Euclides da Cunha e a Realidade Nacional

Clóvis Moura

Agosto de 1955


Fonte: Fundamentos: revista de cultura moderna, ano VII, n. 38, p. 27-36, setembro-outubro de 1955. Disponível para acesso na Hemeroteca Digital - BN digital Brasil.

Transcrição: Vinícius Azevedo.

HTML: Lucas Schweppenstette.


No dia de hoje, em 1909, na casa número 214 da Estrada Real de Santa Cruz, Euclides da Cunha tombava morto. O que significou para nossa cultura o seu trágico e prematuro desaparecimento não cabe analisar aqui. Euclides, de todos os escritores que abordaram os nossos problemas no seu tempo, foi o que se preocupou até à tortura pelos destinos do país. Sua obra é rígida, séria, de pesquisa e de síntese, representa o que de mais honesto se produziu nos primeiros anos do século XX sobre os nossos principais problemas. Trazendo Euclides da Cunha um lastro de cultura dos mais completos e, simultaneamente, dos mais contraditórios para sua época, vindo das lutas republicanas das quais participou com desassombro enciclopédico, era quem estava destinado a nos traçar uma visão das mais realistas dos nossos problemas e aquele que mais se aproximaria de uma solução de fato condizente com as nossas tradições e nossa realidade. Profundamente preocupado em encontrar, através de uma análise científica da nossa história e dos nossos problemas, uma diretiva política acertada, tudo o que Euclides da Cunha produziu tem este aspecto: é uma tentativa honesta não apenas de abordar problemas, mas de procurar solucioná-los.

Queremos, por isso, inicialmente, dar uma visão sumária dos fatos mais importantes que antecederam o aparecimento dos seus primeiros trabalhos.

Fora proclamada a República. Mas, o regime republicano não trouxera, aos seus mais puros e fervorosos adeptos, aquele governo porque sonhavam. Sem descobrirem a mola que emperrava a República, não sabendo que sem às modificações profundas que estava exigindo a nossa estrutura econômica, não era possível a existência de um governo que satisfizesse os seus anseios e as necessidades do povo que tantas esperanças depositara na república, muitos republicanos caíram para uma descrença desabrida, outros para um inconformismo que se traduziria em pronunciamentos contra os Presidentes, o que os levaria, muitas vezes, a posições antagônicas às instituições republicanas recém-estabelecidas. Lopes Trovão declara não ser aquela a república dos seus sonhos. Silva Jardim afasta-se do País para morrer melancolicamente no Vesúvio. O próprio Euclides da Cunha – que havia passado possivelmente por um período de simpatia pelo anarquismo, pois colaborou na “Província de São Paulo”, abordando a questão social, com pseudônimo de Proudhon – exclamaria, desiludido, a Floriano: “não sou seu partidário; o Sr. defende a legalidade, eu estou com ela, apenas isto”... Os homens de latifúndio, do Partido Republicano Paulista e demais agremiações ligadas estreitamente aos donos de terras e grandes comerciantes e usurários, muitos dos quais haviam feito fortuna durante o tráfico de escravos, assumiam efetivamente a liderança e levariam André Rebouças a afirmar que fora inútil a substituição do governo monárquico por uma república presidencialista. Desalento absoluto…

Por outro lado, a classe operária trazia para o palco político as marcas de suas primeiras manifestações. Suas organizações se estruturavam pela primeira vez. Eram, quase sempre, associações de caráter beneficente ou de resistência, associações que tentariam, era 1892, realizar ura congresso convocado para a Capital do País. Dessa tentativa, porém, “restou, apenas, o noticiário nos jornais do tempo”. Eram iniciativas tímidas ainda, é verdade, mas significavam o aparecimento de uma nova forca política destinada a modificar radicalmente os métodos de se fazer política. Euclides sofreu, imediatamente, o impacto poderoso das novas ideias que nos chegavam com os movimentos operários e refletiam essa nova forca política, com ela se propaga e cresciam à medida que crescia sua organização. Sentindo que ondas novas se lançavam sobre uma ordem social que já não correspondia mais ao desenvolvimento das forças produtivas da sociedade (sentindo, apenas, convém grifar de momento para que se compreenda a análise subsequente que faremos do seu pensamento). Euclides da Cunha cedo foi atraído por essa nova corrente de luta, embora sem nunca ter sido ganho ideologicamente para as posições do socialismo científico, como pretendem alguns dos seus críticos. Em 1901 encontrava-se em São José do Rio Pardo, exercendo a profissão de engenheiro. Naquela cidade fundou-se uma associação operária: “Clube Internacional Filhos do Trabalho”. Euclides é encarregado de redigir o manifesto a ser lançado no primeiro de Maio daquele ano, quando seria fundada oficialmente a associação. O texto do documento, redigido pelo autor de “Os Sertões” é muito importante para quem estuda a evolução do seu pensamento.

