Sobre o cinquentenário de “Os Sertões”

Clóvis Moura

1952


Fonte: Fundamentos: revista de cultura moderna, ano V, n. 28, p. 24-25, junho de 1952. Disponível para acesso na Hemeroteca Digital - BN digital Brasil.

Transcrição: Vinícius Azevedo.

HTML: Lucas Schweppenstette.


Precisamente há cinquenta anos surgia na arena editorial do país um livro escrito por um semi-obscuro engenheiro fluminense ocupado em S. José do Rio Pardo na construção de uma ponte e que, daí por diante, não mais sairia da cena literária do país. Abordando um tema dos mais complexos, tendo, além disso, um lastro intelectual eivado de contradições, sofrendo, inclusive, influências de autores estrangeiros que poderiam levar essa obra para um caminho reacionário, o livro se impôs de imediato, despertando a atenção e o entusiasmo não somente de intelectuais bem pensantes e especialistas do assunto, mas da opinião pública em geral, das camadas mais amplas do povo que veriam nele não apenas uma obra de erudição – por si só demonstrativa do estofo intelectual de escol do seu autor – mas uma arma poderosa de luta, um libelo acusatório contra nossos males sociais que, nas páginas vigorosas do livro, eram analisados com uma coragem ímpar entre os intelectuais do tempo. Essa obra chamava-se “Os Sertões” seu autor, Euclides da Cunha.

De fato: Euclides da Cunha vinha de uma ascendência teórica que não era das mais avançadas e progressistas para sua época. Espírito enciclopédico, inquieto, telúrico, abebeirou-se naquelas teorias que, vindas do exterior, eram mais difundidas e estavam em moda nos nossos meios intelectuais. Numa época em que o próprio socialismo utópico já havia sido desbancado pelo vigor e a justeza científica inabalável do marxismo, Burkle, Spencer, Lombroso, V. de le Blanche, Ratzel e Comte eram (pelo menos é o que se depreende das páginas de “Os Sertões”) seus autores de cabeceira e sob cuja influência, direta ou remota, gizou as linhas gerais do seu livro genial. Dividiu-o então em duas partes: “a terra e o homem” como recomendava, naquele tempo, a metodologia em moda da escola de Le Blanche. E mais: ao procurar estudar nossa formação antropológica Euclides da Cunha, muitas vezes, apanhado pela camisa-de-força daquelas teorias, tinha de reagir sobre elas para não cair em teses reacionárias, inteiramente desligadas da realidade histórica. Mas, sua visão genial, sua honestidade intelectual fê-lo guiar-se mais pela realidade histórica do sertão brasileiro do que pelas teorias livrescas aprendidas na época em que a desconhecia. Spencer, por quem Euclides teve durante determinado período admiração particular, era, naquela época, o ideólogo da burguesia imperialista que procurava explicar a política de rapina da Inglaterra através de uma teoria “evolucionista”, mas de um evolucionismo meramente quantitativo, metafísico, que negava os saltos qualitativos na evolução e que, no fundamental,

explicava o domínio dos povos “superiores” sobre os “inferiores” e a segregação racial. “Tinha as ideias burguesas do mercador inglês” (Lenin).

O próprio Comte era um retrocesso ideológico para sua época; sua teoria um broto da burguesia francesa, o centro de sua sociologia a negação da luta de classes ou sua atenuação, embora, no caso particular do Brasil, tenha o positivismo desempenhado papel progressista em algumas questões particulares.

Foi nesses autores que Euclides da Cunha travou os primeiros contados com a ciência social do seu tempo. Sob a influência deles escreve a sua obra fundamental. Aliás, o que surpreende é o conhecimento fabuloso que Euclides tinha desses autores, citando-os no livro. Até um sociólogo burguês de ressonância tão pequena como Sighele é citado. E, diga-se de passagem, não citado apenas à moda do Sr. Gilberto Freyre, mas do ponto de quem o estudou e assimilou o seu pensamento.

Como vemos, Euclides da Cunha conhecia o pensamento social do seu tempo de modo profundo e sistemático: desde as teorias mais reacionárias e que já surgiam na Europa convulsionada do século XIX para combater o socialismo de Marx que emergia com força avassaladora, até, posteriormente, o socialismo científico. E o conhecimento ulterior do pensamento de Marx levaria Euclides, algumas vezes, para as posições da classe operária não somente do ponto de vista teórico mas, também, prático. Euclides da Cunha chegou a redigir um manifesto socialista para uma organização operária em que reconhecia o socialismo marxista como a arma teórica capaz de libertar o proletariado das garras do capital escravizador. Mas esse conhecimento – ao que parece – só se verificaria após a publicação ou

pelo menos após a feitura de “Os Sertões” que veio à luz sem nenhuma influência do marxismo.

