A Quilombagem como Expressão de Protesto Radical

Clóvis Moura

2001


Primeira Edição: ....

Fonte: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4408011/mod_resource/content/1/MOURA-Clovis_A%20Quilombagem%20como%20expressao%20de%20protesto%20radical.pdf

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.

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O quilombo era uma sociedade alternativa ou paralela de trabalho livre encravada no conjunto do escravismo colonial que constituía a sociedade maior e institucionalizada. O seu agente social era o negro-escravo inconformado que traduzia esse sentimento no ato da fuga. Este era o primeiro estágio de consciência rebelde, obstinada e que já expressava e refletia um protesto contra a situação em que estava submerso. O negro fugido era o rebelde solitário que escapava do cativeiro. O segundo estágio era a socialização desse sentimento, e, em consequência, a sua organização com outros negros fugidos em uma comunidade estável ou precária. Era, portanto, a passagem, no nível de consciência, do negro fugido para o do quilombola. O seu protesto solitário adquiria um sentido social mais abrangente e já se expressava em atos de interação coletivos. O quilombola era, portanto, um ser social com uma visão menos fragmentária da necessidade de negar coletiva e organizadamente o instituto da escravidão.

Historicamente o quilombo aparecerá como unidade de protesto e de experiência social, de resistência e reelaboração dos valores sociais e culturais do escravo em todas as partes em que a sociedade latifundiário-escravista se manifestou. Era a sua contrapartida de negação. Isto se verificava à medida em que o escravo passava de negro fugido a quilombola.

Esses núcleos de ex-escravos remanipulavam assim os seus valores culturais ancestrais e a experiência empírica adquirida no trabalho das plantations, dando-lhes um novo conteúdo. Isto é: transformando-o em trabalho livre. E com isto imprimia um selo de negação ao trabalho executado no quilombo em confronto como trabalho executado nas fazendas escravistas. Era, portanto, uma negação total no seu universo existencial e de trabalho que se verificava ao transformar-se em quilombola. Tudo isto se refletirá na nova organização sociopsicológica do agente rebelde, a qual se expressará numa dinâmica oposta àquela do escravo pois refletirá um nível de reflexão coletiva que era oposta à reflexão que ele tinha na condição anterior. O quilombola era, portanto, um ser novo, contraposto ao escravo e que somente enquanto quilombola podia assim pensar e sobretudo agir. O interior quilombola tinha, por isto mesmo, como unidade permanente o anseio de conservar a liberdade conquistada quando objetiva e subjetivamente negou a ordem escravista e consequentemente a sua condição de escravo. Era, portanto, um ser para si no nível em que se reconhecia e se reencontrava na negação dessa ordem.

O quilombo tinha portanto como justificativa de existir essa resistência radical por parte do ser escravizado, era um módulo de protesto organizado, o qual variava de tamanho e de particularidades, região, detalhes, etc. Mas a sua substantividade se expressava na negação do sistema.

Dai podermos ver como ele irá se organizar de forma mais ou menos uniforme naquilo que tinha de singular: resistir ao cativeiro criando um espaço livre. Um território no qual as relações entre os homens não tinham outra hierarquização senão aquela necessária para defender aquilo que os unia: a liberdade. Os status de prestígio quer políticos, religiosos ou militares eram concedidos coletivamente àqueles que aceitavam o mandato da comunidade para defendê-la, organizá-la e protegê-la, mas todos formando uma unidade que garantia a harmonia interna capaz de dinamizá-la e unir as suas forças contra os invasores. A invasão significava ameaça e negação da ordem quilombola (livre) e a restauração da escravidão.

