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A obra cujo primeiro volume apresento ao público é a continuação de um trabalho publicado em 1859 sob o titulo: "Para a Crítica da Economia Política". Este longo intervalo que separa as duas publicações foi-me imposto por uma doença de vários anos.
A fim de dar a este livro um complemento que lhe é necessário, resumi no primeiro capitulo a obra que o precedeu. [1] É certo que me pareceu dever modificar neste resumo o meu primeiro plano de exposição: um grande número de pontos, ali simplesmente indicados, são aqui amplamente desenvolvidos, enquanto outros, completamente desenvolvidos antes, são apenas indicados agora. A História da Teoria do Valor e do Dinheiro, por exemplo, foi suprimida; em compensação, o leitor encontrará nas notas do primeiro capitulo novas fontes para a história dessa teoria.
Em todas as ciências o começo é árduo. O primeiro capítulo, principalmente a parte que contém a análise da mercadoria, será pois um pouco difícil de compreender. No que se refere à análise da substância do valor e à grandeza do valor, fiz todos os esforços para tornar a exposição tão clara quanto possível e acessível a todos os leitores. 1
A forma-valor realizada na forma-dinheiro é algo de muito simples. No entanto, o espírito humano tem procurado em vão, desde há mais de dois mil anos, penetrar no seu segredo, quando afinal chegou a analisar, pelo menos aproximadamente, formas muito mais complexas e portadoras de um sentido mais profundo. Porquê? Porque o corpo organizado é mais fácil de estudar do que a célula que o constitui. Por outro lado, a análise das formas económicas não pode socorrer-se do microscópio nem de reagentes químicos; a abstracção é a única forma que pode servir-lhe de instrumento. Ora, para a sociedade burguesa actual, a forma-mercadoria do produto do trabalho, ou a forma-valor da mercadoria, é a forma celular económica. Para o homem pouco culto, a análise desta forma parece perder-se em minúcias; de facto são, necessariamente, minúcias, mas apenas como as que se encontram na anatomia microscópica.
A parte o capítulo sobre a forma-valor, a leitura desta obra não apresentará dificuldades. Suponho naturalmente leitores que queiram aprender algo de novo e, consequentemente, pensar também por si próprios.
O físico, para se esclarecer acerca dos processos da natureza, ou estuda os fenómenos quando estes se apresentam sob a forma mais perfeita e menos obscurecida por influências perturbadoras, ou procede a experiências em condições que assegurem tanto quanto possível a regularidade do seu movimento. O que estudo nesta obra é o modo-de-produção capitalista e as relações de produção e de troca que lhes correspondem. O lugar clássico desta produção é, até agora, a Inglaterra. Eis por que é a este país que vou buscar os factos e os exemplos principais que servem de ilustração ao desenvolvimento das minhas teorias. Se o leitor alemão se permitisse um farisaico encolher de ombros a propósito da situação dos operários, industriais e agrícolas ingleses, ou se se embalasse na ideia optimista de que as coisas estão muito longe de ir tão mal na Alemanha, seria obrigado a gritar-lhe: De te fabula narratur! (*)
Não se trata aqui do grande desenvolvimento mais ou menos completo dos antagonismos sociais, que resultam das leis naturais da produção capitalistas. Trata-se sim destas leis em si mesmas, de tendências que se manifestam e realizam com uma necessidade de ferro. O país industrialmente mais desenvolvido não faz mais que mostrar aos que o seguem na escala industrial a imagem do seu próprio futuro.
Mas deixemos de lado estas considerações. No nosso país, nos lugares em que a produção capitalista se implantou, por exemplo nas fábricas propriamente ditas, o estado de coisas é muito pior que na Inglaterra, porque falta o contrapeso das "leis de fábricas" inglesas. Em todas as outras esferas, aflige-nos, como em todo o ocidente da Europa continental, não só o desenvolvimento da produção capitalista, como também a falta deste desenvolvimento. Além dos males próprios da época actual, temos de suportar uma longa série de males herdados, resultantes da sobrevivência de modos-de-produção antigos, ultrapassados, com o seu cortejo de relações sociais e políticas extemporâneas. Temos de sofrer não só da parte dos vivos mas também da parte dos mortos. Le mort saisit le vif ! (**)
Em comparação com as estatísticas inglesas, as estatísticas sociais da Alemanha e do resto do continente europeu são realmente miseráveis. Apesar disso, levantam uma ponta do véu, o bastante para deixar entrever uma cabeça de Medusa. Ficaríamos horrorizados pelo estado de coisas entre nós se os nossos governos e os nossos parlamentos estabelecessem, como na Inglaterra, comissões de estudos periódicos sobre a situação económica, se estas comissões fossem, como na Inglaterra, munidas de plenos poderes na procura da verdade, se conseguíssemos encontrar para esta alta missão homens tão peritos, tão imparciais, tão rígidos e desinteressados como os inspectores de fábricas da Grã-Bretanha, como os seus reporters sobre a saúde pública (Public Health), como os seus comissários de investigação sobre a exploração das mulheres e das crianças, sobre as condições de habitação e de alimentação, etc. Perseu cobria-se com uma nuvem para perseguir os monstros; nós, mergulhamos completamente na nuvem, até aos olhos e às orelhas, para podermos negar a existência de monstruosidades.
