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Livro Primeiro: O processo de produção do capital
Sétima Seção: O processo de acumulação do capital
Vigésimo quarto capítulo: A chamada acumulação original
4. Génese do rendeiro capitalista
Depois de termos considerado a criação violenta de proletários fora-da-lei, a disciplina sangrenta que os transformava em operários assalariados, as sórdidas acções principais(1*) que, com o grau de exploração do trabalho, aumentam policialmente a acumulação do capital, pergunta-se: de onde vêm originalmente os capitalistas? Pois a expropriação do povo do campo, imediatamente, só cria grandes proprietários fundiários. No que concerne à génese do rendeiro, podemos, por assim dizer, tocá-la com as mãos, porque ela é um processo vagaroso, que se estende por muitos séculos. Os próprios servos, juntamente também com os pequenos possuidores de terra livres, encontravam-se em relações de posse muito variadas e eman- ciparam-se, portanto, em condições económicas também muito variadas.
Em Inglaterra, a primeira forma do rendeiro é o bailiff, ele próprio servo. A sua posição é semelhante à do villicus(2*) da Roma antiga, só que numa esfera de acção mais estreita. Durante a segunda metade do século XIV, foi substituído por um rendeiro que o landlord provia de sementes, gado e utensílios agrícolas. A sua situação não é muito diversa da do camponês. Só que ele explora mais trabalho assalariado. Em breve se toma métayer(3*), semi-rendeiro. Ele avança uma parte do capital agrícola, o landlord a outra. Ambos partilham o produto total em proporção contratualmente determinada. Esta forma desaparece rapidamente em Inglaterra, para dar lugar à do rendeiro propriamente dito, que valoriza o seu próprio capital pelo emprego de operários assalariados e paga uma parte do sobreproduto, em dinheiro ou in natura, ao landlord como renda fundiária.
Enquanto, durante o século XV, o camponês independente e o criado de lavoura, trabalhando para si ao mesmo tempo do que servindo assalariadamente, se enriqueciam pelo seu trabalho, as circunstâncias do rendeiro e do seu campo de produção permaneciam igualmente medíocres. A revolução na agricultura, no último terço do século XV, que prossegiu durante quase todo o século XVI (com excepção, contudo, dos seus últimos decénios) enriqueceu-o tão rapidamente quanto ele empobreceu o povo do campo(227). A usurpação de pastagens comunais, etc., permitiu-lhe um grande aumento do seu efectivo pecuário quase sem custos, enquanto o gado lhe fornecia um meio mais rico de adubação para o cultivo do solo.
No século XVI, sobrevêm um momento decisivamente importante. Naquela altura, os contratos de arrendamento duravam muito tempo, frequentemente, 99 anos. A queda persistente do valor dos metais preciosos e, portanto, do dinheiro, foi para os rendeiros uma mina de ouro. Abstraindo de todas as outras circunstâncias anteriormente discutidas, ela afundou o salário. Uma fracção deste foi parar ao lucro da quinta. A subida contínua dos preços do cereal, lã, carne, em suma: de todos os produtos da agricultura, dilatou o capital-dinheiro do rendeiro sem interferência dele, enquanto a renda fundiária que ele tinha de pagar fora contratada num valor monetário antiquado(228). Deste modo, ele enriqueceu, simultaneamente, à custa dos seus operários assalariados e à custa do seu landlord. Nenhum espanto, portanto, se a Inglaterra, nos finais do século XVI, possuía uma classe de «rendeiros capitalistas», ricos, para as condições daquela altura(229).