O quilombo tinha, no seu interior, elementos em comum com a sociedade abrangente, especialmente com os seus segmentos e grupos oprimidos. Um deles era a produção. Nas áreas em que ele se instalava podia haver diferenças regionais dos gêneros produzidos, especialmente no setor agrícola. Dai muito da produção quilombola criar os gêneros produzidos nos engenhos. Mas, se, de um lado, eles plantavam esses gêneros a coisa muda substancialmente de figura se analisarmos como eles eram produzidos. Porque o mesmo gênero que era produzido nos engenhos e fazendas através do trabalho compulsório do escravo, no quilombo era produzido de forma comunitária, com uma nova divisão interna do trabalho de acordo com a condição de homens livres. A mesma coisa podemos dizer sobre os demais gêneros produzidos pelos senhores de engenhos (ou outra classe social detentora do poder regional) e aqueles produzidos nos quilombos. Essa diferenciação da forma de se produzir internamente — trabalho escravo, em um trabalho livre comunitário, em outro — determinou o comportamento e a dinâmica interna da fazenda escravista e do quilombo. Eram dois universos antagônicos que se defrontavam em todos os níveis estruturais sem que isto, no entanto, impedisse de haver formas de interação entre esses dois universos. Se o universo escravista tentava obter do segundo a reconquista dos escravos perdidos e estabelecia, para isto, relações conflituosas e violentas cujo ponto-limite eram as expedições punitivas, o universo quilombola interagia com a sociedade através de várias formas. A primeira era pacífica, através do contato com os escravos dos engenhos, pequenos sitiantes, vadios das estradas e desclassificados em geral, dos quais obtinham informações, víveres complementares, armas, pólvora e outros: a segunda era semipacífica (com atritos variáveis) com sitiantes, escravos recalcitrantes de se incorporarem ao quilombo e outros membros da população flutuante que habitavam o território escravista. A terceira era a que existia entre o universo escravista e o universo quilombola, o qual mantinha com ele um tipo de relacionamento conflitante. Era aquele que existia entre o quilombo e os representantes do latifúndio escravista: senhores de engenhos, fazendeiros, autoridades coloniais e os seus segmentos armados, milícias, capitães-do-mato e mercenários (bandeirantes e chefes de “terços”). A mais importante função social do quilombo era portanto esta: uma ruptura radical, em todos os níveis, com o sistema colonial-escravista, os seus representantes, a sua economia e os seus valores raciais e ideológicos. Este era o seu papel: a negação quer pelo conflito armado, quer pela competição de dois modos de produção (o escravista e o do trabalho livre) e dos seus valores ideológicos. Do ponto de vista sociológico representavam essa ruptura, mesmo quando eram muito pequenos. Mas. no seu espaço o trabalho escravo era um anacronismo. Antecipava-se, assim, o quilombo à formação de sociedades livres em toda aquela área que se convencionou chamar de Afro-América e que eslava incluída no Sistema Colonial. A sua geografia — e referimo-nos à sua geografia política — delimitava um universo excludente, mesmo que não formalmente estabelecido. O quilombo, portanto, só pode ser explicado e compreendido se visto na sua totalidade de negação radical ao sistema. Somente assim ele se justifica e tem função no processo de substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre.

O quilombo podia se formar de diversas maneiras, mas após formado, o comportamento dos seus membros era o mesmo: organizar-se para a resistência social. Mesmo quando mudava de local, ao ser descoberto, o quilombo carregava consigo a sua irredutibilidade social que era o trabalho livre no próprio centro da sociedade escravista. As diversas formas que adquiriu durante o tempo da sua existência aconteciam para melhor desempenhar o seu papel de negação. Assim, as diversas estruturas internas que ele montou, nos diferentes sítios em que se instalou, ou nas diversas épocas em que existiu, perseguiam o mesmo objetivo.

