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Após a morte de Karl Marx em 1883, coube a seu parceiro Friedrich Engels defender seu projeto conjunto de ideias, e, dessa forma, sua metodologia. Jovens e intelectuais atraídos pela perspectiva de ambos – assim como seus oponentes – suscitaram questionamentos acerca de sua “concepção materialista de História”, algo que Engels teve que pormenorizar. Frequentemente a questão era se ele e Marx seriam culpados de um “determinismo econômico” e, caso não fossem, o que constituiria uma evidência capaz de provar o contrário. Em diversas de suas respostas, Engels ofereceu o exemplo da análise que Marx proveu em seu O 18 de Brumário de Luís Bonaparte; o exemplo do golpe de Estado de Napoleão III em 1851 que levou ao fim da Segunda República Francesa.(2) Segundo Engels, o livro de Marx mostra como a acusação de determinismo econômico pode ser contradita mediante uma análise política concreta e detalhada, na qual desenvolvimentos econômicos serviriam, principalmente, como uma moldura e/ou plataforma explicativa.
Aqui eu gostaria de salientar uma outra análise, a que eles – sobretudo Marx – conduziram para ilustrar a aplicação de seu método. Trata-se, especificamente, de seus escritos sobre a Guerra Civil Americana. Suspeito de que Engels nunca tenha oferecido tal exemplo pois o que ali eles escreveram, diferente do caso d’O 18 de Brumário, era em grande medida inacessível àqueles que porventura se interessassem pelo material. No entanto, argumento que esses escritos são tão ricos (se não mais) quanto a análise marxiana da derrocada da Segunda República. E, diferentemente do que ocorre na época de Engels, eles estão disponíveis hoje de um modo que nunca estiveram antes – mesmo online.(3)
A evidência número 1 para meu argumento é a mensagem que Marx escreveu para Abraham Lincoln em novembro de 1864, em nome da Associação Internacional de Trabalhadores (International Workingmen’s Association ou IWA), parabenizando-o por sua reeleição:
Nós cumprimentamos o povo americano em ocasião da vitória por uma grande margem. Se a resistência ao poder dos escravistas foi a palavra de ordem moderada de vossa primeira eleição, o grito de guerra de vossa reeleição é: Morte à Escravidão. Desde o início da luta titânica que conduz a América, os operários da Europa sentem instintivamente que a sorte de sua classe depende da bandeira estrelada. A luta por territórios que inaugura a terrível epopeia não deveria decidir se a terra virgem de zonas imensas será fecundada pelo trabalho do imigrante, ou contaminada pelo chicote do feitor de escravos.
Quando uma oligarquia de 300 mil escravistas ousou, pela primeira vez na História do mundo, inscrever a palavra escravidão na bandeira da rebelião armada, no mesmo lugar onde, um século antes, a ideia de uma grande república democrática nascia ao mesmo tempo que a primeira declaração dos direitos do homem – que conjuntamente imprimiram um impulso inicial à revolução europeia do século XVIII, quando neste lugar a contrarrevolução se glorificava, com uma violência sistemática, de reverter “as ideias dominantes da época da formação da velha Constituição” e apresentava “a escravidão como uma instituição benéfica, quiçá a única solução ao grande problema das relações entre o trabalho e o capital”, proclamando cinicamente que o direito de propriedade sobre o homem representava a pedra angular do novo edifício –, então as classes operárias da Europa entenderam imediatamente, antes mesmo que o apoio fanático das classes dominantes europeias à oligarquia confederada houvesse lhes advertido, que a rebelião dos senhores de escravos havia soado o alerta geral da santa cruzada da propriedade contra o trabalho e que, para os homens do trabalho, o combate de gigantes travado do outro lado do Atlântico colocava em jogo não apenas suas esperanças no futuro, mas também suas conquistas do passado. Eis por que eles suportaram os sofrimentos que lhes foram impostos pela crise do algodão e se opuseram com vigor à intervenção em favor do escravismo, que estava sendo preparada pelas classes elevadas e “cultivadas” e, na maior parte da Europa, contribuíram com sua cota de sangue para a boa causa.
Enquanto os trabalhadores, o verdadeiro poder político do Norte, permitiram que a escravidão contaminasse a própria república, enquanto diante do negro, dominado e vendido sem ser consultado, se glorificavam por desfrutar do privilégio de ser livres para vender a si mesmos e escolher seus patrões [de pele branca], eles foram incapazes de combater em prol da verdadeira emancipação do trabalho ou de apoiar a luta emancipadora de seus irmãos europeus; essa barreira para o progresso, porém, foi levada com o mar escarlate da Guerra Civil.
Os operários da Europa estão convencidos de que, se a Guerra de Independência Americana inaugurou uma nova época de ascensão das classes burguesas, a guerra dos americanos contra a escravidão inaugurou uma nova época de ascensão da classe operária. Eles consideram o anúncio de uma nova era que a vida tenha designado Abraham Lincoln, o enérgico e corajoso filho da classe trabalhadora, para conduzir o seu país em uma luta sem igual pela libertação de uma raça acorrentada e pela reconstrução do mundo social.(4)
A carta de Marx, como buscarei demonstrar, distila de forma altamente concreta sua visão e a de seu parceiro, não só a respeito da Guerra em si, mas também da derrocada da escravidão e curso futuro da formação social estadunidense. Ela, igualmente, antecipa pronunciamentos mais célebres de Marx. O que segue abaixo são detalhes que exponho para dar suporte a tal argumento.
Para compreendermos a carta de Marx a Lincoln na íntegra, é necessário partirmos de um projeto mais amplo, iniciado pelo menos duas décadas antes dela. Este projeto, por sua vez, teve raízes na interpretação de Marx da realidade estadunidense, um dado em geral pouco levado em conta. Um breve panorama se segue.
A república ainda emergente ensinou ao jovem Marx, um democrata radical, que, mesmo no país mais politicamente democrático da Terra, a “emancipação humana” não estava garantida.(5) Um país sem um passado feudal, diferente dos da Europa, rapidamente se transformou, desde seu surgimento, em um país marcado por desigualdades sociais. Embora seus primeiros comentários sobre essa dimensão da realidade estadunidense – antes que chegasse a conclusões comunistas – não façam menção à escravidão em particular, aquilo que leu a respeito do país estava repleto de referências a essa ‘instituição peculiar’. Obviamente, a democracia política era insuficiente para a emancipação humana ou para a “soberania popular” – esta foi uma conclusão necessária para o caminho de Marx ao comunismo. Os Estados Unidos da América, em outras palavras, eram em grande medida uma obra inacabada.
O que explicaria aquela aparente contradição, a coexistência de desigualdades sociais e das formas políticas mais avançadas?(6) Diversos relatos sobre o país revelavam que a propriedade privada havia trazido a desigualdade social, e, no processo, imposto certos limites na democracia política. Tal descoberta estimulou a investigação subsequente de Marx – então acompanhado por seu novo parceiro, Friedrich Engels – da lógica por trás da propriedade privada, isto é, a economia política, a espinha dorsal da sociedade e o contexto para compreendermos a esfera política. Se relações de propriedade privada eram a chave para diagnosticar o problema, a solução residia na única classe que nutria interesse e capacidade de dar um fim à sociedade de classes em si – o proletariado. Portanto, qualquer coisa que ajudasse a adicionar às fileiras do proletariado, especificamente, a sobrepujar as formas pré-capitalistas como o feudalismo e a escravidão, seria de seu interesse. Somente com o advento do modo capitalista de produção surgiriam os elementos necessários, em nível humano e não-humano, para fazer da democracia – a “soberania do povo” – uma realidade pela primeira vez.
Armados de uma solução para o enigma, tão evidente no caso dos EUA, Marx e Engels começaram a ganhar trabalhadores para sua nova visão de mundo comunista. Justamente por causa do espaço democrático que existia nos EUA, alemães que se designavam comunistas foram capazes de agir ali mais abertamente do que na própria terra natal. Este fato levou Marx e Engels a sua primeira intervenção na política estadunidense em 1846, relativa à questão agrária, um problema indiretamente relacionado à escravidão. Os dois criticaram duramente um autointitulado comunista alemão por defender a propriedade privada de terras como uma panaceia para a classe trabalhadora ainda emergente. Ainda que reconhecessem a realidade peculiar dos EUA, onde o apelo pela propriedade de terra gozava de suporte compreensivelmente amplo – daí a popularidade do Free Soil Party(7) –, eles transmitiram um alerta contra tornar essa medida um fim em si. No melhor dos casos, ela seria um passo necessário em direção à criação de uma classe trabalhadora hereditária nos EUA. A emancipação da humanidade, eles argumentaram, sustentava-se nos ombros dos despossuídos, do proletariado moderno. Essa perspectiva a longo prazo acerca da classe trabalhadora estadunidense deu forma, dali para frente, à prática de Marx e Engels no que concerne à política nos EUA.