Não criemos ilusões. Tal como a guerra da Independência americana no século XVIII deu o sinal de alarme para a classe média na Europa, assim a guerra civil americana, no século XIX, deu o toque de rebate para a classe operária europeia. Na Inglaterra, a marcha da agitação social é bem visível para todos; num dado momento, esta agitação há-de ter necessariamente a sua repercussão no continente. Então revestirá formas mais ou menos brutais ou humanas, consoante o grau de desenvolvimento da classe dos trabalhadores. Independentemente de motivos mais altos, o próprio interesse ordenará então às classes dominantes que removam todos os obstáculos legais que possam impedir o desenvolvimento da classe operária. Foi em vista disso que neste volume concedi um lugar tão importante à história, ao conteúdo e aos resultados da legislação inglesa sobre as grandes fábricas. Uma nação pode e deve tirar ensinamentos da história de outras nações. Mesmo quando uma sociedade chega à descoberta da pista da lei natural que preside ao seu movimento - e o fim último desta obra é descobrir a lei económica do movimento da sociedade moderna - ela não pode ultrapassar de um salto nem abolir por decretos as fases do seu desenvolvimento natural; mas pode abreviar o período de gestação e minorar os males do seu nascimento.
Para evitar possíveis mal-entendidos, mais uma palavra. Não pintei a cor-de-rosa as figuras do capitalista e do proprietário fundiário. Mas aqui só se trata de pessoas na medida em que elas são a personificação de categorias económicas, suportes de determinados interesses e relações de classes. O meu ponto de vista, segundo o qual o desenvolvimento da formação económica da sociedade é assimilável à marcha da natureza e à sua história, pode menos que qualquer outro tornar o indivíduo responsável por relações de que socialmente ele é afinal a criatura, por mais que ele se queira libertar delas.
No campo da economia política, a investigação livre e científica encontra muitos mais inimigos do que nos outros campos. A natureza particular do assunto de que trata ergue contra ela e leva para o campo de batalha as paixões mais vivas, mais mesquinhas e mais odiosas do coração humano, todas as fúrias do interesse privado. A Igreja de Inglaterra, por exemplo, perdoará muito mais facilmente um ataque a 38 dos seus 39 artigos de fé do que a 1/39 dos seus rendimentos. Comparado à crítica da velha propriedade, o próprio ateísmo é hoje uma culpa levis. Todavia, é impossível não reconhecer um certo progresso neste aspecto. Basta-me para isso remeter o leitor para o Livro Azul publicado nestas últimas semanas: Correspondence with Her Majesty's Missions Abroad, regarding Industrial Questions and Trade's Unions. Os representantes estrangeiros da coroa inglesa exprimem claramente nesta obra a opinião de que na Alemanha, na França, como em todos os estados civilizados do continente europeu, uma transformação das relações existentes entre o capital e o trabalho é tão sensível e tão inevitável como na Grã-Bretanha. Ao mesmo tempo, do outro lado do Atlântico, o Sr. Wade, vice-presidente dos Estados Unidos da América do Norte, declarava abertamente em várias reuniões públicas, que depois da abolição da escravatura a questão na ordem do dia seria a da transformação das relações do capital e da propriedade fundiária. Tudo isto são sinais dos tempos, que nem mantos de púrpura nem sotainas negras podem ocultar. Não significam, de modo algum, que amanhã vão acontecer milagres; mas mostram que mesmo nas classes sociais dominantes começa a despontar o pressentimento de que a sociedade actual, muito longe de ser um cristal sólido, é um organismo susceptível de mudança e em permanente processo de transformação.
O segundo volume desta obra tratará da circulação do capital (livro II) e das diversas formas que reveste o seu desenvolvimento (livro III). O terceiro e último volume exporá a história da teoria (livro IV). [2]
Qualquer apreciação inspirada numa crítica verdadeiramente científica, é para mim benvinda. Quanto aos preconceitos da chamada opinião pública, à qual nunca fiz concessões, tenho por divisa, agora como sempre, as palavras do grande Florentino:
Segui il tuo corso, e lascia dir le genti! (***)
Londres, 25 de Julho de 1867.