O quilombo como entidade radical

O quilombo caracterizava-se basicamente peia sua conotação radical, como expressão de radicalidade diante do escravismo. Essa radicalidade vem da própria essência da sociedade escravista. Nela não pede haver posição de negação a não ser se ela for radical. O escravo — ao negá-la — só podia fazê-lo radicalmente. Ele tem de passar subitamente da condição de coisa à homem livre. O escravismo não lhe dá a oportunidade do meio-termo. Por isto. essa passagem no sistema tem de ser radical. Para ele não há possibilidade de uma meia posição. E por isto é que somente negando radicalmente o escravismo na sua essência ele adquire a condição de homem livre. O quilombola é o homem que adquire, pela sua posição radical, a sua liberdade, ele não pode ser meeiro, camponês, posseiro ou arrendatário. Só pode ser homem livre ou escravo. Sociologicamente essa radicalidade surge da impermeabilidade do sistema escravista para com o escravo. É somente no quilombo que ele adquire a cidadania. No nível de posse da terra o quilombola também tem de ser radical. Não pode comprá-la, arrendá-la ou mesmo alugá-la. Tem por isto de desapropriá-la, ocupá-la através de um ato radical pela violência muitas vezes. A terra, o espaço quilombola. é um reduto livre que também nega o sistema de propriedade escravista. E tem de manter a posse desse território através do radicalismo social em face das tentativas da ordem escravista de reavê-lo. O território quilombola é também uma negação dialética do tipo de propriedade legal no escravismo. A mesma coisa podemos dizer do ponto de vista político. O quilombo é um reduto que expressa a sua radicalidade através da formação de um outro poder: o Poder quilombola. Somente assim o quilombo poderá ser governado. Socialmente o quilombo também é uma expressão de radicalidade. Ele não reproduz o tipo de propriedade, família e distribuição de renda de acordo com o sistema escravista. Pelo contrário. Economicamente o seu sistema de trabalho, executado por homens livres é outra negação ao trabalho escravo praticado nos engenhos, nos latifúndios e fazendas. Além disto, é também uma negação à monocultura de exportação, produzindo uma policultura para o consumo. Em todos os níveis da sua estrutura, portanto, o quilombo expressa essa radicalidade de negação à ordem social escravista, suas instituições e valores.

Dentro da ordenação social, econômica, cultural e jurídica do modo de produção escravista não há probabilidades de uma mobilidade social massiva que permita a passagem do escravo a cidadão pleno a não ser pela violência se excluirmos as alforrias (irrelevantes do ponto de vista de deslocamento de classes no poder), violência física, social e militar de enfrentamento com os outros agentes de controle do sistema. Era ser senhor ou ser escravo e para o escravo não havia outra possibilidade de ser cidadão, ou melhor, homem livre.

Qualquer acordo entre o .senhor e o escravo dentro do sistema escravista tinha de partir do reconhecimento do direito do senhor em relação ao escravo que não tinha nenhum. Era a partir daí que os possíveis acordos eram montados, isto é, o escravo tinha de reconhecer a sua condição estrutural escrava. As discussões possíveis eram de ordem adjetiva (melhor tratamento, favores pessoais para certas categorias de escravos, uso da terra do senhor, etc.) mas substantivamente o direito do senhor era inalienável.

E somente o quilombola, ao fugir para as matas, subtraindo-se do poder do senhor negava objetivamente este direito.

O escravo só poderá, portanto, reencontrar-se como homem, restabelecer a sua interioridade, a sua subjetividade integralmente a partir do momento em que não apenas recusa-se ao trabalho, mas recusa-se juntamente com outros, coletivamente, socialmente através da organização de um território livre. É a partir deste momento que o escravo restabelece a sua plenitude humana que lhe foi socialmente negada pela força, pela coerção econômica e extraeconômica, pela violência. Na sua totalidade, por isto, o quilombo é uma instituição radical, negando social e economicamente o regime escravista. Nega-o na medida em que cria e recria uma unidade de protesto social e cultural restabelecendo a cidadania confiscada do escravo. É portanto, um universo que só se mantém e prospera se mantiver essa radicalidade permanente, pois o acordo com o sistema escravista, é um passo para a sua reescravização. Fora da situação radical de quilombola, o escravo só chegava no máximo a ser liberto(1), isto é, um súdito do sistema escravista, obrigado a prestar-lhe obediência (vassalagem). Somente no universo quilombola o escravo se integrava completamente na essência plena de sua cidadania e tinha a sua humanidade restaurada e resgatada.

Essa radicalidade imposta pelo sistema levava a que o quilombola fosse infenso ao acordo. O acordo com o inimigo era a primeira etapa da sua reescravização, da volta ao cativeiro. Cada cláusula de acordo era uma mutilação à sua condição de ser livre, ou seja, a aceitação em princípio da sua condição de escravo. Os diversos exemplos históricos de acordo entre quilombolas e senhores somente provam, do ponto de vista lógico-teórico, que os quilombolas ao aceitarem as condições para a efetivação do mesmo mutilavam a totalidade da sua condição de ser livre, legitimando o poder do senhor de escravos. Qualquer forma de submissão ou sujeição às normas dos senhores vinha mutilar, na sua essência, a personalidade quilombola.