Marx ressaltou em 1847, em sua polêmica com Pierre-Joseph Proudhon, A Miséria da Filosofia, a importância da escravidão não somente para os EUA, mas para o capitalismo global:
A escravidão direta é, em grande medida, o pivô ao redor do qual nosso sistema industrial hoje roda, tão importante quanto o maquinário, o crédito etc. Sem a escravidão não haveria algodão; sem algodão não haveria a indústria moderna. Foi a escravidão que conferiu valor às colônias, foram as colônias que criaram o mercado global, e o mercado global é a condição necessária para a indústria mecanizada de grande escala. [...] Sem a escravidão, [os Estados Unidos] da América do Norte, o mais progressivo dos países, seria transformado em uma terra patriarcal. Expurgue a América do Norte do mapa-múndi e terá a anarquia – a completa decadência do comércio moderno e da civilização moderna. Faça a escravidão desaparecer e a terá expurgado do mapa das nações.(8)
Para apagar a impressão de que Marx estava provendo uma justificativa histórica para a escravidão, poucos meses antes ele ridicularizara Proudhon por tentar encontrar o “meio termo [...] entre escravidão e liberdade”.(9) E não deixou dúvidas de estar do lado da “liberdade”. No esboço do Manifesto Comunista, escrito por seu camarada Engels no mesmo ano, a diferença entre escravos e o proletariado foi esclarecida.
[o] último está situado em um estágio mais alto de desenvolvimento. O escravo se liberta ao se tornar proletário, abolindo, da totalidade de relações de propriedade, apenas a propriedade do escravismo. O proletário só pode ter liberdade ao abolir a propriedade [privada] em geral.(10)
A derrocada da escravidão seria o passo inicial para o pleno desenvolvimento do proletariado e, junto da instituição da democracia política, a pré-condição necessária para o conflito entre capital e trabalho, e, assim, o caminho para a revolução socialista e emancipação humana.
Com exceção de um comentário fugaz (embora criterioso) sobre negros,(11)virtualmente não há mais nada nos escritos de Marx e Engels do período que revele o que pensavam acerca da questão racial. Apenas com o irromper da Guerra Civil eles escreveriam, de forma consistente, sobre raça e escravidão nos EUA.
Após o término da onda revolucionária europeia de 1848 e 1849, e com a decorrente retração do espaço democrático, muitos alemães, veteranos daquelas lutas, imigraram para os EUA. O próprio Marx considerou fazê-lo por um breve período de tempo, especialmente porque lá, naquela altura, seria mais fácil fazer com que suas ideias fossem impressas – O 18 de Brumário de Luís Bonaparte sendo o exemplo mais notável disso(12) – em comparação com a Europa, e certamente com a Alemanha. As leis de censura dos Hohenzollern fizeram com que mais jornais em língua alemã fossem impressos nos EUA, local mais propício para Marx do que a própria Alemanha.
A lei de exílio foi alterada em função de debates políticos em curso naquele país, sobretudo a questão cada vez mais controversa do futuro do escravismo. Dos veteranos de 1848 imigrados para os EUA, nenhum foi tão importante para os partidários de Marx quantoJoseph Weydemeyer. Até sua morte em 1866, foi ele que mais colaborou com Marx e Engels no que dizia respeito aos desdobramentos dos eventos na América. Sua maior contribuição foi a de trazer clareza sobre a questão escravista para a classe trabalhadora teuto-americana. Empregando a “concepção materialista de História” de Marx e Engels, logo após sua chegada em Nova York em 1851, ele argumentou vigorosamente pela primeira organização e no primeiro jornal comunistas em solo americano – que ele mesmo ajudou a fundar –, que o avanço da classe trabalhadora dependia da derrocada da escravidão. Ao fazê-lo, contestou, conscientemente, a alegação daquela corrente política da classe trabalhadora teuto-americana que dizia: a abolição do trabalho assalariado é uma pauta imediata e a abolição da escravatura, um problema secundário.(13)
Sempre alertas para a revivificação do movimento revolucionário, Marx e Engels tomaram a peito dois eventos do final de 1859. Marx declarou – e Engels subscreveu – “que o mais importante evento em curso no mundo, hoje, é o movimento abolicionista – por um lado, na América com a morte de Brown, e, por outro lado, na Rússia”. Marx estava se referindo, é claro, à rebelião gorada do abolicionista John Brown em Harpers Ferry, Virginia, de poucos meses antes, a qual serviu de estímulo para pelo menos uma revolta de escravos no período subsequente. No tocante à Rússia, seus “escravos” (melhor dizendo, servos) estavam igualmente em marcha em prol da emancipação, como ele notara no ano anterior. Um ano mais tarde, em manobra para evitar uma nova revolta vinda de baixo, o Czar aboliu a servidão. Foi de enorme significado o fato de o movimento russo coincidir com o nosso nos EUA. Precisamente porque os primeiros enxergavam a luta de classes de uma perspectiva internacional, e deram maior ênfase para a conjuntura dessas lutas em diversos países do que para a de países isolados. A batalha contra a escravatura e outros modos pré-capitalistas de exploração seriam parte integrante da revolução democrática, além de um passo necessário dentro da luta trabalhista contra o capital. A rebelião de Brown dera mostras da profundidade da crise iminente dentro dos próprios EUA. Para a causa dos combatentes da antiescravidão, ela serviu de empurrão necessário, provendo-lhes com um mártir pela primeira vez. Os veteranos de 1848 reagiram, assim, da forma esperada.
Com Weydemeyer na liderança, os partidários de Marx desempenharam um papel ativo no avanço da causa antiescravista nesse momento tão crucial, especificamente, na nomeação e eleição de Abraham Lincoln para presidente. Ao lado de outro simpatizante dos partidários de Marx, Adolph Douai, Weydemeyer ajudou a mobilizar o suporte teuto-americano para a nominação de Lincoln para a plataforma do Partido Republicano. Embora um partido burguês, este foi fundado em 1854 em oposição à escravatura, e condizente com a perspectiva dos partidários de Marx de que a derrocada do sistema escravista seria um pré-requisito para a hegemonia da classe trabalhadora. Com teuto-americanos no partido (os mais ardentes opositores da escravidão), Weydemeyer e Douai se viram na função de assegurar um posicionamento antiescravista mais rigoroso durante a eleição presidencial que se avizinhava, nomeando um candidato disposto a sustentar tal ponto de vista. A consequência deste processo foi expressa no jornal de Weydemeyer, que julgou a plataforma como “algo nem tão radical, um pouco tépido”, e que, no entanto, “satisfaz, de modo geral, as demandas que lhe fazemos”. Ele cria que Lincoln fosse “a escolha da ala conservadora dentro da Convenção Republicana”, mas jurou lhe dar suporte como “o menor de dois males”’.(14) Como Marx explicou para um partidário na Europa, “desta vez parece haver um bom motivo para nutrir esperanças de que a vitória [...] será do Partido Republicano”.(15)
Weydemeyer e Douai, por sua vez, se lançaram na campanha de eleição de Lincoln. Em diversos distritos, o voto teuto-americano foi decisivo, em partes por seus esforços. Com a vitória de Lincoln, a escravocracia imediatamente começou a dar passos rumo à secessão. Como Engels escreveu a Marx no início de janeiro de 1861:
Na América do Norte as coisas estão [...] esquentando. A situação dos escravos certamente será péssima caso os sulistas entrem em um jogo arriscado [...] que possa resultar em uma conflagração generalizada. Seja lá como for [...] a escravidão parece estar rapidamente se aproximando do fim [...].(16)
Apesar de a História ter provado que a previsão de Engels foi correta, estava longe de ser certo naquele momento que o presidente eleito se levantaria contra os proprietários de escravos. Evidentemente, incerteza foi o sentimento com que atuou o milieu de partidários de Marx mais próximos à campanha de Lincoln. Três dias após a eleição, Douai escreveu em seu jornal que aqueles que fizeram a campanha de Lincoln mas não eram, como ele próprio, membros do Partido Republicano, tinham a ‘tarefa especial de garantir que aquilo que foi alcançado com a nossa ajuda não seja desfeito, mas continue a ser construído; e se elementos reacionários do Partido da Reação [o Partido Democrata] pretenderem fazê-lo, devemos servir de contrapeso contra eles e avançar para obter ainda mais concessões.’(17) A missão agora era ser vigilante e não tomar por pressuposto que a eleição necessariamente havia resolvido qualquer coisa. Em edições subsequentes [do jornal], ele concluiu que a batalha então, como Engels assumira, era uma batalha em prol da completa abolição da escravatura. Argumentou também que o ‘escravo tem, em todo caso, o direito, e, em certas condições, mesmo o dever de se libertar da escravidão da forma como lhe for possível’(18) ou, como Malcolm X diria quase um século mais tarde, tratava-se da libertação by any means necessary [por todos os meios necessários]. Esta foi, certamente, uma postura muito além da que o presidente eleito entendia ser a de seu mandato. Ainda assim, foi a que Engels acertadamente previu ser a que Lincoln tomaria.
