terreno da tática e da estratégica uma importância fundamental.

Analisando as contradições existentes na sociedade brasileira, ficávamos presos a um esquema e não víamos que, em resultado do desenvolvimento econômico do país, a contradição que se aprofundava cada vez mais era a que opõe a nação ao imperialismo norte-americano e aos seus agentes internos. Esta contradição tinha se tornado a principal e dominante e determinava o processo de alteração na disposição das forças sociais. Surgiam condições cada vez mais favoráveis para unificar amplas forças contra o imperialismo norte-americano, inimigo principal da nação. Objetivamente, acumulavam-se os fatores que levam à formação de uma frente única contra o imperialismo norte-americano e seus agentes internos, frente única que pode e deve abranger o proletariado, os camponeses, a pequena burguesia urbana, a burguesia, os latifundiários que têm contradições com o imperialismo norte-americano e os capitalistas ligados a grupos imperialistas rivais dos monopólios norte-americanos.

Nestas condições, o golpe principal do proletariado e de todas as forças progressistas do país deve se dirigir contra o imperialismo norte-americano e os seus agentes internos.

Preocupados, entretanto, em ganhar as massas para realizar as transformações revolucionárias de modo imediato, entendíamos que o golpe principal devia ser dirigido contra a burguesia nacional-reformista. Com isto, contribuíamos não para agrupar, mas para dividir as forças que podem lutar contra a exploração imperialista norte-americana.

A influência do subjetivismo se manifestou na maneira como concebíamos o processo de organização da frente única. Criamos subjetivamente um modelo pré-fabricado — o da frente democrática de libertação nacional — e nos esforçamos durante muito tempo, sem êxito, para levá-lo à prática. Deixamos de perceber, assim, o processo de formação da frente única que se dava na própria realidade e que decorria, em parte, da atuação dos comunistas em diversas campanhas antiimperialistas. Daí porque demorássemos em compreender a extraordinária importância do movimento nacionalista, como frente única, embora incipiente, das forças antiimperialistas e democráticas.

Nossas concepções dogmáticas também determinaram a maneira falsa como compreendíamos a questão do caminho da revolução brasileira. Não fomos capazes de distinguir na experiência histórico-universal da Grande Revolução Socialista de Outurbro os traços essenciais, válidos para todos os países, e os aspectos particulares e singulares, cuja repetição não pode ser obrigatória fora da Rússia. Daí porque julgássemos o caminho da luta armada como o único admissível para a revolução brasileira, sem perceber que dentro das novas condições do país e do mundo, havia surgido a possibilidade real de um outro caminho: o do desenvolvimento pacífico.

Partindo da idéia de que vivemos num "regime de reação e terror", o que constitui evidente deformação unilateral da realidade, não víamos que existe um processo de democratização da vida política do país, em virtude do qual se criam condições para a utilização dos meios legais de luta pelas forças nacionalistas e democráticas.

Em conseqüência de todas estas idéias errôneas, chegamos a uma concepção falsa, de caráter esquerdista, sobre a revolução brasileira.

Acreditávamos que era possível ganhar as massas para a revolução colocando como tarefas imediatas as transformações revolucionárias radicais, ao invés de nos integrarmos na vida política corrente e lutarmos pelos objetivos revolucionários partindo das condições reais e da correlação de forças existente. A tática, para nós, se reduzia assim à pura agitação e ao desencadeamento de lutas que procurávamos radicalizar artificialmente, visando ganhar as massas para o programa revolucionário, enquanto esperávamos a chegada do momento propício em que, por meio da insurreição, substituiríamos as classes no Poder. Só víamos, deste modo, a meta a atingir, que colocávamos arbitrariamente como objetivo imediato, e não o movimento real no qual devíamos nos integrar, procurando conduzi-lo no sentido da meta revolucionária.

Com esta compreensão simplista e mecânica da revolução, cerrávamos os olhos ao processo político em desenvolvimento no país, e, em geral, dele não participávamos como força política atuante. Em conseqüência dessa atitude de isolamento sectário, da omissão em face dos problemas imediatos que interessavam ao povo, aumentava cada vez mais o desligamento do Partido em relação às massas e não conseguíamos acumular forças para a realização das transformações revolucionárias que apregoávamos.