Karl Marx
Londres, 18 de Março de 1872
Ao cidadão Maurice Lachatre
Prezado cidadão,
Concordo com a sua ideia de publicar a tradução de Das Kapital em fascículos periódicos. [3] Dessa forma a obra ficará mais acessível à classe operária, e para mim esta consideração sobreleva qualquer outra.
Se esse é o lado bom da questão, não deixa, porém, de haver o reverso: o método de análise que utilizei - e que não tinha sido ainda aplicado aos assuntos económicos - torna assaz árdua a leitura dos primeiros capítulos, sendo pois de temer que os leitores franceses, sempre impacientes por chegarem às conclusões, ávidos de conhecerem a conexão entre os princípios gerais e as questões imediatas que os apaixonam, se aborreçam da obra por não poderem passar adiante imediatamente.
Desvantagem essa contra a qual nada posso fazer, a não ser prevenir e precaver os leitores desejosos da verdade. Não existe estrada real para a ciência; só poderá alcançar os seus cumes luminosos quem não receie fatigar-se em escalar as suas veredas escarpadas.
Queira receber, prezado cidadão, o protesto da minha sincera dedicação.
Karl Marx
Para começar, devo prestar ao leitor da primeira edição alguns esclarecimentos sobre as alterações feitas nesta segunda edição. A divisão mais clara do livro salta aos olhos. As notas acrescentadas vão sempre assinaladas como notas da segunda edição. No que respeita ao próprio texto, as alterações mais importantes são as seguintes:
No Capítulo I,1 faz-se com maior rigor científico a dedução do valor a partir da análise das equivalências nas quais se exprime todo o valor-de-troca; de igual modo, a conexão entre a substância do valor e a determinação da grandeza do valor pelo trabalho socialmente necessário, que na primeira edição era apenas indicada, é agora expressamente acentuada.
O Capítulo I,3 (A Forma-Valor) foi totalmente refundido, o que se tornou necessário desde logo pela dupla exposição do assunto na primeira edição. (Note-se, de passagem, que essa dupla exposição se ficou a dever ao meu amigo Dr. L. Kugelmann, de Hanover. Encontrava-me de visita em sua casa na Primavera de 1867, quando as primeiras provas chegaram de Hamburgo, tendo-me ele convencido que para a maior parte dos leitores se tornava necessária uma explicação suplementar, mais didáctica, da forma-valor.) A última secção do primeiro Capítulo, O fetichismo da mercadoria, foi em grande parte modificada. O Capítulo III,1 (Medida dos Valores) foi cuidadosamente revisto, dado que esta matéria tinha sido descuidadamente tratada na primeira edição, remetendo-se para a análise já contida em Para a Crítica da Economia Política (Berlim, 1859). O Capítulo VII, especialmente a parte 2, foi sensivelmente refundido.
Seria inútil pormenorizar as alterações textuais, muitas vezes apenas de estilo. Estão espalhadas por todo o livro. Contudo, agora, ao rever a tradução francesa, a publicar em Paris, noto que várias partes do original alemão exigiriam, nuns casos uma refundição integral, noutros um maior rigor estilístico bem como uma cuidadosa eliminação de algumas deficiências ocasionais. Não dispus, porém, do tempo necessário, pois só no outono de 1871 - no meio de outros trabalhos prementes - é que recebi a notícia de que o livro se esgotara e que a impressão da segunda edição haveria de começar já em Janeiro de 1872.
A compreensão que O Capital rapidamente encontrou em largos círculos da classe operária alemã é a melhor paga do meu trabalho. Um homem, situado economicamente numa perspectiva burguesa, o Sr. Mayer, fabricante de Viena, numa brochura publicada durante a guerra franco-prussiana, pôs justamente em evidência que o grande espírito teórico, considerado património hereditário dos alemães, desapareceu completamente das chamadas classes cultas da Alemanha, ressurgindo pelo contrário na sua classe operária.