Como explicar-se, então, o sentido altamente progressista, ativo e corajoso, das páginas do livro? Como conseguir justificar essa contradição que existe entre seu tablado ideológico (pelo menos inicial) e as conclusões a que chegou, no livro e que estão em franca oposição às suas caras teorias?

Euclides da Cunha foi o autor que, em sua época, mais se aproximou de uma solução justa para os problemas brasileiros. Sua honestidade intelectual, a própria situação de escritor pobre, que sentia em suas carnes a realidade da inteligência nacional inteiramente desamparada, e, acima de tudo, a situação trágica do nosso interior, o latifúndio produzindo a miséria, a fome, a revolta, a massa camponesa sem terra, o descaso dos poderes públicos, tudo isso faria com que, ao se deparar com o drama impressionante de Canudos, em vez de procurar estudá-lo dentro de uma determinada teoria reacionária, dentro de uma redoma ideológica ou sobre uma torre de marfim covarde, equidistante, enluvado, procurou as causas daquela situação, acertando muitas vezes, errando outras, justamente por não dominar a teoria que, o colocaria do ponto de vista daqueles sofredores, daquela massa que fazia da luta religiosa uma luta social, um protesto contra o latifúndio e a situação bárbara de atraso em que vivia. “Estamos condenados à civilização”, dizia Euclides. E acrescentava: “Ou pregredimos ou desapareceremos”.

O progresso! Era sempre essa a perspectiva que Euclides tinha quando escrevia: o futuro. Suas palavras são sempre endereçadas aos dias que virão, não se adstringem ao cotidiano e, daí, muitas das suas visões o preocupa. Sua formação intelectual dera-lhe uma ampla visão da ciência geográfica, embora deformada pelas escolas fatalistas em voga que pretendiam ver no homem uma munificência geográfica, inteiramente esmagado pela força do meio físico. No sertão brasileiro, onde essa impressão facilmente domina os estudiosos, Euclides, depois de descrever exaustivamente a região e abordar o assunto com uma profundidade surpreendente, embora muitas vezes pecando em detalhes não por insuficiência de conhecimentos mas por influência das teorias que abraçava, procura solucionar o problema, não dando como fato consumado para todo o sempre o domínio da natureza sobre o homem.

Indica exemplos históricos em que o homem corrigiu “o vício original da região”. E sua visão de patriota antevê as consequências de planos para a fertilização do sertão: “Abarreirados os vales, inteligentemente escolhidos, em pontos pouco intervalados, por toda a extensão do território sertanejo, três consequências inevitáveis decorreriam: atenuar-se-iam de modo considerável a drenagem violenta do solo, e as suas consequências lastimáveis; formar-se-lhes-iam à ourela, inscritas na rede das derivações, fecundas áreas de cultura; e fixar-se-ia uma situação de equilíbrio para a instabilidade do clima, porque os numerosos açudes uniformemente distribuídos e constituindo dilatada superfície de vaporação, teriam, naturalmente, no correr dos tempos, a influência moderadora de um mar interior, de importância extrema”. E terminava: “O martírio do homem, ali, é o reflexo de tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da Vida...” Euclides, como se vê, não parava na descrição da miséria do nosso povo, mas procurava o remédio.

Imagine-se ele atualmente tendo notícias das grandes obras de reflorestamento e de conquista de regiões desertas realizadas na União Soviética, dos maravilhosos planos stalinianos de recuperação econômica de extensas áreas outrora desabitadas e hoje incorporadas ao jardim de Paz e trabalho da grande pátria socialista de Lenin.

Mas, voltemos ao nosso ponto inicial de análise: quão distante não se encontra esse Euclides que perquire as causas do nosso atraso e aponta soluções, do adepto das teorias reacionárias que surgiram no palco internacional como arma ideológica da burguesia exploradora...

O livro, em seu conjunto, é uma negação daquelas teorias. E é sobre esse conjunto positivo não só de sua obra geral como do seu livro que nasce sua popularidade, sua atualidade.