Com o ataque da escravocracia no Forte Sumter, Carolina do Sul, em abril de 1861, a ‘conflagração generalizada’ prevista por Engels teve início. Mais uma vez, os partidários de Marx tomariam posição ao lado dos demais combatentes da classe trabalhadora. ‘Quando a Guerra
começou com aquela ofensiva […] a maioria de seus membros havia se alistado nas forças da União. O Clube Comunista de Nova York [New York Communist Club] não realizou encontros por todo o período da guerra já que a maioria de seus membros havia se juntado ao exército da União’(19) O mais importante dos partidários de Marx a alistar-se foi Weydemeyer.
Com o irromper da Guerra Civil, Marx e Engels doaram sua completa atenção a cada detalhe do evento. Para Marx, isso significou adiar o processo de finalização d’O Capital – tamanho lhe foi o significado da Guerra. Para ambos, o cerne da questão era, mais uma vez, a questão escravista. Marx provou ser mais perspicaz ao prever, acertadamente, o curso geral dos eventos dentro de uma semana antes do início das ofensivas: “Não pode haver dúvidas de que, na fase inicial do conflito, a balança penderá a favor do Sul, onde uma classe de aventureiros brancos sem propriedade provê uma fonte inesgotável de milícia marcial. A longo prazo, é evidente, o Norte sairá vitorioso, já que, se a necessidade surgir, ele terá uma última carta na manga, carta no formato de uma revolução de escravos.”(20) O ponto de vista de Marx – de que os escravizados seriam um fator decisivo dentro da Guerra – se provou verdadeiro. Seu otimismo lhe renderia bons resultados, já que o Sul, de fato, obteve sucesso inicialmente, levando muitos apoiadores da União a prognósticos pessimistas. Embora Engels também estivesse esperançoso no início em função da vantagem populacional do Norte, em seguida começou a nutrir certas dúvidas sobre o desenrolar dos eventos, como veremos depois.
Como Marx formulou, defender a causa nortista na Europa, onde as classes dominantes e seus governos, na Grã-Bretanha e na França, simpatizavam com os escravocratas, requereria uma “luta dentro da imprensa”, especificamente, a mobilização da opinião da classe trabalhadora europeia em seu prol. Isso implicava ter que ler sobre a História dos EUA freneticamente, sobretudo porque sua audiência incluía, por cerca de todo o primeiro ano da Guerra, os leitores do New-York Daily Tribune, e, entre eles, ninguém menos que o próprio Lincoln. Com sua perspectiva do materialismo histórico, ele foi capaz de discernir a “fórmula geral” da política de seu país desde a fundação. Assim como na “política interna, na política externa, os Estados Unidos sempre tiveram o interesse de proprietários de escravos como sua estrela-guia”. Especificamente, os esforços para adquirir Cuba, as “incansáveis expedições piratas de criminosos contra as nações da América Central”, além da conquista do norte do México foram, todas elas, o “propósito manifesto [...] da conquista de um novo território para que a escravidão e o domínio dos escravagistas se espalhassem”.(21)
Marx tratou de outra dimensão da escravocracia (bastante significante): sua relação com os “chamados brancos pobres” no Sul. Já que havia “milhões” deles – seu número “cresce sem parar em virtude da concentração de propriedade de terra, cujas condições só podem ser comparadas à dos plebeus romanos na época do declínio iminente de Roma” – como poderiam ser controlados, dado o número relativamente baixo de proprietários de escravos, em uma “tênue oligarquia”? Para tal, ele deu uma resposta: “Somente mediante a aquisição e a perspectiva de aquisição de novos territórios, assim como por meio de expedições criminosas, é possível balancear os interesses desses ‘brancos pobres’ com os dos escravistas, dando à sanha turbulenta dos primeiros um direcionamento inofensivo para os últimos: a de que todos eles, quiçá, poderão um dia se tornar proprietários de escravos”. Marx tinha em mente, é claro, a incorporação forçada do norte do México ao território dos EUA.
Portanto, a mesma lógica que levara proprietários de escravos a estenderem seu modo de produção em âmbito regional os levaria a fazê-lo em âmbito nacional. Desta feita, Marx concluiu,
A atual batalha entre Sul e Norte [...] não é nada além de uma batalha entre dois sistemas sociais, o sistema da escravidão e o sistema do trabalho livre. Já que ambos os sistemas não podem mais conviver pacificamente no continente norte-americano, a luta foi instaurada. Ela só poderá terminar com a vitória de um desses sistemas.(22)
Mais do que qualquer outra asserção, foi esta a que deu forma a todos os juízos de Marx sobre a Guerra, seu curso e suas consequências. Ela traz o reconhecimento de que o Norte, independentemente de como a administração de Lincoln explicava ou via suas próprias ações, estava objetivamente em busca de uma guerra em prol da derrocada da escravidão, “a raiz de todo o mal. [...] Os eventos em si os arrastarão para a promulgação de uma questão decisiva: a emancipação dos escravos.” Salta às vistas um dos elementos-chave dentro do método de Marx e Engels, a saber, a hipótese de que um dado processo sócio-histórico é passível de ter uma realidade, independentemente de como os protagonistas compreendem o próprio papel nele. Neste exemplo particular, os termos qualificadores “poderá” ou “possivelmente” são apropriados. Em certo estágio, o qual veremos em breve, tornou-se decisivo que Lincoln adquirisse consciência dos fatos. A escravocracia, Marx declarou, era muito mais consciente de sua missão do que Lincoln, em um primeiro momento. Marx sabia que para obter sucesso, a consciência de Lincoln teria que se inteirar da realidade.
Há duas questões bastante importantes levantadas por Marx em seus argumentos que nos cabe abordar neste momento. Uma delas diz respeito ao problema de raça, classe e cor. Pela primeira vez, ao menos no tocante ao contexto estadunidense, Marx abordou essa questão tão delicada, ainda que o tenha feito mediante uns poucos – porém prenhes – comentários. A respeito da subjugação dos brancos sulistas (os que não possuíam escravos) ao sistema da escravocracia, ele escreveu: “Já durante os anos de 1856 a 1860, porta-vozes políticos, juristas, moralizadores e teólogos do partido escravocrata tentaram dar provas não apenas de que a escravidão negra seria justificada, mas de que a cor é um detalhe insignificante, e que toda a classe trabalhadora, em toda a parte, nasce para a escravidão.” Então, três parágrafos adiante, no que concerne ao princípio escravocratas de estender seus sistema para o Norte, escreveu: “Nos estados nortistas, onde a escravidão negra é, de modo geral, impraticável, a classe trabalhadora branca seria rebaixada gradualmente à condição de hilotas [isto é, dos escravos de Esparta]. Isso corresponderia por completo ao princípio proclamado em alto e bom som de que apenas certas raças são aptas à liberdade, e como o trabalho atual no Sul é o fardo do negro, no Norte ele seria o fardo do alemão e do irlandês, ou de sua descendência direta.”(23)
Os dois comentários são bastante instrutivos. Eles abrem uma porta para o pensamento marxiano e abordam o nexo entre raça e classe, revelando ideias que antecipam pronunciamentos subsequentes mais conhecidos. Ambos revelam a perspectiva de Marx de que a exploração laboral, ou subordinação de classes, tinha sua própria lógica e, ao menos no cenário estadunidense, possuíam uma determinação ontológica independe de distinções de raça/cor. Dessa forma, aos exploradores seria fundamentalmente indiferente a raça e a cor daqueles que exploravam.