Diz ele: “a data de 1º de Maio foi adotada para a comemoração do trabalho pelo Congresso Internacional Socialista de Paris no ano de 1889 e confirmada pelos Congressos de Bruxelas e Zurich, em 1891 e 1893. Festa exclusivamente popular, ela se destina a preparar o advento da mais nobre e fecunda das aspirações humanas: a reabilitação do proletário para a exata distribuição de justiça, cuja fórmula suprema consiste em dar a cada um o que cada um merece. Daí a abolição dos privilégios derivados quer da fortuna quer da força. Para este fim é mister promover a solidariedade entre todos os que formam a imensa maioria dos oprimidos, sobre que pesam as grandes injustiças das instituições e preconceitos sociais da atualidade, destinados a desaparecer para que reine a Paz e a felicidade entre os povos civilizados. Promovendo entre nós a comemoração de uma data tão notável, o”Clube Internacional Filhos do Trabalho” procura a vulgarização dos princípios essenciais do programa socialista, empenhando-se em difundi-los entre todas as classes sociais”. Segue-se ao manifesto o programa das comemorações que constava, entre outras coisas, da “inauguração do retrato do insigne mestre socialista Karl Marx, falando diversos oradores”.

Achamos muito importante para uma compreensão de como Euclides se interessava pelo problema social, o manifesto que transcrevemos na íntegra. Por ele vemos que Euclides da Cunha acompanhava atentamente o movimento operário, referindo-se aos congressos socialistas e via, por outro lado, o socialismo de Marx como o instrumento teórico de análise, interpretação e transformação social necessário à mudança da estrutura da sociedade capitalista ao ver nele um “insigne mestre”. Não vê, no entanto, a classe operária como o instrumento social capaz de possibilitar esta revolução, achando que essas ideias devem ser dirigidas “a todas as classes sociais” e não à classe operária fundamentalmente. Três anos após a redação do manifesto (em 1904) voltará a ocupar-se da questão social e o fará de modo surpreendente para a época. É, realmente, no seu artigo “Um Velho Problema”, que Euclides expõe sua posição em relação ao marxismo. Depois de uma análise dos utopistas da Renascença e dos socialistas utópicos, análise que demonstra sólida leitura, chega finalmente a Marx “pois foi, realmente, com este inflexível adversário de Proudhon que o socialismo científico começou a usar linguagem firme, compreensível e positiva”. E acentua: “A fonte única da produção e do seu corolário imediato, o valor, é o trabalho. Nem a terra, nem as máquinas, nem o capital, ainda coligados, as produzem sem o braço do operário. Daí uma conclusão irredutivel: a riqueza produzida deve pertencer aos que trabalham. E um conceito dedutível: o capital é uma expoliação”. Em seguida Euclides da Cunha pinta com tintas vigorosas e realistas a situação em que se encontra o operário na sociedade capitalista, “adstrito a salários escassos demais à sua subsistência”, para concluir: “Socialização dos meios de produção e circulação; posse individual somente dos objetos de uso”. Analisa depois aquilo que chama a heterodoxia socialista para concluir pela aceitação das posições dos socialistas “corretamente evolucionistas” que preconizavam a chegada ao socialismo através do “processo normal das reformas lentas, operando-se na consciência coletiva e refletindo-se a pouco e pouco na prática, nos costumes e na legislação escrita, continuamente melhoradas”. Isto, no entanto, não impedia que escrevesse, linhas abaixo, como sentindo necessidade de uma conclusão menos limitada à lógica reformista: “[...] as catástrofes sociais só podem provocá-las as próprias classes dominantes, as tímidas classes conservadoras, opondo-se à marcha das reformas – como a barreira contraposta a uma corrente tranquila pode gerar a inundação. Mesmo nesse caso, porém, a convulsão é transitória; é um entrechoque ferindo a barreira governamental”.