Preocupados exclusivamente com o objetivo revofucionário, perdemos de vista o processo de desenvolvimento necessário para atingi-lo e contrapusemos mecanicamente ao governo atual um governo capaz de realizar as transformações radicais, sem admitir as formas intermediárias. Não víamos que a realidade apresenta a possibilidade de um governo nacionalista e democrático, capaz de realizar uma política externa independente e de paz e uma política interna democrática e progressista. Um governo deste tipo, surgindo dentro dos quadros do atual regime, abrirá caminho para uma nova correlação de forças capaz de empreender as transformações radicais, aproximando-nos, assim, dos objetivos revolucionários.

A falta de perspectiva de modificação da política do país, através de um governo nacionalista e democrático, reduziu nossa atividade à agitação e propaganda de palavras-de-ordem revolucionárias, enquanto no terreno da ação política ficávamos circunscritos a campanhas isoladas em torno de objetivos parciais, como a defesa do petróleo, a luta contra o envio de tropas à Coréia, a campanha pela proibição das armas atômicas, etc, sem que tais movimentos visassem a uma modificação efetiva da correlação de forças políticas.

A essência de nossos erros políticos, cujas raízes mergulham no subjetivismo, consiste, portanto, numa compreensão "esquerdista" do processo revolucionário, numa concepção falsa que nos levou a desconhecer o processo de desenvolvimento gradual, necessário e inevitável, admitindo tão somente a transformação qualitativa, revolucionária, em que ela deve culminar.

É necessário reconhecer que em meu artigo sobre o 40º aniversário da Revolução de Outubro ainda persiste a separação mecânica da tática e dos objetivos estratégicos. A revolução ainda é encarada ali apenas como um ato único, como um momento determinado, quando o salto revolucionário é a culmi-nação de um processo durante o qual se produzem modificações progressistas e ocorrem formas de aproximação e transição para um Poder revolucionário.

A crítica superficial de nossos erros políticos pode conduzir agora ao erro oposto, à preocupação exclusiva com o movimento que se processa gradualmente, abandonando a meta revolucionária da classe operária. Ora, uma tática que se baseia apenas nas conquistas imediatas e não objetiva atingir as transformações radicais nada tem de uma tática revolucionária, mas, pelo contrário, é uma tática reformista, que nos colocaria a reboque da burguesia.

Ao analisar os defeitos de nossa orientação política anterior, devemos fazê-lo com profundo espírito autocrítico, reconhecendo que ela estava eivada de erros graves e fundamentais de caráter sectário e dogmático. Este o nosso dever de comunistas, e o único caminho para superar as deficiências a fim de avançar em direção aos nossos objetivos.

Tal atitude não se confunde com o negativismo em relação ao passado. Embora nossa orientação política fosse fundamentalmente errônea, no processo de sua atuação prática, na medida em que procuravam colocar-se à frente das lutas do povo, os comunistas obtiveram determinados êxitos que exerceram influência positiva no curso dos acontecimentos.

Os comunistas constituíram sempre, em todos estes anos, uma força de grande combatividade na luta contra a exploração imperialista, em defesa da paz, pelas reivindicações imediatas dos trabalhadores e pelas liberdades democráticas. A atuação dos comunistas muito contribuiu para a elevação da consciência antiimperialista de nosso povo, para o fortalecimento da unidade e da organização da classe operária. Pela sua abnegação e desprendimento, os militantes comunistas se afirmaram perante as massas como verdadeiros patriotas e defensores dos seus interesses.

É necessário reconhecer, por outro lado, que em muitos casos os êxitos obtidos nas lutas de massas se deviam principalmente à existência de fatores objetivos favoráveis à ação das forças antiimperialistas e democráticas. Em certas ocasiões, as justas posições táticas adotadas pelos comunistas foram resultado de uma imposição da própria vida e entravam em evidente conflito com a linha geral esquerdista e sectária que seguíamos. Exemplo disto foi a justa posição que adotamos ao apoiar a candidatura do sr. Juscelino Kubitschek e ao retirar a palavra-de-ordem de derrubada do governo, depois de sua posse, posição esta que se chocava diretamente com uma tese do programa do Partido.

Não temos nenhum motivo para renegar o passado, passado glorioso de lutas a serviço da classe operária e do povo brasileiro. Orgulhamo-nos hoje, como ontem, de nossa condição de comunistas. Mas é precisamente o título de comunistas, de partidários do marxismo-leninismo, que nos impõe o dever de não vacilar no exame crítico e autocrítico de nossa atividade, de expor sem subterfúgios as raízes de nossos erros e empreender com coragem revolucionária a sua correção. Esta a atitude que nos cabe assumir como dirigentes políticos da classe operária, a única atitude que pode assegurar a confiança das massas em nossa atividade dirigente.


Inclusão 01/06/2006