O segundo comentário reconhece que, em dados cenários (novamente no caso dos EUA), alegações acerca da superioridade e inferioridade racial poderiam facilitar o processo de exploração. Com base nessas alegações, alguns estratos da sociedade potencialmente explorados seriam mais vulneráveis do que outros. Na realidade histórica particular da América na metade do século XIX, operários imigrados da Alemanha e da Irlanda estariam apenas um nível acima dos negros na hierarquia racial. Mais uma vez, devido à lógica da exploração laboral, trabalhadores de pele “branca” bastariam caso os de pele “negra” não estivessem disponíveis. Note que Marx empregava o termo “raça” para se referir tanto a cor quanto a origens nacionais. Isso, sem dúvidas, refletia dois empregos distintos de conceitos na Europa falante de alemão e nos EUA. Porém, por mais que a raça, seja lá como fosse designada, facilitasse o processo de subordinação de classes, era a lógica desta última que emoldurava a noção de raça e seus usos. Ademais, enquanto a escravidão durasse no Sul, todos os trabalhadores, independentemente de sua cor ou localização, estariam vulneráveis à escravização. É incerto se Marx realmente acreditava que a escravocracia poderia impor seu sistema no Norte. Supostamente, sua perspectiva histórico-materialista sugere o contrário. Contudo, justo pelo fato de seu método não dar margem para inevitabilidades históricas, uma batalha tinha de ser conduzida para que se evitasse um tal resultado. O que ele escreveu, assim, pode ter sido apenas por este motivo – a ‘luta dentro da imprensa’.
A segunda problemática notável nos três artigos de Marx remete ao México. No Tribune, ele comentou o modo como os escravocratas foram capazes de manter a hegemonia no Sul. Eles o fizeram “na medida em que jogavam, constantemente, para os plebeus brancos a isca de conquistas dentro e fora das fronteiras dos Estados Unidos”. No primeiro dos dois artigos para o diário liberal vienense, Die Presse, ele argumentou, como supracitado, que essa estratégia fora elaborada para convencer os “brancos pobres” de que dispunham dos mesmos interesses que os proprietários de escravos. Quanto às “conquistas […] dentro das fronteiras”, Marx claramente se referia à expropriação, por parte do governo de Washington, do norte do México em 1845-6. Uma vez que a escravocracia “exigia uma formação continua de novos estados escravistas” (por razões já discutidas), “a conquista de territórios estrangeiros, como o caso do Texas”, seria o meio de atingir esse objetivo. A anexação ilegal do Texas em 1845, na condição de um estado escravista, revelava as verdadeiras intenções do governo federal em Washington, precipitando a guerra com o México um ano mais tarde, a tal Guerra México-Americana. Então, mais tarde, como consequência do Ato Kansas-Nebraska de 1854, mais uma conquista territorial, dos atuais Novo México e Arizona, foi vertida em território escravista. “[...] Em 1859, o Novo México [era desta forma que os dois estados juntos eram conhecidos] criou um Código legislativo escravista que rivaliza em termos de barbarismo com os livros da lei do Texas e do Alabama”. Porém, por que havia tão poucos escravos no território, “bastou que o Sul enviasse ao outro lado da fronteira um punhado de aventureiros com uns tantos escravos para que obtivesse uma aparência de representação popular — e isso com ajuda do governo central de Washington, seus funcionários públicos e mercadores do Novo México —; assim foi imposta a escravidão no território e, com ela, a hegemonia dos escravistas”. Essencialmente, tal conquista constituiu “o alastramento armado da escravidão no México”.(24)
Tanto o tom quanto o espírito com que Marx escreveu a respeito da conquista do norte do México faz um claro contraponto com o que Engels dissera mais de uma década antes. Na mesma veia com que aplaudiu, em 1848, o imperialismo francês na Argélia, Engels escreveu sobre a expropriação do México por Washington com aprovação. O governo teria avançado, ele argumentou, os interesses da burguesia tornando possível a “criação de capital fresco, isto é, trazendo à vida um novo burguês e enriquecendo aqueles já existentes”.(25) A conquista do norte do México teria sido, portanto, “conduzida completa e unicamente em prol dos interesses da civilização”, particularmente porque os “enérgicos ianques” – em contraposição aos “mexicanos preguiçosos” – levariam à “rápida exploração das minas de ouro da Califórnia”, dando ao comércio mundial, pela “terceira vez na História, uma nova direção”.(26) Embora fossem essas as opiniões de Engels, nada sugere que as de Marx diferissem delas naquela época. Ainda em 1853, este estava expressando pontos de vistas semelhantes acerca do imperialismo britânico na Índia.(27) Esses pontos de vista tomaram forma mais em função da perspectiva histórico-materialista recém-surgida, e menos em função do terreno empírico concreto. Uma leitura mais atenta da realidade americana revelaria algo bastante distinto. Mais do que a burguesia, a escravocracia foi aquela servida pela conquista em questão, impedindo, portanto, a plena instituição de relações de produção capitalista nas posses adquiridas e, dessa forma, o crescimento da classe trabalhadora. Em outras palavras, os benefícios vindos com a aquisição da Califórnia foram comprometidos pela “barbárie” do alastramento da escravidão. Marx, portanto, assim como Engels em relação à Argélia, alterou sua posição em relação ao México; e fez o mesmo em relação à Índia.(28)
Esse argumento ganha mais credibilidade pelos comentários e pronunciamentos feitos subsequentemente sobre o México. Por exemplo, Marx relatou favoravelmente, em dezembro de 1861, que o México havia se recusado em 1845 a se encontrar com um emissário de Washington para discutir a venda de seus territórios ao Norte.(29) Em 1848 ou 1849, ele, assim como Engels, teria visto a recusa mexicana de forma desfavorável – como um obstáculo para a missão civilizadora da burguesia estadunidense. É intrigante que, no mesmo mês, Engels, em um comentário passageiro, explicasse a Guerra México-Americana como uma em que “o México [estava] se defendendo”. É difícil imaginar que teria empregado uma tal linguagem em 1849. Então, em 1862, quando Luís Bonaparte tentou angariar vantagens da preocupação do governo de Washington com a Confederação, empreendendo uma empreitada imperialista no México – e isso com apoio inglês e espanhol –, Marx saiu em defesa do país e de seu novíssimo governo liberal liderado por Benito Juárez. A intervenção, ele disse aos leitores do Tribune, foi “um dos empreendimentos mais monstruosos já registrados nos anais da história internacional”.(30) Quando as forças bonapartistas começaram a sofrer represálias por parte dos mexicanos, ele exclamou para Engels: “se apenas os mexicanos (les derniers des hommes! [os mais despossuídos dos homens!]) voltassem a se sair melhor que os melhores dos crapauds [generais de Bonaparte]!’(31) O sucesso dos afamados “mais despossuídos dos homens” excitou Marx. Sua alegria diz muito no que toca ao distanciamento que se instalou entre ele e Engels desde a aplicação inicial de sua perspectiva teórica.
Apesar de o otimismo de Marx relativo ao curso da Guerra ter se confirmado eventualmente, a hesitação de Lincoln para realizar o que sabia ser seu dever – iniciar uma “revolução de escravos” – causou irritação no decorrer do processo. Os esforços de Lincoln para acalmar os interesses de escravocratas nos estados que não se juntaram à Confederação levaram-no a evadir a questão da abolição pelos dezesseis meses iniciais da Guerra. Marx forneceu uma explicação: “Lincoln, de acordo com a tradição legislativa, nutria aversão por toda a genialidade, apoiando-se a cada letra da Constituição e desprezando cada passo que pudesse desconcertar os escravocratas ‘leais’ dos estados limítrofes [entre Norte e Sul]”.(32)
Marx, porém, continuou a criticar Lincoln por tal postura. Particularmente repugnante lhe foi a medida segundo a qual “nenhum general [da União] poderia ousar pôr um batalhão de negros no campo de batalha”, de forma que a escravidão deixou de ser o “calcanhar de Aquiles do Sul” para se transformar “em uma dura couraça”. Graças aos escravos, que realizavam todo o trabalho produtivo, “todos os homens em boas condições físicas podem ser enviados ao campo de batalha!”. Mais uma vez, para Marx a chave para a vitória era uma “revolução de escravos”, a necessidade de o Norte perseguir um “tipo revolucionário de guerrilha e inscrever o slogan de batalha da ‘Abolição da Escravatura!’ sobre a bandeira estrelada”. Ao armar os negros, fossem livres, fugidos ou escravos capturados, despojaria o Sul de sua habilidade de levar a guerra adiante. Lincoln “se equivoca ao imaginar que os ‘leais’ senhores de escravos serão convencidos por discursos benevolentes e argumentos racionais. Eles apenas cederão mediante o uso da força.”(33) Em uma carta para Engels, escrita, aparentemente, à véspera do artigo do Die Presse, ele argumenta que assim o Norte se sentiria compelido a “travar a guerra da forma mais grave, recorrendo a métodos revolucionários e derrubando a supremacia dos estadistas escravocratas da fronteira. Um único regimento de pretos [niggers] exerceria um efeito notável sobre os nervos sulistas”.(34) Assim como Marx, Frederick Douglass “repetidamente sugeriu que armassem os escravos, insistindo desde o início: ‘O negro é a chave da situação – o ponto em torno do qual toda a rebelião se volta’”.(35)
No verão de 1862, Marx se tornou mais esperançoso em relação a Lincoln. Um dos passos à frente tomado pelo presidente foi o reconhecimento, por parte do governo federal de Washington, pela primeira vez, do governo do Haiti, cujas raízes podiam ser retraçadas até uma revolta de escravizados bem-sucedida. Assim, ele estaria viabilizando a tão esperada esperança dos abolicionistas. Mas, ainda mais significante foi “outra lei, que agora está sendo efetivada pela primeira vez, [que] permite aos negros emancipados se organizarem militarmente e ser postos no campo de batalha contra o Sul”. O Norte finalmente começara a usar “a última carta na manga”. Com base nesta e em demais legislações, Marx concluiu que “seja qual for o destino da guerra, já se pode afirmar com segurança que a escravidão negra não sobreviverá por muito tempo a esta Guerra Civil”.(36)
Quando Lincoln publicou sua Proclamação de Emancipação, menos de dois meses depois, – dizendo que “a partir de 1º. de janeiro de 1863, abole-se a escravidão na Confederação” – Marx, sem dúvida, sentiu seu otimismo ratificado. Embora não houvesse modo de Marx saber disto, a lógica por detrás dela, como Lincoln explicou ao seu gabinete em julho, era estranhamente parecida com o que ele próprio argumentara em seu artigo de agosto para o Die Presse. A “emancipação”, disse o presidente, tornara-se uma necessidade militar, absolutamente essencial para a preservação da União. [...] Devemos libertar os escravos ou seremos, nós próprios, subjugados. Os escravos são indubitavelmente um elemento de força para aqueles que os têm a seu serviço, e devemos decidir se tal elemento estará conosco ou contra nós. [...] Medidas decisivas e extensivas devem ser adotadas. [...] Queremos que o exército ataque com golpes mais vigorosos. A Administração deve dar exemplo, e atacar no coração da rebelião.(37)
Era como se Lincoln antecipasse e atendesse o conselho de Marx relativo à necessidade por “um tipo revolucionário de guerrilha” e de como lidar com a escravocracia: “Eles apenas cederão mediante o uso da força”.