Estas citações, um pouco longas, são, no entanto, necessárias para um conhecimento mais profundo do pensamento de Euclides da Cunha. Precisamos analisar o seu instrumental de conhecimento, ver com que equipamento teórico tentou interpretar a nossa realidade. É este um objetivo preliminar para que possamos conhecê-lo melhor e saber porque sem ter chegado às posições do marxismo e sentindo a classe operária como composta de necessitados que precisavam de ajuda; sem ver nessa classe o instrumento social capaz de fazer as modificações na infraestrutura da sociedade, Euclides da Cunha tinha de cair, muitas vezes, para o pessimismo, ao ver a nossa realidade. Sua correspondência é um atestado do que afirmamos: “eu te diria escreve do grande desprezo que ando sentindo pelas coisas deste país. Nuns cavacos trágicos escalpelaríamos algumas dúzias de políticões, dando largo curso à nossa bílis de revolucionários”; ou então: “а opinião está envenenada; e quem quer que se abalance à luta desinteressada por uma ideia arrisca-se aos mais deprimentes conceitos”. Euclides também achava que a república proclamada não era a dos seus sonhos de moço da Escola Militar... mas, por outro lado, com um tablado teórico bebido em fontes que já se formavam na Europa para dar combate ao marxismo, batia-se em contradições insolúveis, tentando interpretar uma realidade com teorias que não satisfaziam nem à sua inteligência nem ao seu coração.

Isto dito, passemos agora a outra questão. Quais os autores que influenciaram Euclides e estruturaram seu pensamento, sua ideologia, no decorrer de sua formação e evolução intelectual?

Euclides da Cunha tem, como unidade metodológica, em todos os seus trabalhos, um evolucionismo spenceriano que, através dos tempos, vai se modificando à medida que se agregam ao seu conjunto de conhecimentos outras teorias correlatas que surgem paralelamente a Spencer. Mas, convém salientar, Euclides não era um spenceriano ortodoxo. Seu pensamento tinha outras concepções que se mesclavam, fundiam-se a esse evolucionismo metafísico, no qual as mudanças quantitativas nunca se transformavam em qualitativas e a evolução se processava por simples acréscimo. Agregado a ele vemos um antropogeografismo exagerado, bebido na escola de Ratzel certamente (o livro do alemão, “Antropogeografia”, apareceu na Europa em 1882 e a “Geografia Política” em 1897). A própria divisão do livro fundamental de Euclides da Cunha, “Os Sertões”, em três partes (sendo que duas fundamentalmente são o miolo da obra): “А Тегга”, “О Ноmеm” е “A Luta”, mostra sua predileção pelo estudo da evolução social através o estudo do meio físico. Encontraremos, como metodologia do livro, não apenas esta dupla face (spenceriana-antropogeográfica) mas, ainda, de modo correlato, um antropologismo bebido em Lapouge, Lombroso e outros antropólogos em voga. Suas teses centrais são tiradas das linhas mestras dessas teorias, todas elas passos de retrocesso no processo de desenvolvimento do pensamento social. Outro autor que o influenciou foi, sem dúvida, Augusto Comte, embora, no fim da vida, ache-o “um ideólogo capaz de esparceirar-se ao meio vesânico dos escolásticos sem distinção de nuances, em toda a linha agitada que vai de Roscelino a S. Tomás de Aquino”. Gumplowicz foi ainda outra figura que influenciou profundamente Euclides e, em 1903, escrevia em carta a Araripe Junior: “Sou um discípulo de Gumplowicz, aparadas todas as arestas duras daquele ferocíssimo gênio saxônico”, posição que, aliás, se reflete no “Os Sertões” quando o autor analise a formação étnica do sertanejo e vê uma pretensa luta de raças como fio condutor de tudo isso.

Escrevendo sobre um dos últimos trabalhos de Spencer em que o ideólogo do imperialismo inglês afirma que a civilização desemboca na barbárie, Euclides, ao refutá-lo, não deixa de comentar que este conceito é “um diluente às suas mais sólidas teorias”, achando que “o filósofo que se abalançou a traduzir o desdobramento evolutivo numa fórmula tão concisa quanto à fórmula analítica em que Lagrange fundiu toda a mecânica racional”, “acabou num lastimável desalento”. No seu livro “Contrastes e Confrontos”, composto de artigos escritos em várias épocas, podemos notar a influência poderosa que Spencer exerceu no pensamento de Euclides.