Por isto, se o quilombola aceitava, no acordo, ser súdito da autoridade que representava simbolicamente a escravidão estava derrotado na condição de homem livre. Deixava de ser quilombola para voltar à condição de escravo fugido que volta à casa do senhor para ser reescravizado. Esta radicalidade do ser quilombola e pouco compreendida porque a análise tradicional é feita a partir das posições, símbolos e valores escravistas, negando-se, com isto, o universo e os valores do quilombola.

O quilombo, portanto, como categoria sociológica é uma estrutura organizada que configura, na sua totalidade, a negação do universo da sociedade escravista, os seus valores e representações.

Do ponto de vista de estrutura de negação, podemos ver os seguintes pontos de antagonismo entre o quilombo e o sistema escravista:

Quilombo Sistema escravista

Homem livre

Escravo

Terra livre confiscada

Latifúndio escravista

Trabalho comunal livre

Trabalho compulsório

Coletivismo agrário

Produção para o senhor

Forças armadas de defesa

Forças armadas de repressão

Família alternativa livre

Família reprodutora de escravos

Por estas razões, somente através dessa radical idade, o quilombo transformou-se em um continuum social, cultural, econômico e político durante a vigência do sistema escravista: a quilombagem. Não interessa, por este motivo, a análise factual da vitória ou derrota desse ou daquele quilombo isoladamente, mas analisar a quilombagem como um continuum de desgaste permanente às forças, sociais, culturais, políticas e econômicas da escravidão e dos seus valores. E é justamente esse processo contínuo e permanente de desgaste que dá à quilombagem o nível de resistência revolucionária porque destrói ou corrói por desgaste permanente a estabilidade e eficiência do sistema nas suas bases: a produção. É portanto a quilombagem um processo radical permanente de desgaste do sistema que se articula durante todo o percurso histórico da escravidão no Brasil com a sua dinâmica radical permanente.

O quilombo e a quilombagem

Se o quilombo foi um módulo de resistência radical ao escravismo. a quilombagem — o continuum dos quilombos através da história social da escravidão — foi um processo de desgaste permanente do sistema. Não queremos dizer, com isto, que houve uma articulação consciente da parle dos seus agentes sociais, mas a sua existência e a sua permanência no tempo, a sua imanência contínua constituiu um processo social o qual, atuando no centro da contradição

fundamental do sistema escravista desarticulou a sua estabilidade e o desempenho econômico do seu projeto. A quilombagem deve, por isto, ser vista como um processo permanente e radical entre aquelas forças que impulsionaram o dinamismo social na direção da negação do trabalho escravo.

De um modo geral, o quilombo é visto como um ato de fuga do escravo, sem um projeto político ou uma configuração consciente dos objetivos estratégicos do seu papel como agente social. Se analisarmos do pomo de vista do comportamento de cada quilombo isoladamente, isto poderá ser aceito. Mas, se analisarmos na sua totalidade o processo histórico da sua existência é que poderemos ver como a quilombagem se articula socialmente como arma permanente de negação do sistema. E o nega no centro do eixo mais importante para o seu êxito: nas relações de trabalho entre o senhor e o escravo. É justamente no nível da produção que a quilombagem atinge o sistema escravista, vulnerabilizando-o e desgastando-o através da negação do trabalho do agente mais importante da dinâmica do sistema. É através da quilombagem que a luta de classes se realiza no bojo das relações senhor-escravo. É por isto que para compreendê-la (a quilombagem) temos de encará-la como um processo permanente de negação radical ao sistema escravista.