A Proclamação, Marx declarou, foi “ainda mais importante” do que a recente vitória dos unionistas em Antietam, Maryland –; ela teria sido “o documento mais importante na História estadunidense desde o estabelecimento da União, [cuja atuação era] equivalente a rasgar a antiga Constituição Americana”. A previsão de que “o lugar de Lincoln na História dos Estados Unidos e da humanidade será ao lado do de Washington” mostrou ser correta. Da perspectiva de um materialista histórico, Lincoln era uma “personagem sui generis” nos anais da História: ele “não é o rebento de uma revolução popular. Esse plebeu [...], pessoa mediana de boa vontade, foi levado ao topo por meio da interação de forças do sufrágio universal sem noção da grandeza das questões que estavam em jogo”.
Então Marx outorga o mais alto cumprimento de sua vida aos EUA: “Nunca o Novo Mundo alcançou maior vitória do que quando provou que, com organização política e social, bastam naturezas medianas com boa vontade para a realização daquilo que, no Velho Mundo, exigiria heróis!”.(38) As relações sociais superiores, combinadas com arranjos institucionais particulares (isto é, com o sistema eleitoral), fizeram aflorar, em outras palavras, o melhor de Lincoln. O método de Marx certamente lhe permitiu compreender mais cedo as tarefas revolucionárias que Lincoln tinha diante de si, se não melhor do que o próprio presidente.(39)
Apesar da Proclamação da Emancipação, o parceiro de Marx permaneceu cético em suas conjeturas sobre o Norte. O pessimismo de Engels faz bastante contraste com o otimismo de Marx. Suas diferentes avaliações constituem o único desacordo político documentado e duradouro entre os dois, o qual durou mais de dois anos. Particularmente incômodo para Engels foi a aparente falta de decisão do Norte frente ao Sul na tomada de medidas necessárias para se livrar de uma vez por todas dos escravagistas. Embora reconhecesse as preocupações de Engels, Marx respondeu: “estou preparado para apostar minha vida que esses colegas [a Confederação] se sairão mal, apesar de Stonewall Jackson”.(40) Marx respondeu a detalhes específicos das queixas de Engels, incluindo sua já discutida solução para a questão da escravidão. Ele também o repreendeu em mais de uma ocasião: “Parece-me que você se deixa influenciar um pouco demais pelo aspecto militar das coisas”.(41) E algumas semanas depois, “os eventos ali [nos Estados Unidos] são do tipo que transforma o mundo”.(42)
Conforme a Guerra continuou, após a Proclamação de Lincoln, sem qualquer reviravolta decisiva, levaria quase dois anos até que Marx e Engels tecessem quaisquer comentários significativos acerca dos desdobramentos de eventos nos EUA. A campanha presidencial no outono de 1864 chamou a atenção de ambos. “Creio”, Marx contou a Engels,
que o presente momento, cá entre nós, seja extremamente crítico. Se Grant sofrer uma grande derrota, ou Sherman levar a grande vitória, então tudo bem. Mas agora, em tempos de eleição, uma série crônica de pequenos entraves seria perigosa. Concordo plenamente com você que, até então, a reeleição de Lincoln está basicamente assegurada, mesmo em um nível de 100 para 1. Mas as épocas de eleição em um país que é o arquétipo da charlatanice democrática estão repletas de riscos, os quais podem desafiar a lógica dos eventos de forma bastante inesperada. [...] Esse é, sem dúvida, o momento mais crítico desde o início da guerra. Uma vez que ele passar, o velho Lincoln poderá fazer o que lhe der na telha.(43)
Os acontecimentos, mais uma vez, provariam como Marx, e desta vez Engels, foram notavelmente perspicazes. Como previsto, Lincoln de fato venceu as eleições, de forma esmagadora no Colégio Eleitoral, mas com uma margem menor no voto popular. Como ambos supuseram e apesar do ceticismo de Engels, a vitória do general William Tecumseh Sherman na Geórgia, na véspera das eleições se provou decisiva. Por fim, da mesma forma que Marx observou confidencialmente, a vitória de Lincoln assegurou a derrota da Confederação. Ao ver seus resultados, Frederick Douglass chamou a eleição de “a mais memorável e solene já realizada em nosso país ou em qualquer outro [...] para resolver uma questão de vida ou morte para a nação”.(44) Pesquisadores modernos, igualmente, repercutem a opinião marxiana acerca de quão crucial foi a eleição. Uma derrota por parte de Lincoln teria, muito provavelmente, levado a um acordo de guerra vantajoso para a escravocracia.
No verão de 1864, Engels começou a recobrar um pouco de esperança em relação à situação nortista. Quando ele e Marx receberam uma carta de Weydemeyer, em outubro daquele ano, – alguém com quem mantiveram contato desde o início da guerra e que ascendera ao cargo de coronel do Exército da União –, eles puderam obter pela primeira vez uma visão privilegiada dos desdobramentos, sobretudo relativos à condução da Guerra. A criteriosidade de Weydemeyer, o otimismo duradouro de Marx e, mais importante ainda, o progresso registrado pela vitória de Sherman, convenceram Engels. Sua resposta à carta de Weydemeyer, subsequente à reeleição de Lincoln, torna isso claro: “Apesar dos numerosos erros cometidos pelos exércitos nortistas [...] a maré de conquistas está aos poucos (mas seguramente) subindo, e, no curso de 1865, de qualquer forma, chegará o momento em que a resistência organizada do Sul se dobrará como um canivete [...]”. Engels então considerou a Guerra a partir de uma perspectiva histórica: “Uma guerra popular desse tipo, de ambos os lados, não ocorria desde que surgiram os grandes Estados e, de qualquer forma, aponta a direção para o futuro de toda a América por centenas de anos vindouros. Uma vez derrotada a escravidão, o maior grilhão no desenvolvimento político e social dos Estados Unidos, esse país deverá se mobilizar com um ímpeto que o fará assumir uma posição bastante distinta na história do mundo muito rapidamente, e logo se encontrará uso para o exército e a marinha que estão sendo providos pela guerra.”(45) Seis meses mais tarde, o prognóstico de Engels se realizou na batalha de Appomattox, assim como previsto por Marx desde o começo. Mesmo que não pudesse ter previsto os detalhes, suas expectativas gerais acerca do futuro dos EUA foram notavelmente acertadas, incluindo a antecipação do imperialismo americano – “logo se encontrará uso para o exército e a marinha que estão sendo providos pela guerra” –, tanto em casa (o subjugo dos indígenas da região das Grandes Planícies foi uma etapa significante no processo) e no exterior, o que testemunha o poder da perspectiva aplicada por Engels e Marx.