A economia política, na Alemanha, tem sido, até agora, uma ciência estrangeira. Circunstâncias históricas particulares, já em grande parte denunciadas por Gustav de Gulich na sua História do comércio, da indústria, etc., impediram durante muito tempo entre nós o surto da produção capitalista e, por consequência, o desenvolvimento da sociedade moderna, da sociedade burguesa. Por isso, a economia política não foi, na Alemanha, um fruto próprio; chegou-nos já pronta da Inglaterra e da França como um artigo de importação. Os nossos professores permaneceram alunos; mais do que isso, nas suas mãos a expressão teórica de sociedades mais avançadas transformou-se numa colecção de dogmas interpretados por eles no sentido de uma sociedade atrasada, [do mundo pequeno-burguês que os rodeava,] interpretados portanto ao contrário. Para dissimular a sua falsa posição, a sua falta de originalidade, a sua impotência científica, os nossos pedagogos ostentaram um verdadeiro luxo de erudição histórica e literária; ou então juntaram à sua mercadoria outros ingredientes tirados dessa salsada de conhecimentos heterogéneos que a burocracia alemã adornou com o nome de Kameralwissenschaften (ciência administrativa).
A partir de 1848, a produção capitalista enraizou-se cada vez mais na Alemanha e, hoje, já conseguiu metamorfosear este país que fora de sonhadores em país de realizadores. Mas os nossos economistas, decididamente, não têm sorte. Quando podiam fazer economia política sem dissimulação, faltava-lhes o meio social que esta pressupõe. Pelo contrário, quando esse meio surgiu, as circunstâncias que permitem o seu estudo imparcial, mesmo sem transpor o horizonte burguês, já não existiam.
Com efeito, a economia política, enquanto burguesa - isto é, enquanto vê na ordem capitalista não uma fase transitória do progresso histórico, mas antes a forma absoluta e definitiva da produção social -, não pode permanecer uma ciência, enquanto a luta de classes permanecer latente ou só se manifestar por fenómenos isolados.
Consideremos a Inglaterra. O período em que a luta de classes ainda aí não está desenvolvida, é também o período clássico da economia política. O seu último grande representante, Ricardo, é o primeiro economista que faz deliberadamente do antagonismo dos interesses de classe, da oposição entre salário e lucro, lucro e renda, o ponto de partida da sua investigação. Este antagonismo, que é efectivamente inseparável da própria existência das classes que compõem a sociedade burguesa, formula-o ele ingenuamente como a lei natural, imutável, da sociedade humana. Era atingir o limite, que a ciência burguesa não transporá. A crítica ergueu-se perante ela ainda em vida de Ricardo, na pessoa de Sismondi.
O período seguinte, de 1820 a 1830, distingue-se, em Inglaterra, por uma vida exuberante no domínio da economia política. É a época da elaboração da teoria ricardiana, da sua vulgarização e da sua luta contra todas as outras escolas resultantes da doutrina de Adam Smith. Pouco se sabe no continente sobre estes brilhantes torneios, pois que a polémica ficou quase completamente dispersa em artigos de revista, em panfletos e noutros escritos de circunstância. A situação dessa época explica a ingenuidade desta polémica, embora alguns escritores sem partido tenham já feito da teoria ricardiana uma arma ofensiva contra o capitalismo. Por um lado, a grande indústria ainda estava a sair da sua infância, pois que o início do ciclo periódico, típico da sua vida moderna, só surge com a crise de 1825. Por outro lado, a luta de classes entre o capital e o trabalho, era atirada para segundo plano: no plano político, pela luta dos governos e do feudalismo, agrupados à volta da Santa-Aliança, contra a massa popular, conduzida pela burguesia; no plano económico, pelas disputas do capital industrial com a propriedade aristocrática da terra que, em França, se ocultavam sob o antagonismo da pequena e da grande propriedade, e que, em Inglaterra, se manifestaram abertamente após as "leis dos cereais". A literatura económica inglesa desta época recorda o movimento de fermentação que, em França, se seguiu à morte de Quesnay, mas apenas tal como o verão de S. Martinho lembra a primavera.
É em 1830 que rebenta a crise decisiva.
Em França e na Inglaterra, a burguesia apodera-se do poder político. A partir daí, a luta de classes reveste, na teoria como na prática, formas cada vez mais declaradas, cada vez mais ameaçadoras. É ela quem dá o toque de finados da economia burguesa científica. Doravante, já se não trata de saber se tal ou tal teorema é verdadeiro, mas sim se é agradável ou desagradável, se é aprazível ou não à polícia, útil ou prejudicial para o capital.
A investigação desinteressada cede o lugar ao pugilato pago, a investigação conscienciosa à má consciência, aos miseráveis subterfúgios da apologética. No entanto, os pequenos tratados com que a Anti-corn Law League, sob os auspícios dos fabricantes Bright e Cobden, incomodou o público, ainda oferecem algum interesse, senão científico, pelo menos histórico, por causa dos seus ataques contra a aristocracia fundiária. Mas a legislação livre-cambista de Robert Peel arranca bem depressa à economia vulgar, juntamente com o seu último motivo de queixa, a sua última garra. [5] Veio a revolução continental de 1848-49. Ela repercutiu-se em Inglaterra; os homens que ainda tinham pretensões científicas e desejavam ser mais que simples sofistas e sicofantas das classes superiores procuraram então conciliar a economia política do capital com as reclamações do proletariado que já não se podiam desconhecer. Daí um eclectismo edulcorado, cujo melhor intérprete é John Stuart Mill. Isso era a declaração de falência da economia burguesa, como tão bem mostrou o grande sábio e crítico russo N. Tchernyschevski.