Durante toda a vigência do sistema escravista ela se manifesta e se dinamiza de maneira polimórfica através de quilombos grandes ou pequenos, agrícolas, pastoris, mistos, predatórios, de mineração» acompanhando de forma diversa (porque de negação) o sistema de produção e suas variações regionais. Mas essa reprodução da economia do senhor, feita pelo escravo, através do trabalho livre quilombola era a negação essencial (de essência) do trabalho executado na economia escravista. Era exatamente o outro lado da moeda. Expressava-se como um protesto objetivo e vulnerabilizador. Nesse trajeto histórico que a quilombagem percorre, os choques, as assimetrias com o sistema, as lutas, as vitórias, a destruição das suas unidades, as estratégias de enfrentamento ou de recuo atuam como uma peça desgastadora e permanente do sistema. Diminui a sua eficiência e segurança. Onera-o pela perda do escravo e a perda do seu trabalho, além da insegurança que cria em todos os ramos de atividade. Cria a síndrome do medo que irá acompanhar os senhores durante todo o tempo da quilombagem. Ela é um multiplicador psicológico colocando o senhor em permanente defensiva, na expectativa de ação do inimigo. A quilombagem marca com a sua presença (ou ausência) o comportamento dos senhores, as suas ações de violência contra o escravo produtivo, estabelece o seu conceito de eficiência no trabalho e a contrapartida de agressão permanente à quilombagem. A quilombagem é um símbolo permanente de desarticulação dos valores ideológicos e existenciais do senhor de escravos(2).

A quilombagem põe no centro da discussão permanente o problema da legalidade ou ilegalidade da escravidão e do escravizador. Ao discutir-se se a fuga do negro era ou não um ato normal ou amoral, se o escravo fujão era ou não um perigo, se os seus atos ativos (criminosos?) deviam ser e como deviam ser punidos, os agentes mantenedores da ordem tinham de dialogar com os valores do outro lado e aceitarem os mesmos como elemento de referência para o julgamento. Com isto o quilombola já era o outro, ou seja, o ser que se negara como escravo e recriara uma nova galáxia existencial e social de homem livre com o qual o senhor de escravos tinha de dialogar, mesmo que fosse em posição radical a ela. Assim, o senhor sabia que o quilombola já lhe fugira ao controle e com isto a disciplina despótica, indispensável à ordem do sistema havia sido trincada e fragmentada. Tinha de estabelecer, portanto, uma nova linguagem para tratar com ele. Não era mais a linguagem do senhor para o escravo, mas se articulava através de categorias de oposição radical. Por seu turno, o quilombola não usava mais a linguagem unilateral de obediência, mas, pelo contrário, uma linguagem de oposição a ele: a violência.

Uma das origens da síndrome do medo é a perda por parte do senhor do universo de obediência do escravo. Mesmo que seja apenas uma desobediência simbólica, o senhor já se sentia fragmentado na sua posição de comando totalitário. Isto porque ele devia ser total, compacto e sem fissuras de qualquer espécie. Sem isto as relações senhor-escravo não seriam perfeitas.

Por outro lado, o poder da quilombagem tinha fronteiras muito mais abrangentes do que as do senhor. Elas não se limitavam ao território ocupado pelo quilombo, mas vão até as matas, florestas, estradas, rios, chegando até as senzalas. Podemos mesmo dizer que nas senzalas o poder da quilombagem tinha polos receptores e irradiadores da sua ação e do seu prestígio. É uma articulação subterrânea, ambígua, sem códigos ou normas, mas que se manifesta em atos objetivos de solidariedade sutis ou dissimulados no escravo passivo. É uma passividade que a qualquer momento pode transformar-se em fuga, ato de violência ou em descaso pelo trabalho, sabotagem, doença simulada ou outras formas de resistência.

Daí dizermos que a quilombagem é o eixo que irá dar explicação do comportamento do senhor. Os rasgos fundamentais da sua conduta só são explicáveis em função de como ele atua para se defender do inimigo fundamental e permanente do seu prestígio e riqueza. E é justamente o quilombola (fugitivo da senzala e do trabalho) que é a sua negação dialética. E é sobre ele que o senhor tem de atuar para manter os seus valores patrimoniais e o seu prestígio patriarcal-escravista e também a sua produção.

É este papel de desarticulador quer no nível econômico, social, ideológico e psicológico que a quilombagem exerce, até o fim, atuando no centro do sistema.

É portanto um componente dos mais importantes, senão o mais importante das contradições que impulsionaram a dinâmica de mudança social rumo ao trabalho livre.

Ao se compreender a quilombagem com esta função teremos novas formas - mais radicais — de entendermos o comportamento do senhor, do escravo e do próprio quilombola, isto é, visto como a expressão da luta de classes dentro das condições específicas do modo de produção escravista.