Mas, no fim da vida, após os estudos para a cadeira de Lógica, Euclides revela como sua formação ideológica não havia avançado muito em direção ao marxismo. Lamentando a situação do pensamento filosófico da época, dizia: “felizmente aí estão os Georges Dumas, Durkheim, Poincaré, e, na Áustria, o lúcido e genial Ernesto Mach – almas novas e claras, que nos reconciliam com a filosofia”. Encaminhava-se, como vemos, para a escola sociológica francesa e para o machismo.

Então, perguntar-se-á, por que Euclides, com uma formação ideológica tão cheia de contradições que oscilavam dentro dos quadros da ideologia reacionária, tendo escrito sobre o marxismo aquele artigo que citamos, assim mesmo para ficar nas posições de Vandevelde e Ferri, conseguiu escrever uma obra progressista, que chegou a aflorar muitas das soluções exatas para nossos problemas? Em outras palavras: como conseguiu esse escritor realizar uma obra que é um libelo acusatório contra os males que até hoje entravam o desenvolvimento econômico-social do Brasil? Através de que processo ideológico conseguiu Euclides da Cunha entrever os interesses das camadas e classes interessadas no nosso desenvolvimento se os seus métodos de análise não conduziam a nenhuma conclusão favorável a essas classes e camadas?

Euclides da Cunha teve, além de certas teorias que limitavam seu campo de visão analítico, oportunidade de conhecer, “in loco”, nossa realidade no que ela tem de mais contundente e doloroso. Entreabriu a cortina da região amazônica, viveu o drama doloroso de Canudos no próprio local, percorreu grande parte do nosso território estudando a nossa formação territorial, viu seringueiros e “caucheiros”, camponeses esmagados pelo latifúndio, políticos “republicanos” aproveitando-se da República para salvaguardar interesses mesquinhos, a seca esturricando os sertões ante o total descaso dos poderes públicos e todos estes acontecimentos marcaram – como em uma superfície de cera virgem – a sua sensibilidade. Daí a contradição flagrante entre a análise realista que faz de nossa realidade e as suas teorias. Quando enfoca a nossa formação etnológica, mesmo completamente envolvido em teorias que poderiam conduzi-lo a uma interpretação que afastasse definitivamente os fatores econômicos e sociais do seu papel no processo de evolução dos povos, Euclides escapa milagrosamente desse exclusivismo. É, então, na descrição de muitos dos nossos problemas que o seu gênio avulta. Abordando o problema das secas no Nordeste, das relações de produção semifeudais existentes na Amazônia, na análise das causas que formaram a luta de Canudos, no estudo de alguns dos nossos problemas mais agudos é que iremos encontrar a pujança de Euclides.

Aquelas teorias que, analisadas abstratamente, eram reacionárias, trouxeram, no entanto, para o Brasil – como é exemplo conhecido o caso do positivismo – uma visão mais arejada de ver as coisas e foram armas no processo das lutas abolicionistas e republicanas. O próprio Euclides da Cunha, com a acuidade que o caracteriza, pressentiu este fenômeno e escreveu que “as novas correntes, forças conjugadas de todos os princípios e de todas as escolas – do comtismo ortodoxo ao positivismo desafogado de Litré, das conclusões restritas de Darwin às generalizações ousadas de Spencer – o que nos trouxeram, de fato, não foram princípios abstratos, ou leis incompreensíveis à grande maioria, mas as grandes conquistas liberais do nosso século, e estas compondo-se com uma aspiração antiga e não encontrando entre nós arraigadas tradições monárquicas, removeram, naturalmente, sem ruído – no espaço de uma manhã – encontraram…” Análise mais coerente não é possível.

II

Vejamos agora, após essa análise inicial das posições teóricas de Euclides da Cunha, como abordava os nossos problemas.