Assim, no momento em que na Alemanha a produção capitalista atingiu a sua maturidade, já na Inglaterra e na França as lutas de classes tinham manifestado ruidosamente o seu carácter antagónico; além disso, o proletariado alemão já estava mais ou menos impregnado de socialismo [e possuía já uma consciência teórica de classe muito mais decidida do que a burguesia alemã]. Assim, ainda mal parecia tornar-se possível entre nós uma ciência burguesa da economia política, e já esta se tinha tornado impossível. Os seus corifeus dividiram-se então em dois grupos: os espertos, ambiciosos, práticos, acorreram em massa sob a bandeira de Bastiat, o representante mais débil - e logo o mais bem sucedido - da economia apologética; os outros, muito compenetrados da dignidade professoral da sua ciência, seguiram John Stuart Mill na sua tentativa de conciliar os inconciliáveis. Tal como na época clássica da economia burguesa, os alemães permaneceram, na época da sua decadência, meros alunos, repetindo a lição, seguindo as pegadas dos mestres, pobres propagandistas ao serviço das grandes casas estrangeiras.
O desenvolvimento específico da sociedade alemã excluía, portanto, qualquer progresso original da economia burguesa, mas não da sua crítica. Na medida em que representa uma classe, tal crítica só pode representar aquela cuja missão histórica é revolucionar o modo-de-produção capitalista e, finalmente, abolir as classes - o proletariado.
Os portavozes da burguesia alemã, cultos ou não, tentaram primeiramente matar pelo silêncio O Capital, o que já tinham conseguido com os meus anteriores trabalhos. Uma vez que essa táctica mostrou já não corresponder aos novos tempos, dedicaram-se a escrever, a pretexto de crítica ao meu livro, instruções "Para a tranquilização da consciência burguesa", no que, porém, encontraram adversários superiores na imprensa operária - ver, por exemplo os artigos de Joseph Dietzgen no Volkstaat-, aos quais até hoje não conseguiram responder 2.
Uma excelente tradução russa de O Capital apareceu a público na Primavera de 1872 em Petersburgo. A edição de 3 000 exemplares já está quase esgotada. Já em 1871, o Sr. N. Sieber, Professor de economia política da universidade de Kiev, no seu livro A Teoria do valor e do Capital em D. Ricardo, apontara a minha teoria do valor, do dinheiro e do capital, nos seus traços fundamentais, como uma continuação necessária da teoria de Smith e Ricardo. O que neste livro sério e profundo surpreende o leitor ocidental é a coerente solidez da posição teórica pura.
O método utilizado em O Capital foi pouco compreendido, a avaliar pelas interpretações contraditórias que dele foram feitas.
Assim, a Révue positiviste de Paris censura-me ao mesmo tempo o ter feito economia política metafísica e- adivinhem o quê? -ter-me limitado a uma simples análise crítica dos elementos dados, em vez de formular receitas (comtianas?) para as panelas do futuro. Quanto à acusação de metafísica, eis o que' pensa N. I. Sieber, professor de economia política na universidade de Kiev: "No que se refere à teoria propriamente dita, o método de Marx é o de toda a escola inglesa, é o método dedutivo cujas vantagens e inconvenientes são comuns aos maiores teóricos de economia política"
Por sua vez, o Sr. Maurice Block acha que o meu método é analítico, chegando a afirmar: "Por esta obra, o Sr. Marx coloca-se entre os espíritos analíticos mais eminentes" 3. Naturalmente, na Alemanha, os autores de recensões gritam por sofística hegeliana. O Mensageiro Europeu, revista russa, publicada em São Petersburgo, num artigo inteiramente consagrado ao método de O Capital, declara que o meu processo de investigação é rigorosamente realista, mas que o método, de exposição é, infelizmente, à maneira dialéctica alemã. "À primeira vista, -diz essa publicação -, se se julgar de acordo com a forma exterior de exposição, Marx é um perfeito idealista, e isso no sentido alemão, isto é, no mau sentido da palavra, Na realidade, porém, ele é infinitamente mais realista que qualquer daqueles que o precederam no campo da economia crítica... Não se pode, de modo algum, chamar-lhe idealista".