Este aspecto de negação dialética ao sistema escravista-latifundiário é que dá a quilombagem um conteúdo revolucionário. É nesta dialética de totalidade, de negação, que iremos encontrar o seu papel social e a consequente interpretação sociológica correta a partir do momento em que ele é visto como um agente de negação emergente ao latifúndio escravista. O quilombo assim visto deixa de ser uma sequência de atos, episódios, sem conexão com a dinâmica global, e passa a ser visto como eixo fundamental no qual gira esta dinâmica. Isto porque o quilombo — e a quilombagem por extensão — não foi uma negação apenas no seu aspecto político e/ou militar como as insurreições urbanas, mas ele criou uma economia, estabeleceu um espaço livre e desempenhou uma função na economia, criando uma totalidade de negação. Há, por isto, a possibilidade de comparação da economia, da ordem militar e da vida social do quilombo com o escravismo colonial no seu conjunto. São duas unidades que se confrontam na sua globalidade. Não se pode ver, portanto, a quilombagem como um simples suceder de quilombos isoladamente no tempo e no espaço, mas ela só poderá ser compreendida sociologicamente se a vermos como um continuum social que tem como papel central a negação da ordem escravista em todos os seus níveis e durante a sua historicidade.

Contestar a quilombagem como um continuum revolucionário é procurar vê-la dentro de uma metodologia estática (portanto anti-dialética) e que nega a conexão íntima entre as partes e o todo, o particular e o geral. É deixar de ver­se a diferença entre a quilombagem na sua essência dinâmica e o escravismo. E não ver a articulação social permanente que historicamente se processa na sequência de quilombos e a sua permanente postura de negação ao sistema escravista. Somente podemos valorizar adequadamente (sem julgamento de valor) a participação dinâmica do escravo através da quilombagem na substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre.

Por outro lado, se o quilombo era o pólo de negação mais radical daquilo que era institucional no regime escravista, era, também, um polarizador das camadas, grupos ou segmentos de oposição ao sistema: marginais, índios destribalizados, foragidos da justiça ou do serviço militar ou etnicamente excluídos como mamelucos, curibocas, mulatos e mesmo brancos pobres ou perseguidos por diversas razões. Esses excluídos que se refugiavam nos quilombos durante todo o período da sua existência virão reforçar a postura de negação da quilombagem e configurar ainda mais o seu radicalismo. Com isto, configura-se no quilombo não apenas a radicalidade social e econômica, mas étnica também, pois a sua população será uma população diferenciada etnicamente sem que sobre essas diferenças se monte uma escala hierárquica que desse valor positivo (ou negativo) a cada conotação étnica, graduando os agentes sociais segundo a sua cor. Com isto, rompia-se o código senhorial que estabelecia a inferiorização da população não-branca em relação ao branco. Era o que poderíamos chamar de uma democracia racial.

Este poder polarizador do quilombo, e da quilombagem por extensão, vinha em consequência da negação dos valores de julgamento do sistema escravista colonial em relação à origem étnica desses agentes sociais excluídos, marginalizados ou perseguidos. A função aglutinadora da quilombagem estendia-se, também, à postura que ela demonstrava em relação à origem dos que para ali convergiam em busca da possibilidade de interagir com os demais em nível de igualdade étnica.

A unidade quilombola tinha, assim, características específicas. Constituía uma nova realidade social, dinamizava-a. E, ao dinamizá-la contrapunha-se social, econômica, política, étnica e ideologicamente ao escravismo e contrapunha a ele os novos valores e a nova economia composta por homens livres.

Conclusões

O que entendemos como quilombagem é um processo social contínuo de protesto que se desenvolve dentro da estrutura escravista, solapando-a histórica, econômica, étnica, e socialmente a partir do seu centro, isto é a produção. Por outro lado, esse processo tem um conteúdo radical porque nega o escravismo não apenas na sua base econômica, mas contrapõe-se a ele como unidade permanente de negação ao sistema. É uma outra unidade que se contrapõe — social, econômica, cultural e existencialmente — à outra unidade: o universo escravista. Ela só pode ser entendida, portanto, na sua totalidade e não como uma série de fatos isolados, repetidos na sua singularidade, com êxitos e derrotas particulares que se esgotam em si mesmas, mas como um continuum que tem início quando o escravismo é implantado no Brasil e somente termina com a sua derrota, isto é, com a implantação do trabalho livre. Desta forma, a quilombagem não é um suceder de quilombos isolados, com uma história atomizada e particular de cada um, mas um continuum que só termina com a abolição do sistema escravista colonial.