Inicialmente, analisemos como ele via o imperialismo. Para isto, precisamos ver dois aspectos básicos do problema: 1) o grau de penetração imperialista no tempo de Euclides, e 2) qual o imperialismo que exercia predominância dentro do nosso país. De fato: sem delimitarmos inicialmente estes dois aspectos da questão, não podemos analisar justamente seu pensamento, pois assim o isolaríamos da conjuntura histórica, concreta, em que se manifestou. Isso, porém, nos levaria a uma análise mais profunda da realidade econômica e política da época, o que obviamente não é nossa intenção no momento. O que sabemos, no entanto, e podemos expressar “grosso modo” para a compreensão das linhas subsequentes, é que o capital inglês, de uma certa forma, ainda predominava, embora já sofrendo o atrito e o impacto do norte-americano que entrava na arena sul-americana com objetivos monopolísticos. Processava-se no país a luta entre os dois imperialismos. Talvez isso tenha levado Euclides a não ver o seu caráter monopolista porque, muitas vezes, embora escrevendo contra ele, deixava-se iludir por um ou outro “aspecto positivo” do imperialismo, não chegando a compreender o que se passava subrepticiamente no tecido social e político em consequência do seu aparecimento no palco da história.

Convém notar, contudo, fato de importância talvez decisiva para se compreender algumas das suas indecisões sobre o assunto que no tempo em que Euclides escreveu as páginas em que analisa a penetração imperialista em nosso país, o próprio pensamento marxista ainda não havia estabelecido uma análise científica sobre o fenômeno, novo no panorama político e econômico mundial. Somente em 1916 V. I. Lenin publicou sua obra clássica “Imperialismo, etapa superior do capitalismo”. Antes do aparecimento desse livro, as concepções gerais sobre o imperialismo não tinham, no seu conjunto, uma visão científica, estando no plano de análise dos J. A. Hobson e Hilferding. Faltava a Euclides, portanto, um conhecimento acertado sobre o verdadeiro caráter do imperialismo (como, aliás, a todos os que na época abordaram o assunto). Em consequência é possível ver-se, na obra de Euclides da Cunha, certas conceituações que para serem compreendidas têm de ser tomadas em consideração em relação ao tempo em que foram escritas. Euclides da Cunha teve de jogar apenas com o seu instinto e com o seu espírito analítico, muitas vezes alertando nosso povo contra as manobras expansionistas das nações imperialistas. Não tinha, no entanto, uma interpretação unitária do fenômeno, caindo muitas vezes para uma análise fragmentária, isolada do conjunto mundial, não penetrando na sua essência.

Euclides da Cunha acha que “a expansão imperialista das grandes potências é um fato de crescimento, o transbordar naturalíssimo de um excesso de vidas, e de uma sobra de riquezas em que a conquista dos povos se torna simples variantes da conquista de mercados”. Iludia-se, no entanto, com certas obras como as realizadas no Egito pelos ingleses ou em Cuba pelos norte-americanos e afirmava: “um tal objetivo basta a nobilitar as invasões modernas”. Euclides da Cunha deixava-se levar pelas informações tendenciosas que a imprensa do mundo inteiro distribuía na época sobre a “filantropia” dessas nações. E aprofundava ainda mais essa impressão falsamente otimista em relação aos benefícios do imperialismo no seu artigo “Temores Vãos” onde afirma, categoricamente, não ser a expansão ianque “uma conquista de territórios, ou a expansão geográfica à custa do esmagamento das nacionalidades fracas senão, numa esfera superior, o triunfo das atividades, o curso irresistível de um movimento industrial”.