Não poderia responder melhor ao escritor russo que por extractos da sua própria crítica, que podem, aliás, interessar o leitor. Após uma citação tirada do meu prefácio a Para a Crítica da Economia Política (Berlim, 1859, p. IV-VII), onde discuto a base materialista do meu método, o autor continua assim: "Uma só coisa preocupa Marx: encontrar a lei dos fenómenos que estuda; e não só a lei que os rege sob a sua forma acabada e na sua ligação observável durante um certo período de tempo. Não: o que lhe interessa, acima de tudo, é a lei da sua transformação, do seu desenvolvimento, isto é, a lei da sua passagem de uma forma a outra, de uma ordem de ligação a outra. Uma vez descoberta esta lei, examina detalhadamente os efeitos através dos quais ela se manifesta na vida social. Assim, pois, é apenas esta a preocupação de Marx: demonstrar por meio de uma investigação rigorosamente científica a necessidade de determinadas ordens de relações sociais, e, tanto quanto possível, verificar os factos que lhe serviram de ponto de partida e de ponto de apoio. Para isso, basta que demonstre, ao mesmo tempo que a necessidade da organização actual, a necessidade de uma outra organização à qual a primeira tem inevitavelmente de passar, creia nela ou não a humanidade, tenha dela ou não consciência. Ele considera o movimento social como um encadeamento natural de fenómenos históricos, encadeamento sujeito a leis que não só são independentes da vontade, da consciência e dos desígnios do homem, mas que, pelo contrário, determinam a sua vontade, a sua consciência e os seus desígnios (...) Se o elemento consciente desempenha um papel tão secundário na história da civilização, daí resulta naturalmente que a crítica, cujo objecto é a própria civilização, não pode ter como base nenhuma forma da consciência nem qualquer facto da consciência. Não é a ideia, mas apenas o fenómeno exterior que pode servir-lhe de ponto de partida. A crítica limita-se a comparar, a confrontar um facto, não com a ideia, mas com outro facto; só exige que os dois factos tenham sido observados tão exactamente quanto possível e que na realidade constituam um em relação ao outro duas fases de desenvolvimento diferentes; acima de tudo, exige que a série de fenómenos, a ordem na qual aparecem como fases de evolução sucessivas, sejam estudadas com não menos rigor. Mas, dir-se-á, as leis gerais da vida económica são só umas, sempre as mesmas, quer se apliquem ao presente ou ao passado. É precisamente isto que Marx contesta; para ele estas leis abstractas não existem (...) pelo contrário, segundo ele, cada período histórico tem as suas próprias leis (...) Desde que a vida saiu de um determinado período de desenvolvimento, desde que passa de uma fase a outra, começa também a ser regida por outras leis. Em suma, a vida económica apresenta, no seu desenvolvimento histórico, os mesmos fenómenos que se encontram noutros ramos da biologia (...) Os velhos economistas enganavam-se sobre a natureza das leis económicas quando as comparavam às leis da física e da química (...) Uma análise mais aprofundada dos fenómenos mostrou que os organismos sociais se distinguem tanto uns dos outros como os organismos animais e vegetais (...) Mais: um único e mesmo fenómeno obedece (...) a leis absolutamente diferentes logo que a estrutura global destes organismos se altere, logo que os seus órgãos particulares variem, logo que as condições em que funcionam mudem, etc. Marx nega, por exemplo, que a lei da população seja a mesmo em todos os tempos e em todos os lugares. Afirma, pelo contrário, que cada época económica tem a sua lei de população própria (...) que o que se passa na vida económica depende do grau de produtividade das forças económicas (...). Com desenvolvimentos diferentes da força produtiva, mudam as relações sociais e as leis que as regem. Situando-se nesta perspectiva para examinar a ordem económica capitalista, Marx nada mais faz que formular, de uma maneira rigorosamente científica, a tarefa imposta a qualquer estudo exacto da vida económica... O valor científico de tal estudo está na explicação das leis específicas que regem o nascimento, a vida, o crescimento e a morte de um determinado organismo social e a sua substituição por outro superior; é esse valor que a obra de Marx possui".
Definindo o que ele chama o meu método de investigação com tanta justeza, e, no que respeita à aplicação que dele fiz, com tanta benevolência, o que definiu o autor, se não o método dialéctico?
Certamente, o processo de exposição deve distinguir-se formalmente do processo de investigação. Cabe à investigação apropriar-se da matéria em todos os seus pormenores, analisar as diversas formas do seu desenvolvimento e descobrir a sua relação íntima. É somente depois de concluída esta tarefa que o movimento real pode ser exposto no seu conjunto. Se se conseguir chegar a esse ponto, de tal modo que a vida da matéria se reflicta na sua reprodução ideal, isso pode levar a acreditar numa construção a priori.