Gramsci escreve, referindo-se à dinâmica dos grupos rebeldes de subalternizados e oprimidos que ela é “necessariamente desagregada e episódica.

Sem dúvida, a atividade histórica destes grupos tende a unificação mesmo em planos provisórios, mas esta tendência é continuamente despedaçada pela iniciativa dos grupos dominantes e. portanto, só pode ser demonstrada no encerramento do ciclo histórico, se encerrado com sucesso. Os grupos subalternos sofrem sempre a iniciativa dos grupos dominantes, mesmo quando se rebelam e se insurgem: somente a vitória permanente estraçalha, e não imediatamente, a subordinação. Na realidade, mesmo quando parecem triunfantes, os grupos subalternos estão somente em estado de defesa alarmada. Qualquer traço de iniciativa autônoma por parte dos grupos subalternos deveria, por isso. ser de valor inestimável para o histórico integral”.

Como se vê, somente situando-se cada quilombo, vitorioso ou derrotado como componente de um continuum histórico permanente, que ocupa todo o ciclo que perfaz o tempo de existência da escravidão entre nós a quilombagem poderá ser compreendida.

Por outro lado, mesmo sofrendo a iniciativa despedaçadora da ação repressiva do poder senhorial, a quilombagem pode apresentar como saldo a construção de um modelo paralelo de organização todas as vezes que se estruturava em um espaço quilombola: modelo de economia, organização familiar, estrutura militar, religião, organização política, distribuição de bens, interação interna, papéis e função social dos sexos, forma de lazer e de poder. A quilombagem construiu um universo que pode ser apresentado como elemento de comparação ao outro, ao dominante, ao universo escravista. É nesta visão de totalidade — histórica, política, social e cultural — que o universo quilombola pode ser apresentado na sua radicalidade em confronto com o outro, o escravista. Somente na conclusão do ciclo histórico a que ele se contrapôs é que se poderá determinar se ele foi vitorioso ou derrotado. A totalidade da quilombagem é um universo de resistência que funcionou durante todo o tempo histórico em que vigorou a escravidão e somente desaparece concomitantemente à sua extinção. E é por isto que os quilombos isolados só podem ser compreendidos no seu papel histórico e social se incluídos como elos do processo de lutas e negação ao escravismo que constituiu a quilombagem. A quilombagem é portanto um processo permanente que se manifesta durante todo período escravista e somente termina quando este se extingue. Essa é a essência da sua radicalidade e somente vendo-a desta maneira, desta perspectiva dialética poderá ser entendida e o seu verdadeiro sentido sociológico, político e cultural desvendado.

Devemos destacar que esse universo da quilombagem manifesta a sua concretude histórica através dos diversos espaços dos quilombos que se sucederam durante o périplo da sua existência. E é nesses espaços constantes e sucessivamente produzidos e reproduzidos que a quilombagem manifesta a sua permanência histórica e a sua função social. Com a visão gramisciana (marxista) fica explicada essa função da quilombagem e a sua importância na dinâmica de negação do sistema escravista.

Somente no sentido de totalidade — estrutural e dinâmica — a quilombagem pode ser decifrada, compreendida e a sua função sociológica resgatada. Em todos os níveis do universo escravista, o universo da quilombagem é a sua contestação concreta. Porque essa totalidade manifesta-se através de uma concretude permanente e não de suposições utópicas ou escatológicas. É a concretude que a transforma em permanência, em objetividade. E essa objetividade, essa presença dinâmica de negação irá criar no outro universo normas de comportamento que a ele se contrapõem e que tem também a sua concretude na síndrome do medo. Essa concretude subjetiva nasce da expectativa permanente do dominador em relação ao comportamento do dominado. E também no comportamento do dominador que se reflete a sua fragilidade social em função da alienação que existe na essência da sua dominação. Isto é, a transformação do ser humano em coisa. Porque aí, por mais que 0 dominador exerça socialmente esse direito de dominação (coisificação), do ponto de vista existencial jamais ele pode transformar um ser cogniscente em coisa. A essência humana do escravo não pode ser coisificada e isto se expressa através de atos que são a negação da coisificação e a afirmação da sua essência humana. E é da certeza de que o poder econômico, extraeconômico, social, etc., não apagam ou neutralizam a condição humana do escravo que surge a síndrome do medo. E surgem daí os estereótipos que os dominadores criam para justificar esta síndrome: agressividade do escravo negro, ou a sua preguiça, a sua luxúria, o seu perigo sexual, a sua incapacidade para o trabalho etc.