Mas, se Euclides refere-se ao fato de forma que poderá parecer à primeira vista de aceitação do imperialismo, o fato é que aduz, em seguida, ao particularizar o caso brasileiro, que o perigo não é ianque, alemão ou italiano: é brasileiro. E mostra que está no nosso próprio povo a energia capaz de impedir quaisquer perigos porque, caso contrário traça então Euclides o quadro trágico: “veremos desdobrar-se um pecaminoso amor da novidade, que se demasia ao olvido das nossas tradições; o afrouxamento em que toda linha da fiscalização moral de uma opinião pública que se desorganiza dia a dia, e cada dia se torna mais inapta a conter e corrigir aos que a afrontam, que escandalizam e que triunfam; uma situação econômica inexplicavelmente abatida e tombada sobre as maiores e mais fecundas riquezas naturais; e por toda a parte os desfalecimentos das antigas virtudes do trabalho e perseverança que já foram, e ainda o serão, as melhores garantias do nosso destino”. E, num rasgo de otimismo nada utópico, mostra o que acontecerá se resistirmos: “firmar-se-á inevitavelmente uma harmonia salvadora entre os belos atributos da nossa гаçа е as fórmulas superiores da República, empanados num eclipse momentâneo; e desta mútua reação, deste equilíbrio dinâmico de sentimentos e de princípios, repontarão do mesmo passo as regenerações de um povo e de um regime”. É a mesma escala de raciocínio que Euclides usa em outro local, quando, após analisar as teorias do primeiro Roosevelt, fala daquilo que chama “espírito de paróquia” ou “patriotismo diferenciado” ao qual se opõe – segundo Euclides – o cosmopolitismo “essa espécie de regime colonial do espírito que transforma o filho de um país num emigrado virtual, vivendo, estéril, no ambiente fictício de uma civilização de empréstimo”. Entre o “patriotismo diferenciado” e o cosmopolitismo, Euclides sempre ficou com o primeiro, achando que deveríamos criar “um lúcido nacionalismo, em que o mínimo desquerer ao estrangeiro, que nos estende a sua mão experimentada, se harmonize com os máximos resguardos pela conservação dos atributos essenciais da nossa raça e dos traços definidores da nossa gens complexa, tão vacilantes, ou rarescentes na instabilidade de uma formação etnológica não ultimada e longa”. Era o Euclides que, embora sem compreender ainda teoricamente o imperialismo, já prefigurava medidas de defesa contra o seu avanço. A linha do seu pensamento nos demais trabalhos em que aborda o problema é a mesma.

Afirmava que precisávamos nos preparar para a luta pela salvaguarda de nossa independência da expansão “das raças fortes para o domínio”. Dizia: “para este conflito é que devemos preparar-nos, formulando todas as medidas, de caráter provisório embora, que nos permitam enfrentar sem temores as energias dominadoras da vida civilizada, aproveitando-as cautelosamente, sem abdicarmos a originalidade das nossas tendências, garantidoras exclusivas da nossa autonomia entre as nações”. E acrescentava: “Se não podemos engenhar medidas que nos salvaguardem, ou amparem nesta pressão formidável imposta pelo convívio necessário, civilizador e útil aos demais países, devemos pelo menos evitar as que de qualquer modo facilitem, ou estimulem, ou abram a mais estreita frincha à intervenção triunfante do estrangeiro na esfera superior dos nossos destinos”.

Pronunciamento mais claro não se podia esperar!

III

Outro dos problemas fundamentais do nosso país – o latifúndio – foi abordado por Euclides da Cunha. Como os demais assuntos que estudou temos de vê-lo através de um processo e de uma perspectiva histórica. De fato, nas principais obras de Euclides, principalmente em “Os Sertões” e “À Margem da História”, teve oportunidade de escrever sobre o problema da terra no Brasil, focalizando duas regiões importantíssimas no particular: o sertão da Bahia e o interior do Amazonas. Convém analisar, inicialmente, a forma como ele via o problema. Para qualquer pessoa que se familiarizou com a obra de Euclides, um aspecto salta aos olhos: ao referir-se ao problema da terra, sua visão é limitada pela sua especialidade de geógrafo. Vê na terra apenas seu aspecto geográfico, sua constituição, diluindo-se em frases ondulatórias, cheias de um cientificismo de naturalista unilateral. O problema da terra no plano das relações entre os homens (a questão agrária, para usarmos o termo consagrado) não se manifesta em primeiro plano na obra euclideana. Mesmo quando estuda a terra ligada aos fatos sociais apresenta, algumas vezes, o problema da maior ou menor fertilidade do solo, das secas, de maior ou menor quantidade de humos no terreno, etc., como os fatores que determinam a maior ou menor prosperidade e adiantamento das sociedades. Consequência, ainda, das teorias que abraçava, agravadas pela sua especialidade de geógrafo...