O meu método dialéctico não só difere, pela sua base, do método hegeliano, mas é exactamente o seu oposto. Para Hegel, o movimento do pensamento, que ele personifica com o nome de Ideia, é o demiurgo da realidade, que não é senão a forma fenomenal da Ideia. Para mim, pelo contrário, o movimento do pensamento é apenas o reflexo do movimento real, transposto e traduzido no cérebro do homem.
O lado místico da dialéctica hegeliana critiquei-o há cerca de trinta anos, numa época em que ainda estava em moda. No entanto, precisamente na altura em que eu preparava o primeiro volume de O Capital, os epígonos impertinentes, arrogantes e medíocres que agora têm a primeira palavra na Alemanha culta, compraziam-se em tratar Hegel tal como no tempo de Lessing o bravo Moses Mendelssohn tratava Spinoza: como um "cão morto". Declarei-me então abertamente discípulo desse grande pensador, chegando mesmo, aqui e além, a jogar com os seus modos de expressão peculiares, no capítulo sobre a teoria do valor.
Mas ainda que, devido ao seu quiproquó, Hegel desfigure a dialéctica pelo misticismo, não deixa de ter sido ele o primeiro a expor o seu movimento de conjunto. Em Hegel ela encontra-se de cabeça para baixo; basta virá-la ao contrário para lhe encontrar uma fisionomia perfeitamente razoável, [para descobrir sob o invólucro místico o seu núcleo racional].
Na sua forma mistificada, a dialéctica tornou-se uma moda na Alemanha, porque parecia glorificar as coisas existentes. No seu aspecto racional ela é um escândalo e uma abominação para as classes dominantes e para os seus ideólogos doutrinários, porque na concepção positiva das coisas existentes ela inclui, ao mesmo tempo, a inteligência da sua negação fatal, da sua destruição necessária; porque, apoderando-se do próprio movimento, de que qualquer forma feita não passa de uma configuração transitória, nada se lhe pode impor; porque é essencialmente crítica e revolucionária.
O movimento contraditório da sociedade capitalista faz-se sentir ao burguês prático da maneira mais evidente pelas vicissitudes da indústria moderna através do seu ciclo periódico, e do seu ponto culminante - a crise geral. Apercebemos já o retorno dos seus pródromos. A crise aproxima-se mais uma vez. Pela universalidade do seu campo de acção e pela intensidade dos seus efeitos, vai fazer com que a dialéctica entre mesmo na cabeça dos trapaceiros que cresceram como cogumelos no novo Santo-Império Germano-Prussiano.
Londres, 24 de Janeiro de 1873.
Karl Marx
ADVERTÊNCIA
O Sr. J. Roy empenhou-se em apresentar uma tradução tão exacta, até literal, quanto possível; cumpriu escrupulosamente a sua missão. Mas estes mesmos escrúpulos obrigaram-me a modificar a redacção, a fim de a tornar mais acessível ao leitor. Estas alterações, feitas sem continuidade, pois que o livro se publicava em fascículos, foram objecto de atenção desigual, o que havia de produzir incoerências de estilo.
Uma vez empreendido esse trabalho de revisão, fui levado a aplicá-lo também no conteúdo do texto original (a segunda edição alemã), simplificando alguns tópicos, completando outros, incluindo material histórico ou estatístico adicional, acrescentando observações críticas, etc. Sejam quais forem as imperfeições literárias desta edição francesa, ela possui um valor científico independente do original e deve ser consultada mesmo pelos leitores que dominam a língua alemã.
Reproduzo a seguir as partes do posfácio da segunda edição alemã que tratam do desenvolvimento da economia política na Alemanha e do método utilizado nesta obra.
Londres, 28 de Abril de 1875.