Essa síndrome do medo que a quilombagem cria, por outro lado cria a imagem negativa do escravo negro na sociedade escravista. Essa imagem negativa passa a funcionar como multiplicador nos valores sociais que analisam e julgam o negro escravo. Esses mecanismos neuróticos do senhor de escravo procuram influir para neutralizar o dinamismo da quilombagem e se reproduzem durante todo o tempo do escravismo.

Finalmente, o Poder quilombola. O Poder da quilombagem era um poder intermitente, mas que se reestruturava e reproduzia-se historicamente: reelaborando traços de culturas africanas, usando a experiência vivida no sistema como escravos e elaborando táticas de defesa em face da violência imposta contra ele. Este poder tem pontos de contato que se entrecruzam, se encontram e se repetem no decorrer da experiência quilombola. Zumbi, Ambrósio, Preto Cosme e outros líderes quilombolas eram diferentes no espaço geográfico e histórico mas se articulam como um continuum de desgaste à escravidão.

Todos eles reelaboraram e uniram a herança cultural africana à experiência social adquirida no trabalho e com isto dinamizaram historicamente a quilombagem como processo de desgaste.

Este Poder paralelo que se fragmentava c era destruído periodicamente se recompunha e se reestruturava, organizava-se, sobrevivia, vencia, era perseguido e novamente se recompunha com as próprias contradições do sistema escravista e era um fator dinâmico de desgaste permanente à ordem escravista. É, por isto, um Poder político-social que se contrapõe ao outro. O Poder dos senhores de escravos. O seu poder militar embora muitas vezes combatido se rearticulava e na conclusão do processo foi aquela força que mais atuou e demonstrou eficiência. A quilombagem, por tudo isto, foi a força que desgastou, sem interrupção o Poder escravista, foi o único movimento que se contrapôs com eficiência social, cultural e militar à escravidão, mesmo ocasionalmente derrotado. O Poder da quilombagem por isto, nunca foi definitivamente destruído e só terminou quando terminou a escravidão.


Notas de rodapé:

(1) O liberto era distinto do ingênuo (o nascido livre). Se crioulo, isto é, brasileiro, a alforria elevava-o à condição de cidadão, se africano permanecia estrangeiro, podendo requerer naturalização. Mas a ambos eram limitados os direitos políticos (permitia-se apenas aos crioulos participar das eleições primárias), “vedadas as dignidade eclesiásticas, o acesso ao poder judiciário, o direito ao porte de armas e mesmo à livre locomoção noturna” (Oliveira, Maria Inês Côrtes: "O liberto: o seu mundo e os outros". Ed. Corrupio, SP. 1988. p 11) (retornar ao texto)

(2) A síndrome do medo era um conjunto de pensamentos do senhor de escravos que se baseava em fatos ou criado pelo imaginário do mesmo. Constituía nas horas-trabalho subtraídas pelo quilombola ao sistema + o valor do escravo fugido — as despejas com a captura (tomadia) — despesas com o escravo capturado e recolhido à cadeia (carceragem) — o pavor da violação sexual da mulher branca — o medo do envenenamento por parte do escravo + o medo de ser assassinado e o meco de “contaminação” do escravo produtivo pelo pensamento quilombola — o medo da magia e da “feitiçaria” praticadas pelas religiões dos escravos + o perigo das insurreições + o terror da vingança do escravo castigado ou açoitado etc = a síndrome do medo (Gramsci, a. — “Cartas do Cárcere" — Notas sobre a história das classes subalternas. 1934, p. 87) (retornar ao texto)

Inclusão 22/09/2019