Mas, isto não significa que Euclides tenha ignorado o problema. Pelo contrário. No particular citaremos um fato curioso e importante, porém pouco observado: a evolução do pensamento de Euclides da Cunha em relação aos jagunços do Antônio Conselheiro ao tomar contato com a realidade de Canudos. Para isso devemos tomar o livro “Canudos” que reúne sua produção de correspondente do “Estado de São Paulo” na campanha. Inicialmente, o seu artigo, publicado antes de seguir para o teatro das operações, é todo entusiasmo, com um fim meio bombástico: “A República sairá triunfante desta última prova”. Ainda na capital baiana seus artigos são entusiastas, narram cenas de heroísmo dos soldados que regressam. Vão, no entanto, adquirindo tons mais sombrios à medida que Euclides chega ao local da revolta e toma contato com a realidade dolorosa dos sertanejos no sertão brasileiro, ante o desfilar macabro dos prisioneiros degolados impiedosamente pelas “tropas legais”; começa a ver e admirar o heroísmo dos jagunços, afirmando que “custa a compreender a energia soberana que os alevanta por tal modo acima das imposições mais rudes da matéria”; percorre as casas de Canudos, já nas mãos das tropas legais, e se estarrece ao ver a miséria em que vivem os nossos irmãos, descrevendo-a com a força que somente a revolta produz: “compreende-se que haja povos vivendo ainda, felizes e rudes nas anfractuosidades fundas das rochas; que o caraíba ferocíssimo e aventureiro, se agasalhe bem nas tubanas de paredes feitas de sebes entrelaçadas de trepadeiras agrestes e tetos de folhas de palmeiras ou caucásios nas suas burcas cobertas de couro – mas não se compreende a vida dentro dessas furnas sem ar, tendo por única abertura às vezes, a porta estreita da entrada e cobertos por um tecto maciço e impermeável de argila sobre folhas de icó!”. Em seguida, descreve a mobília que é, aliás, o mobiliário clássico das casas camponesas: “um banco grande e grosseiro (uma tábua sobre quatro pés não torneados); dois ou três banquinhos; redes de cruá; dois ou três baús de cedro de três palmos por dois. É toda a mobília. Não há camas; não há mesas, de modo geral…”. Finalmente, já em correspondência datada de 1º de outubro, confessa: “Sejamos justos – há alguma coisa de grande nessa coragem estoica e incoercível, no heroísmo soberano e forte dos nossos rudes patrícios transviados e cada vez mais acredito que a mais bela vitória, a conquista real consistirá no incorporá-los, amanhã, breve, definitivamente, à nossa existência política”.

Quão longe está este Euclides do articulista do “Estado de São Paulo”, quando ainda não tinha conhecimento da situação dos homens de Canudos…

Partindo desta nova posição é que irá escrever “Os Sertões”. E o livro, que seria uma apologia das “forças da república”, transformou-se na maior acusação do seu tempo contra a técnica de se resolverem as questões sociais à bala; tanto assim que alguns elementos do Exército viram no livro uma obra dissolvente pela crueza com que aborda certos fatos, passando a perseguir o autor.

Em consequência de haver Euclides aprofundado a análise social dos problemas da terra, afirma em “Os Sertões” que “em toda essa superfície de terras, que abusivas concessões de sesmarias subordinaram à posse de uma só família”, havia se formado no Brasil um “feudalismo tacanho”. Continuando em outro local a análise do problema agrário, afirma que “[...] o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes. Herdam velho vício histórico. Como os opulentos sesmeiros da Colônia, usufruem parasitariamente, as rendas das suas terras, sem divisas fixas”. Em outro trecho mostra como “os possuidores do solo de que são modelos clássicos os herdeiros de Antônio Guedes de Brito, eram ciosos dos seus dilatados latifúndios sem raízes, avassalando a terra. A custo toleravam a intervenção da própria metrópole”. Contrastando com esses latifundiários, via Euclides a massa camponesa: “anônimos – nascendo, vivendo e morrendo na mesma quadra de terra – perdidos nos arrastadores e mocambos; e cuidando a vida inteira fielmente de rebanhos que lhes não pertencem”. Por isso mesmo, com todas as deformações das “escolas” históricas e sociológicas já não podia descrever Antônio Conselheiro como o tipo do “criminoso nato” de Lombroso, mas como resultante do meio social: “da mesma forma que o geólogo – dirá Euclides – interpretando a inclinação e a orientação dos estratos truncados de antigas formações esboça o perfil de uma montanha existente, o historiador só pode avaliar a atitude daquele homem, que por si nada valeu, considerando a psicologia da sociedade que o criou” porque “as fases singulares de sua existência não são, talvez, períodos sucessivos de uma moléstia grave, mas são, com certeza, resumo abreviado dos aspectos preponderantes de mal social gravíssimo”. Daí, após ter se referido ao fato de oscilar a consciência de Antônio Conselheiro “em torno dessa posição média, expressa pela linha ideal que Maudaley lamenta não poder traçar entre o bom senso e a insânia”, conclui o seu magistral livro afirmando: “é que não existe um Maudaley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...”