Karl Marx
Notas Originais:
1 Isso pareceu-me tanto mais necessário quanto é certo que mesmo o escrito de F. Lassalle, contra Schulze-Delitzsch, na parte em que declara dar a "quinta-essência" das minhas ideias sobre este assunto, contém graves erros. Foi, sem dúvida, com um fim de propaganda que F. Lassalle, evitando sempre indicar a fonte, extraiu dos meus escritos, quase palavra por palavra, todas as proposições teóricas gerais dos seus trabalhos económicos, sobre o carácter histórico do capital, por exemplo, sobre os laços que ligam as relações de produção e o modo-de-produção, etc. e até a terminologia criada por mim. Evidentemente, não tenho nada a ver com os detalhes em que ele entrou, nem com as consequências práticas a que foi conduzido e de que não tenho de ocupar-me aqui. [1a] (retornar ao texto)
2 Os ilegíveis parlapatães da economia vulgar alemã censuram o estilo e o modo de exposição do meu livro. Ninguém pode julgar mais severamente do que eu as deficiências literárias de O Capital. Contudo, para proveito e alegria destes senhores e do seu público, não resisto a citar duas opiniões: uma inglesa, outra russa. A Saturday Review, perfeitamente hostil às minhas ideias, diz na sua recensão à primeira edição alemã: a exposição "confere, mesmo aos mais áridos problemas económicos, um encanto (charm) particular"; e a Gazeta de S. Petersburgo, na sua edição de 20 de Abril de 1872, aponta, entre outras coisas, o seguinte: "A exposição, exceptuadas umas poucas partes demasiado especializadas, caracteriza-se pela sua acessibilidade, clareza e, apesar do alto nível cientifico do assunto, por uma inusitada vivacidade. Neste aspecto, o autor não se assemelha (...), nem de longe, à maioria dos eruditos alemães, que (...) escrevem os seus livros numa linguagem tão obscura e tão árida que estoira a cabeça do comum dos mortais". Aos leitores da actual literatura professoral. alemã-nacional-liberal. não é a cabeça que estoira, mas outra coisa completamente diferente... (retornar ao texto)
3 "Les Théoriciens du socialisme en Allemagne", In Journal des économistes, Juillet-aout, 1872. (retornar ao texto)
Notas dos Tradutores:
(*) "É de ti que a fábula fala!" (Horácio, Sátiras). (retornar ao texto)
(**) "O morto domina o vivo." (retornar ao texto)
(***) "Segue o teu caminho e deixa falar o mundo!" (Dante, Divina Comédia). (retornar ao texto)
[1] Na realidade a referida obra está reunida em três capitulos da [Parte I] da edição definitiva de O Capital, secção que na 1ª edição constituía o Capítulo1. Na ed. francesa e na 2ª ed. alemã Marx reformou a arquitectura do livro, aliás de modo diverso para cada uma (cfr., por exemplo, infra nota [51]). Assim, neste prefácio, onde se lê "primeiro capítulo" deve ler-se "primeira [parte]". (retornar ao texto)
[1a] Ferdinand Lassale (m. 1864) dirigente operário alemão e autor de vasta obra, especialmente sobre o direito, mas também sobre outros assuntos. Fundou em 1863 a União Geral dos Trabalhadores Alemães que em 1875 em Gotha se uniu com o Partido Social-Democrata Alemão, que fora fundado em 1869 em Eisenach. O seu nome ficou ligado fundamentalmente à ideia da "revolução a partir de cima", isto é, a partir do estado, e à política de compromisso de classes. Esta e outras ideias lassaleanas perduraram no movimento operário alemão, encontrando alguma expressão no programa de compromisso saído do Congresso de Gotha de 1875. As ideias lassalistas estão entre os erros apontados por Marx a esse programa, num texto desse ano hoje conhecido por Crítica do Programa de Gotha. Deste importante texto existem recentes edições em Portugal. (retornar à nota 1)
[2] Marx não concluiu para publicação senão o livro I. Os livros II e III foram seleccionados e publicados por Engels respectivamente em 1885 e 1894. Os materiais destinados ao livro IV foram publicados por Kautsky entre 1905-10. Em vez dos dois volumes previstos, vieram a ocupar 6 grossos volumes com alguns milhares de páginas. (retornar ao texto)
[3] A edição francesa saiu em fascículos de Agosto de 1872 a Maio de 1875. Marx haveria de incluir um posfácio, também contido na presente edição. (retornar ao texto)
[4] Algumas passagens deste posfácio foram transportadas para a edição francesa (cfr. o posfácio a essa edição). Essas passagens são aqui dadas pela versão francesa. Em alguns casos acrescentámos, entre parêntesis rectos, expressões do original alemão não incluídas na edição francesa. (retornar ao texto)
[5] Anti-Corn-Law-League (Liga contra a lei dos cereais). Associação livre-cambista, fundada em 1838 pelos industriais Cobden e Bright, destinada a lutar pela abolição da lei dos cereais de 1815 que limitava fortemente a importação de cereais, favorecendo portanto a aristocracia agrária. Para a burguesia industrial importava revogar essa lei, a fim de enfraquecer a aristocracia fundiária e de, pela baixa do preço do pão, amortecer a pressão sobre os salários. A lei veio efectivamente a ser revogada em 1846. (retornar ao texto)
Inclusão | 13/01/2005 |