Igualmente, a declaração de que uma vitória do Norte avançaria a luta democrática em todo o mundo tem amplo apoio nos estudos modernos. McPherson certamente concorda com tal posição, chegando mesmo a citar Marx como evidência, especificamente em uma passagem conhecida d’O Capital, publicado dois anos após o fim da Guerra: “Da mesma forma que no século XVIII a Guerra de Independência Americana soou o alarme para as classes médias europeias, no século XIX, a Guerra Civil Americana foi o alarme a soar para a classe trabalhadora na Europa”. McPherson, com ênfase adicional no significado da derrocada da escravidão, fornece evidências com base não só na afirmação de Marx sobre a Europa, mas também nas alusões de Engels e dele sobre desenvolvimentos exteriores. “[Talvez] tenha sido mais do que uma coincidência o fato de, dentro de cinco anos da vitória da União, as forças do liberalismo terem expandido o sufrágio na Grã-Bretanha e derrubado imperadores no México e na França. Da mesma forma, é mais do que coincidência que, após a abolição da escravatura nos Estados Unidos, as forças abolicionistas das duas sociedades escravistas remanescentes no Hemisfério Ocidental, Brasil e Cuba, intensificaram sua campanha pela emancipação, culminando em sucesso duas décadas mais tarde.’(46) Embora nada sugira que Marx e Engels tenham antecipado os resultados no Brasil ou em Cuba, tudo indica que não ficariam surpresos com o que ocorreu em ambos os países. Demais avanços no movimento democrático tiveram suas raízes no resultado da Guerra Civil: uma bastante significante foi a primeira onda da luta pela igualdade das mulheres nos Estados Unidos, testemunho, novamente, da presciência de Marx e Engels.
A mensagem congratulatória de Marx para Lincoln, em nome da Associação Internacional de Trabalhadores, na ocasião de sua reeleição em 1864, dota a discussão anterior de um significado extra. De particular importância para esta análise e argumento é uma observação vigorosíssima feita por Marx sobre a classe, a raça e a democracia dos EUA, que vale a pena ser retomada aqui: “Enquanto os trabalhadores, o verdadeiro poder político do Norte, permitiram que a escravidão contaminasse sua própria república, enquanto diante do negro, dominado e vendido sem ser consultado, se glorificavam por desfrutar do privilégio de ser livres para vender a si mesmos e escolher seus patrões, eles foram incapazes de combater em prol da verdadeira emancipação do trabalho ou de apoiar a luta emancipadora de seus irmãos europeus; essa barreira para o progresso, porém, foi levada com o mar escarlate da Guerra Civil”.(47)
Esta passagem de Marx está repleta de significados. Em primeiro lugar, trabalhadores brancos nos EUA haviam realizado um pacto fáustico com a escravocracia que, por sua vez, impusera limites severos não apenas sobre o “trabalho livre” – como Lincoln frequentemente se referia a ele – mas sobre a própria democracia burguesa. Em troca de “salários da branquitude”, a “instituição peculiar” receberia um impulso vital renovado.
Em segundo lugar, ele antecipa o argumento a ser desenvolvido concisamente três anos mais tarde n’O Capital: “Nos Estados Unidos da América do Norte, todo o movimento independente de trabalhadores ficou paralisado enquanto a escravidão desfigurava uma parte da República. O trabalho não pode se emancipar na pele branca enquanto estiver estigmatizado na negra”. Aqui não está encapsulada somente sua estratégia política mais ampla – a da plena realização da democracia burguesa como pré-condição para a revolução socialista –, mas também sua visão particular sobre raça e classe. Isto é, o trabalho ou a classe trabalhadora existem em muitas facetas e em diferentes cores de pele. Porém, em última análise, ele é antes de tudo trabalho. Aqui está implícito o pressuposto de que a raça não seria nada além de (como seria denominado mais tarde) um construto social, ao passo que classe é um construto social e ainda algo mais. Em outras palavras: uma vez que classe para Marx dizia respeito, sobretudo, às relações sociais de produção, ela possuía uma realidade que transcendia as construções ou os entendimentos particulares dados a si.
A terceira reflexão em questão remete à interconexão entre, por um lado, a derrocada da escravatura/racismo e a liberação dos trabalhadores nos EUA, e, por outro lado, a progressão do movimento trabalhador em outras partes, especificamente na Europa naquele momento. Por fim, não se tratava meramente de uma mensagem congratulatória, mas também de um esforço de compartilhar com Lincoln, “o enérgico filho da classe trabalhadora”, uma leitura particular do que estava ocorrendo – tudo isso em um linguajar não-sectário. Lincoln não agiu desfavoravelmente a uma tal leitura, como o historiador James McPherson sugeriu.(48) Em outras palavras: Marx, de forma ousada e autoconfiante, estava engajando o presidente dos EUA politicamente.
Se o curso e resultado da Guerra corresponderam às expectativas de Marx em grande medida, não foi o caso dos eventos decorrentes, “a reconstrução do mundo social” – ao menos durante seu tempo de vida. Não é possível, no espaço deste prefácio, transmitir toda a riqueza do exame de Marx e Engels acerca dos desdobramentos de eventos nos EUA após a vitória da União – com perspectivas que se estenderam por quase duas décadas e meia. Basta que resumamos seus comentários sobre a mensagem congratulatória de Marx a Lincoln de 1864; mais especificamente, sua asserção, no final deles, de que a derrocada da escravidão iniciaria uma “nova era de ascendência para [...] as classes trabalhadoras”.
Marx se animou com a notícia de que, poucas semanas após a vitória sobre a escravidão, os trabalhadores americanos lançaram uma campanha nacional para conquistar a jornada de trabalho de oito horas diárias. A iniciativa tinha não apenas uma importância teórica, mas também política para a luta de classes na Europa e nos EUA. Em suas “Instruções” ao primeiro congresso da IWA em 1866 em Genebra, Marx apontou as ações de vanguarda dos trabalhadores estadunidenses como um exemplo a ser seguido. “Propomos 8 horas de trabalho como o limite legal do dia trabalhado. Esse limite foi em geral aclamado por trabalhadores dos Estados Unidos, e o voto no Congresso o elegeria como uma plataforma comum para as classes trabalhadoras de todo o mundo.’(49) Dessa forma, iniciou-se a primeira campanha internacional para instituir a jornada de trabalho de oito horas diárias. No prefácio a O Capital, Marx reiterou: “assim como, no século XVIII, a Guerra de Independência Americana soou o alarme para a classe média europeia, no século XIX, a Guerra Civil Americana fez o mesmo para a classe trabalhadora europeia” – uma variante daquilo que dissera para Lincoln três anos antes. A ascendência da classe trabalhadora não significava que a revolução socialista estava na ordem do dia. Isso requereria a existência de proletariado hereditário. A abolição da escravatura ajudou a acelerar tal processo na medida em que permitiu o aprofundamento e expansão das relações capitalistas de produção pelos EUA. Nada do que Marx e Engels disseram sobre as consequências da Guerra, nesse quesito, transcendeu esta afirmação de ortodoxia.
O que dizer a respeito das consequências do “trabalho em pele negra”? Nesse tocante, o otimismo que Marx e Engels expressaram em comentários esparsos não se confirmou enquanto viveram. “O ódio aos negros” e “brancos ruins” provaram ser mais persistentes do que se esperava. A Reconstrução Radical – o breve experimento não exatamente em igualdade racial, mas em algo nessa direção – terminou de forma sangrenta, mais ou menos uma década depois do fim da Guerra. O que os autores desejavam que Washington dissesse, aplicando imperativos severos a fim de “deitar ao chão todos os grilhões impostos à liberdade”, encontrou ouvidos moucos.
Deveras, eles vislumbraram o que custaria para que a igualdade racial se efetivasse nos EUA de fato. O contexto foi o que o historiador do trabalho Philip Foner chamou de “a primeira rebelião em escala nacional do trabalho”, a enorme greve dos ferroviários de 1877.(50) “O que você está achando dos trabalhadores dos [EUA]?”, Marx questionou Engels.