Já com esta visão muito mais realista do problema da propriedade da terra, é que Euclides da Cunha irá para o Amazonas. A descrição que nos faz, das relações de produção imperantes naquela região, são das mais realistas e servem ainda para os nossos dias. Vejamos como se exprime: “O seringueiro, e não designamos o patrão opulento, se não o freguês jungido à gleba das ‘estradas’, o seringueiro realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se”. E, em seguida: “Vede esta conta da vida de um homem:

No próprio dia em que parte do Ceará, o seringueiro principia a dever: deve a passagem de proa até o Pará (35$000), e o dinheiro que recebeu para preparar-se (150$000). Depois vem a importância do transporte numa gaiola qualquer de Belém ao barracão longínquo a que se destina, e que é, na média, de 150$000. Aditem-se cerca de 800$000 para os seguintes utensílios invariáveis: um boião de furo, uma bacia, mil tigelinhas, uma machadinha de ferro, um machado, um terçado, um rifle (carabina Winchester) e duzentas balas, dois pratos, duas colheres, duas xícaras, duas panelas, uma cafeteira, dois carreteis de linha e um agulheiro”. E prossegue para a barraca, no centro, que o patrão lhe designará. Ainda é brabo, isto é, Euclides: “aí temos o nosso homem no barracão senhorial, antes de seguir ainda não aprendeu o corte da madeira e já deve 1:135$000”. Depois de acrescentar outras despesas indispensáveis ao seringueiro, Euclides mostra como, ao fim de um ano de trabalho, é ele “devedor e raro deixa de o ser” porque há ainda o contrato unilateral que lhe impõe o patrão expresso nos ‘Regulamentos’“, dos quais Euclides dá um resumo. Por exemplo:”a pesada multa de 100$000 comina-se a estes crimes abomináveis”: a) “fazer na árvore um corte inferior ao gume do machado”; b) “levantar o tampo da madeira na ocasião de ser cortada”; c) “sangrar com machadinhas de cabo maior que quatro palmos”. Além disso, continua Euclides, “o trabalhador só pode comprar no armazém do barracão, não podendo comprar a qualquer outra, sob pena de passar pela multa de 50% sobre a importância comprada”. Prossegue: “Fugir? Nem cuida em tal. Aterra-o o desmarcado da distância a percorrer. Buscar outro barracão? Há entre os patrões acordo de não aceitarem, uns os empregados dos outros, antes de saldadas as dívidas, e ainda há pouco tempo houve no Acre numerosa reunião para sistematizar-se essa aliança criando-se pesadas multas aos patrões recalcitrantes”. Isso fez Euclides ver “o renascer de um feudalismo acalcanhado e broncos” porque “não o ligam sequer (o seringueiro) à terra. Um artigo do famoso ‘Regulamento’ torna-o eterno hóspede dentro da própria casa. Citemo-lo com todo o brutesco de sua expressão imbecil e feroz: ’Todas as benfeitorias que o liquidado tiver feito nesta propriedade, perderá totalmente o direito uma vez que retirar-se”... E conclui Euclides o artigo antevendo reformas futuras muito profundas. “Dela (da resenha de arbitrariedades enumeradas por ele) resulta impressionadoramente a urgência de medidas que salvem a sociedade obscura e abandonada: uma lei do trabalho que nobilite o esforço do homem; uma justiça austera que lhe cerceie os desmandos; e uma forma qualquer de homestead que o conserve definitivamente à terra”. O que só se poderá conseguir, certamente, com a reforma agrária.

Estes são alguns dos aspectos do pensamento de Euclides da Cunha, traçados de modo sumário e resumido. Por tudo que escreveu e agiu foi um grande homem, grande no sentido que ele próprio imaginava: “o que apelidamos grande homem é sempre alguém que tem a ventura de transfigurar a fraqueza individual compondo-a com as forças infinitas da humanidade”...

S. Paulo, 15 de agosto de 1955.