O problema da terra, no livro de Euclides, tem, em alguns pontos, um sentido muito abstrato. A terra se transforma, algumas vezes, em fórmulas um tanto escolásticas. Estuda mais a terra do ponto de vista do geógrafo ou do geólogo, subestimando o problema social, de propriedade. Mas, não esqueceu o problema. Estudando em “Os Sertões” a formação histórica de um trecho do nosso território Euclides refere-se aos latifundiários da Casa da Torre de Garcia D’Ávila. E diz: “Em toda esta superfície de terras que abusivas concessões de sesmarias subordinaram à posse de uma só família” estava a causa “da feição mais durável do nosso feudalismo tacanho”.

Essa caracterização de nossa estrutura social como feudal, tem particular importância para a época e, especialmente, para a obra de Euclides da Cunha. Num momento em que quase sempre ainda procurávamos esconder essa realidade, quando o porque-me-ufanismo dominava grosso-modo os principais pensadores em evidência, Euclides rasga decididamente as convenções e caracteriza lapidarmente nossa situação. É ele quem diz:

“[...] o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes. Herdam velho vício histórico. Como os opulentos sesmeiros da colônia, usufruem, parasitariamente, as rendas das suas terras, sem divisas fixas”.

O latifúndio, nosso “feudalismo tacanho” estava em frente de Euclides com seus sintomas por demais gritantes para que ele não o visse. E ele não podia deixar de execrá-lo com as diatribes do seu verbo de fogo. “Os possuidores do solo – dizia – de que são modelos clássicos os herdeiros de Antônio Guedes de Brito, eram ciosos dos dilatados latifúndios, sem raias, avassalando a terra. A custo toleravam a intervenção da própria metrópole”. Descrevendo a luta de Canudos estuda-a como uma consequência do atraso da região. Ao referir-se ao Conselheiro não o classifica como um “criminoso nato” da escola lombrosiana, mas como vítima das relações sociais do campo:

“Da mesma forma que o geólogo interpretando a inclinação e a orientação dos estratos truncados de antigas formações esboça o perfil de uma montanha extinta, o historiador só pode avaliar a atitude daquele homem, que por si nada valeu, considerando a psicologia da sociedade que o criou”.

Depois:

“[...] as fases singulares de sua existência não são, talvez, períodos sucessivos de uma moléstia grave, mas são, com certeza, resumo abreviado dos aspectos preponderantes de mal social gravíssimo”.

A diferenciação profunda de classes no campo, de um lado os “descendentes dos opulentos sesmeiros” na abastança, gozando “parasitariamente as rendas de suas terras” e de outro a massa camponesa, composta de “anônimos – nascendo, vivendo e morrendo na mesma quadra de terra – perdidos nos arrastadores e mocambos; e cuidando a vida inteira fielmente de rebanhos que lhes não pertencem” marcará profundamente o pensamento de Euclides da Cunha.

Outro aspecto positivo da obra euclidiana é a perspectiva em que se coloca frente aos dois grupos em luta em Canudos. Velho republicano, tendo sofrido, inclusive, as consequências de sua posição política, amigo e companheiro dos maiores vultos que fizeram a República, Euclides poderia deixar-se levar pelas aparências e, entre as duas facções em luta, colocar sua pena a serviço do governo, das “forças legais” que barbaramente esmagavam os revoltosos de Canudos, vítimas das mazelas de um sistema incapaz de satisfazer aos anseios de bem-estar social e econômico das massas populares. Já naquele tempo o governo de Prudente de Morais tinha por técnica resolver as questões sociais a bala: simples caso de polícia. Euclides, porém, cedo compreendeu a realidade da situação, as razões profundas do descontentamento do sertanejo manifestado através de uma forma religiosa e denunciou implacavelmente os desmandos e os assassínios praticados pelas “forças legais” contra aquela massa indefesa, vítima das condições injustas em que vivia. Não vacilou um momento. Desde a bestialidade de um Moreira César até à covardia de um Tamarindo estão nas páginas de “Os Sertões”. Jamais o vemos tergiversar, mentir ou sofisticar a verdade para colocar-se em posição simpática ao governo. Sempre o vemos, pelo contrário, descrevendo com um realismo digno e olímpico, a sanguinária técnica repressiva dos republicanos de Prudente de Morais... Seu livro não é um depoimento imparcial, é um libelo.

Desse conjunto de circunstâncias vemos emergir o conteúdo positivo do livro de Euclides. De um modo geral, a situação de atraso de nosso país, sua estrutura social arcaica, nossos males crônicos nele se encontram expostos, embora muitas vezes falseados por teorias das quais o autor com o tempo se libertaria.