Esta primeira deflagração contra a oligarquia do capital que surgir com a Guerra Civil, é claro, será suprimida. Mas poderá prover um ponto de partida para a constituição de um partido efetivamente trabalhista nos [EUA]. Há duas circunstâncias favoráveis aqui, aliás. A política do novo presidente direcionará os negros, assim como no caso das grandes expropriações de terra [...], para o benefício das companhias ferroviárias, mineradoras, etc., transformando-os em camponeses no Oeste – e estes, cuja queixa já se faz claramente audível –, tornar-se-ão em aliados militantes dos trabalhadores.(51)
Engels respondeu: “Fiquei contente com o assunto da greve na América. A maneira como eles se lançam ao movimento não tem equivalente neste lado do oceano. Faz apenas doze anos que a escravidão foi abolida e o movimento já chegou a tal ponto.’(52)
O comentário de Marx sugere que tinha ciência de que o governo federal em Washington, com seu “novo presidente” Rutherford B. Hayes, havia virado as costas para a América Negra. Mais importante, ele sugere que Marx sentiu como necessária a formalização de um partido viável dos trabalhadores para se criar uma aliança entre trabalhadores negros e brancos, por um lado, e operários e agricultores, pelo outro. Isso ia diretamente ao encontro da luta por uma ação política independente da classe trabalhadora que ele havia empreendido na agora extinta IWA. A resposta de Engels também é instrutiva, principalmente em seu uso do termo “já”. Significa que ele e Marx ficaram surpresos com a agitação, sem dúvida em função de sua concepção da longue durée das lutas de classes nos EUA. Embora certamente encorajasse e apoiasse a greve em questão, Marx previu corretamente que seria, “é claro, suprimida”. Novamente, não antes de um proletariado hereditário vigorar, a classe trabalhadora seria capaz de realmente colocar sua marca na política americana. Somente com a vitória da Segunda Reconstrução, um século depois, a previsão de Marx se mostraria como uma possibilidade real. Aqui eu defendo que a outra afirmação supracitada d’O Capital, de 1867 – variante do importante argumento que Marx expôs para Lincoln de que “o trabalho não pode se emancipar na pele branca enquanto estiver estigmatizado na negra” – ainda tem relevância.
A derrocada da Reconstrução Radical explica, na minha opinião, o ceticismo compreensível, quase de rigueur, presente em círculos progressistas hoje acerca da Guerra Civil e de Lincoln. Será que ela realmente significou um avanço para os trabalhadores, como Marx e Engels argumentaram, e Lincoln realmente foi merecedor de seus elogios? Mas essa desconfiança confunde uma revolução social verdadeira com sua derrota. Diminuir a importância do que ocorreu naquele breve espaço de tempo seria o equivalente a diminuir outra revolução social correlata, e que também descambou em uma derrota sangrenta: a Comuna de Paris de 1871, onde, pela primeira vez, o proletariado moderno logrou tomar o poder. Embora os trabalhadores parisienses tenham ocupado o poder por menos de três meses, o que foram capazes de fazer naquele curto espaço constitui uma das grandes conquistas históricas da classe trabalhadora – provendo lições cruciais, por exemplo, ao jovem Lênin.
Curioso – e intrigante – é o fato de que o indivíduo responsável por ajudar a levar adiante a acusação que encerrou a Reconstrução Radical, o líder do Partido Republicano Carl Schurz, era um antigo oponente de Marx e Engels da Revolução Alemã de 1848-9. Digo “intrigante” pois há evidências circunstanciais que sugerem que Schurz estava motivado a agir como agiu em função dos mesmos temores que nutria em 1849, o que o colocou contra Marx – o esforço deste último para derrubar a escravidão, como o Manifesto defendia no tocante à luta para derrubar o regime feudal na Alemanha, ensejava “o prelúdio de uma revolução proletária imediatamente posterior”. Pesquisas recentes revelam que Schurz e seus simpatizantes tinham os eventos de Paris, em 1871, em mente quando decidiram pôr o gênio da Reconstrução Radical de volta na garrafa.(53)
O foco deste artigo foi a análise política de Marx, e como ela possui contornos de seu método. Precisamente porque Marx era um materialista histórico, ele entendeu que os desenvolvimentos históricos não são inevitáveis, mas influenciados pela contingência política e pela intervenção humana. Aqui está o motivo pelo qual fez tudo o que pôde – desde ajudar a organizar protestos em massa contra a intervenção britânica em nome da Confederação, até travar sua “luta dentro da imprensa” para moldar a opinião pública e, é claro, liderar a IWA – a fim de influenciar resultados do outro lado do Atlântico. Suas atividades políticas, que não poderão ser esmiuçadas aqui por razões de espaço, são tão importantes quanto sua análise; ambas se complementam.(54)
Para concluir, os escritos de Marx sobre a Guerra Civil, juntamente com os de Engels, oferecem uma janela bastante valiosa para o modo como empregaram sua “concepção materialista da História”. Argumento que, juntos, estes escritos são ainda mais ricos que a análise de Marx do golpe de Estado de Luís Filipe Bonaparte em O 18 de Brumário. A guerra e o período subsequente formam a única revolução social bem-sucedida que Marx e Engels observaram em suas próprias vidas. Além disso, suas análises se deram em tempo real, durante um período mais extenso; as diferenças de opinião que tiveram ao longo do curso e resultado da Guerra revelam que o método não lhes servia de modelo pré-definido, mas era um método que exigia aplicação hábil. Estar armado dele não era uma garantia para o esclarecimento. Por fim, e para repetir o que já foi dito, seu método permitiu a Marx compreender as tarefas revolucionárias postas diante de Lincoln – a necessidade de transformar uma guerra de defesa, em prol da preservação da União, em uma guerra revolucionária para derrubar a escravidão – pelo menos seis meses antes do próprio presidente, e isso com a firme convicção de que este seria o caminho para a vitória. Nisto reside a vantagem que Marx derivou de sua perspectiva histórico-materialista, das experiências revolucionárias de 1848-9 e do otimismo revolucionário resultante da combinação de teoria e prática revolucionárias.
Notas:
(1) Originalmente publicado em inglês no periódico Historical Materialism (volume19, número 4.Leiden: Brill, 2011, p. 169–192). Todas as notas e referências são do próprio August H. Nimtz, salvo quando indicadas. Para facilitar a vida de pesquisadoras e pesquisadores, sempre que possível adicionamos referências às traduções brasileiras dos textos de Marx e Engels quando o autor os cita. (Nota da tradução) (retornar ao texto)
(2) Ver, por exemplo, a carta de Engels para W. Borgius, em Karl Marx; Friedrich Engels. Obras Escolhidas em três tomos. Editorial Avante!, 1982, p. 565-567. (retornar ao texto)
(3) Disponíveis, em sua maioria, em <www.marxistsfr.org/archive/marx/works>. (retornar ao texto)
(4) Ver, neste volume, A Abraham Lincoln, presidente dos Estados Unidos da América, página 289. (retornar ao texto)
(5) O texto-chave aqui é Sobre a questão judaica de Marx (São Paulo: Boitempo, 2015). Para detalhes acerca do impacto da experiência dos EUA sobre a trajetória política marxiana, ver August H. Nimtz, Marx, Tocqueville, and Race in America: The ‘Absolute Democracy’ or ‘Defiled Republic’. Lanham: Lexington Books 2003, capítulo 1. (retornar ao texto)
(6) Um aspecto do sistema político dos EUA do qual Marx sentiu falta foi sua estrutura federalista. O governo federal dos EUA, ele argumentou, era um governo fragmentado, e um obstáculo real para a governança democrática. Ver a parte primeira do artigo “Crítica moralizante e moralidade crítica. Uma contribuição à História cultural alemã contra Karl Heinzen”, publicado em cinco partes no Deutsche-Brüsseler-Zeitung, nos. 86, 87, 90, 92 e 94, 28 de outubro a 25 de novembro de 1847 (tradução brasileira no volume A sagrada família: Ou a crítica da Crítica crítica: contra Bruno Bauer e consortes. São Paulo: Boitempo, 2015). (retornar ao texto)
(7) Foi um partido político de curta duração (1848 a 1854), cuja pauta central era se opor à criação de novos estados escravistas, isso em uma época em que o território estadunidense se expandia vertiginosamente. Ao ser desmanchado, boa parte de seus membros migrou para o Partido Republicano (Nota do tradutor). (retornar ao texto)
(8) Marx; Engels. Collected Works, Volume 6: The Communist Manifesto, The Poverty of Philosophy, Principles of Communism. New York: International Publishers, 1976, p. 167. Tradução brasileira: Miséria da filosofia. São Paulo: Boitempo, 2017. (retornar ao texto)
(9) Marx; Engels. Collected Works, Volume 38: Letters. New York: International Publishers, 1982, p. 101. Carta a Pável V. Annenkov de 28/12/1846. (retornar ao texto)
(10) Marx; Engels. Collected Works, Volume 9: Articles for Neue Rheinische Zeitung. New York: International Publishers, 1977, p. 100. (retornar ao texto)
(11) Marx; Engels. Collected Works, Volume 9, p. 211. (retornar ao texto)
(12) O jornal Die Revolution, cuja edição de 18 de maio de 1852 trouxe o texto de Marx, era sediado em Nova York, tamanha era a população de imigrantes alemães naquela cidade já na época (Nota do tradutor). (retornar ao texto)
(13) Para detalhes acerca das atividades de Weydemeyer e de outros simpatizantes de Marx nos EUA, ver Nimtz, Tocqueville, and Race in America..., capítulo 2. (retornar ao texto)
(14) Bruce Levine. The Spirit of 1848: German Immigrants, Labor Conflict, and the Coming of the Civil War. Urbana: University of Illinois Press, 1992, p. 249. (retornar ao texto)
(15) Marx; Engels. Collected Works, Volume 41: Letters. New York: International Publishers, 1985, p. 210. (retornar ao texto)
(16) Ibidem, p. 242. (retornar ao texto)
(17) Ver Philip S. Foner.American Socialism and Black Americans: From the Age of Jackson to World War II. Westport: Greenwood Press, 1977, p. 29. Harold Holzer (Lincoln President-Elect: Abraham Lincoln and the Great Secession Winter, 1860–1861. New York: Simon and Schuster, 2008) mostra como a vigilância dessas convictas forças antiescravistas ajudaram a blindar o presidente eleito. (retornar ao texto)
(18) Ibidem. (retornar ao texto)
(19) Eric Foner. Reconstruction: America’s Unfinished Revolution, 1863–1877. New York: Harper and Row, 1988, p. 10. (retornar ao texto)
(20) Marx; Engels. Collected Works, Volume 41, p. 277. (retornar ao texto)
(21) Ver, neste volume, A Guerra Civil Norte-americana de 20/10/1861, página 47. (retornar ao texto)
(22) Ver, neste volume, A Guerra Civil nos Estados Unidos de 07/11/1861, página 58. (retornar ao texto)
(23) Ibidem, página 64. (retornar ao texto)
(24) Os trechos diversos do parágrafo remetem a A Guerra Civil Norte-americana de 20/10/1861, páginas 48 em diante deste volume. (retornar ao texto)
(25) Marx; Engels. Collected Works, Volume 6, p. 527. (retornar ao texto)
(26) Marx; Engels. Collected Works, Volume 8, p. 365. (retornar ao texto)
(27) Ver, neste volume, A crise na Inglaterra., página 94. (retornar ao texto)
(28) Marx; Engels, Collected Works, Volume 40: Letters, p. 249. Assim, discordo do artigo de Jeffrey Vogel The Tragedy of History (1996) que, apesar de perspicaz, trata das perspectivas de Marx e Engels acerca do México e da Índia. Caso houvesse olhado mais de perto, ele teria visto como suas perspectivas evoluíram como estou argumentando. (retornar ao texto)
(29) Marx; Engels. Collected Works, Volume 19, p. 103. (retornar ao texto)
(30) Ver A Intervenção no México, página 255. (retornar ao texto)
(31) Marx; Engels, Collected Works, Volume 41, p. 431. (retornar ao texto)
(32) Ver artigo A deposição de Frémont, p. 124. (retornar ao texto)
(33) O artigo em questão é Para uma crítica dos assuntos americanos, p. 153. (retornar ao texto)
(34) Marx; Engels. Collected Works, Volume 41, p. 400. A respeito do termo nigger, empregado por Marx em mais de um contexto e de óbvia importância não apenas para aqueles de nós cujas origens são visivelmente africanas: os editores ingleses das Obras Completas [Complete Works] observam que, no século XIX, o termo não tinha o “status mais profano e inaceitável” que assumiu mais tarde na História (ver Volume 42 dos Collected Works, p. xl). É difícil dizer que aqui se trata de uma desculpa. Aparentemente, mesmo Harriet Tubman [a espiã abolicionista negra] usava o termo para se descrever (William K. Klingaman. Abraham Lincoln and the Road to Emancipation, 1861–1865. New York: Viking Penguin, 2001, p. 88). Marx passou a usá-lo durante a Guerra Civil conforme estava se familiarizando com a realidade estadunidense. Em seus escritos publicados, sempre a empregou entre aspas; em cartas, muitas vezes sem aspas. Apenas em uma ocasião registrada, parece, ele usou em um sentido derrogatório, em uma diatribe contra [o dramaturgo e político alemão] Ferdinand Lassalle (Marx; Engels. Collected Works, Volume 41, p. 389–90) em 1862, isto é, no ano que ele se valeu da palavra pela primeira ve (para uma contextualização, ver “Lassalle and Marx: History of a Myth”, em Hal Draper. Karl Marx’s Theory of Revolution, Volume 4: Critique of Other Socialisms. New York: Monthly Review Press, 1989, p. 241–69). É claro: Marx e Engels, como todos os mortais, eram produtos do mundo onde viviam. Os comentários em correspondência pessoal que foram evidentemente racistas, sexistas ou antissemitas devem ser vistos em contexto, e em relação à totalidade de seus escritos e ações. De resto, Marx era carinhosamente conhecido por amigos íntimos e família como o ‘Mouro’, devido a seus traços escuros, além de ter um genro miscigenado, Paul Lafargue, carinhosamente chamado no seu círculo familiar de “o africano” ou “negrillo”. Detalhes pessoais sugerem que devemos ser cuidadosos e não nos antecipar em nossos julgamentos. (retornar ao texto)
(35) Foner, Reconstruction, p. 5. (retornar ao texto)
(36) Ver Para uma crítica dos assuntos americanos, p. 155. (retornar ao texto)
(37) James McPherson. Drawn with the Sword: Reflections on the American Civil War. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 77. (retornar ao texto)
(38) Ver Sobre os acontecimentos na América do Norte, página 157. (retornar ao texto)
(39) Marx não estava sozinho ao ver a Guerra Civil como uma guerra revolucionária (ou seja, uma revolução social). O livro Abraham Lincoln and the Second American Revolution de James McPherson (1991), sobretudo no capítulo 1, cita personagens centrais do período que compartilhavam tal perspectiva. O que distinguiu Marx, contudo, de seus contemporâneos foi sua perspectiva global, a visão de que a Guerra significava um avanço para o processo revolucionário mundial. (retornar ao texto)
(40) Marx; Engels. Collected Works, Volume 41, p. 416. (retornar ao texto)
(41) Idem. (retornar ao texto)
(42) Ibidem, p. 421. (retornar ao texto)
(43) Ibidem, p. 562. (retornar ao texto)
(44) John W. Blassingame; John R. McKivigan (eds.). The Frederick Douglass Papers, Series One: Speeches, Debates and Interviews, Volume 4. New Haven: Yale University Press, 1991, p. 33. (retornar ao texto)
(45) Marx; Engels. Collected Works, Volume 42, p. 39. (retornar ao texto)
(46) McPherson, Drawn with the Sword…, p. 224, 227. Para detalhes sobre como o percurso da Guerra Civil impactou desdobramentos no Brasil, ver Ana Maria Rios. ‘“My Mother was a Slave, Not Me!”: Black Peasantry and Regional Politics in Southeast Brazil, c. 1870–c. 1940’. Tese de doutorado, University of Minnesota, 2001, capítulo 3. (retornar ao texto)
(47) Ver A Abraham Lincoln, presidente dos Estados Unidos da América, página 289. (retornar ao texto)
(48) Ver McPherson, Drawn with the Sword..., sobretudo a parte IV, de título “The Enduring Lincoln”. O historiador Herbert Mitgang cita o seguinte trecho de Lincoln: “O trabalho vem antes, isto é, é independente do capital. O capital é somente um fruto do trabalho e jamais existiria sem a existência prévia do trabalho. O trabalho é superior ao capital e merece uma consideração muito maior. O capital tem seus direitos, mas merece tanta proteção quanto os demais direitos” (The Nation 1996, p. 6). (retornar ao texto)
(49) Marx; Engels. Collected Works, Volume 20, p. 187. David Roediger (Wages of Whiteness: Race and the Making of the American Working Class. London: Verso, 1999, p. 174) defende persuasivamente que “o que tornou o movimento de jornadas de 8 horas possível foi a espetacular emancipação dos escravos entre 1863 e 1865”. (retornar ao texto)
(50) Foner, American Socialism... , p. 9. (retornar ao texto)
(51) Marx; Engels. Collected Works, Volume 45, p. 251. (retornar ao texto)
(52) Ibidem, p. 255.(retornar ao texto)
(53) Ver Heather Cox Richardson. The Death of Reconstruction: Race, Labor, and Politics in the Post-Civil War North, 1865–1901. Cambridge, MA.: Harvard University Press, 2001. (retornar ao texto)
(54) Nimtz (Tocqueville, and Race in America…, p. 118-30) traz mais detalhes a respeito. Foner (American Socialism…, p. 39-42) acusa Marx e Engels de não terem defendido a Reconstrução Radical suficientemente. Ver volume mencionado de Nimtz (p. 171-8) para uma réplica. (retornar ao texto)
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