Notas de rodapé:
(1*) No orginal: Haupt- und Staatsaktion. Esta expressão pode ter dois sentidos principais. Como se refere na nota 83 das Collected Works, Karl Marx/Frederik Engels, volume 10, Progress Publishers, Moscow, 1978: «Primeiro, no século XVII e na primeira metade do século XVIII designava peças representadas por companhias alemãs ambulantes. As peças eram tragédias históricas, bastante informes, bombásticas e ao mesmo tempo grosseiras e burlescas. Segundo, este termo pode designar acontecimentos políticos de primeiro plano. Foi usado neste sentido por uma corrente da ciência histórica alemã, conhecida por “historiografia objectiva”. Leopold Ranke foi um dos seus principais representantes. Considerava Haupt- und Staatsaktion como o assunto principal.» (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(2*) Em latim no texto: vílico. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(3*) Em francês no texto: parceiro. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(227) Harrison, na sua Description of England, diz que «os rendeiros, apesar de, porventura, as quatro libras da renda antiga terem aumentado para quarenta, cinquenta ou cem libras, se para o fim do seu contrato não tiverem posto de lado seis ou sete anos de renda pensarão ainda que os seus ganhos são muito pequenos». (retornar ao texto)
(228) Acerca da influência da depreciação da moeda no século xvi sobre as diversas classes da sociedade, veja-se: A Compendious or Briefe Examination of Certayne Ordinary Complaints of Divers of our Countrymen in these our Days. By W. S., Gentleman., (London, 1581.) A forma de diálogo deste escrito levou a que durante muito tempo fosse atribuído a Shakespeare e, ainda em 1751, ele foi novamente publicado com o seu nome. O seu autor é William Stafford. Numa passagem, o cavaleiro (knight) raciocina como segue:
«Knight: V., meu vizinho, lavrador, V., mestre negociante de tecidos, e V., compadre tanoeiro, juntamente com outros artífices, podeis salvar-vos bastante bem. Pois, por muito que todas as coisas estejam mais caras do que estavam, vós aumentais outro tanto o preço das vossas mercadorias e ocupações, que vendeis de novo. Mas nós não temos nada para vender, cujo preço possamos subir, para contrabalançar aquelas coisas que temos de comprar de novo.» Numa outra passagem, o knight pergunta ao doutor: «Rogo-vos que [me digais] quais são essas espécies [de pessoas] a que vos referis. E, em primeiro lugar, aquelas que pensais que, por esse facto, não terão qualquer perda? — Doutor: Refiro-me a todos aqueles que vivem de comprar e vender, pois, como compram caro, vendem em conformidade. — Knight: Qual é a espécie seguinte que dizeis que ganharia com isso? — Doutor: Deveras, todos aqueles que têm tomadas quintas, amanhadas» (i. é, cultivadas) «por eles, com a renda antiga, pois quando pagam pela taxa antiga vendem pela nova — isto é, pagam muito barato pela sua terra e vendem todas as coisas que nela crescem caro. — Knight: Qual é aquela espécie que haveis dito que teria, consequentemente, uma perda maior do que estes homens têm de lucro? — Doutor: São todos os nobres, fidalgos e todos os outros que ou vivem de uma renda fixa ou estipêndio, ou não amanham» (cultivam) «o solo ou não se ocupam a comprar e a vender.» (retornar ao texto)
(229) Em França, o régisseur, o intendente e recebedor das prestações para os senhores feudais, na Baixa Idade Média, torna-se rapidamente um homme d’affaires que, por extorsão, intrujice, etc., trepa para capitalista. Estes régissseurs eram, muitas vezes, eles próprios senhores distintos. P. ex. «É a conta que o senhor Jacques de Thoraisse, cavaleiro castelão de Besançon, dá so senhor que, em Dijon, tem as contas do senhor duque e conde de Borgonha das rendas pertencentes à dita castelania desde o XXV dia de Dezembro de MCCCLIX até ao XXVIII dia de Dezembro de MCCCLX, etc.» (Alexis Monteil, Histoire des matériaux manuscrits, etc., pp. 234, 235(4*).) Verifica-se já aqui como em todas as esferas da vida social a parte de leão cabe ao intermediário. No campo económico, p. ex., financeiros, homens da Bolsa, comerciantes, pequenos merceeiros, absorvem a nata do negócio; no direito civil, o advogado tosquia as partes; na política, o representante significa mais do que os eleitores, o ministro mais do que o soberano; na religião, deus é afastado para segundo plano pelo «mediador» e este é de novo repelido pelos padres que, novamente, são intermediários indispensáveis entre o bom pastor e as suas ovelhas. Tal como em Inglaterra, também em França os grandes territórios feudais estavam repartidos em infinitas pequenas explorações, mas em condições incomparavelmente mais desfavoráveis para o povo do campo. Durante o século XIV, nasceram as quintas, fermes ou terriers. O seu número cresceu constantemente, muito acima de 100 000. Pagavam uma renda fundiária variável de um doze avos a um quinto do produto, em dinheiro ou in natura. Os terriers eram feudos, subfeudos, etc. (fiefs, arrière-fiefs), segundo o valor e extensão dos domínios, em que muitos só contavam poucos arpents(5*). Todos estes terriers possuíam jurisdição num grau qualquer sobre os ocupantes do solo; havia quatro graus. Conceber-se-á a opressão do povo do campo sob todos estes pequenos tiranos. Monteil diz que havia então, em França, 160 000 juízos, onde hoje 4000 tribunais (incluindo juízos de paz) bastam. (retornar ao texto)
(4*) Na edição francesa: p. 234. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(5*) Em francês no texto: arpentes. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
Inclusão | 23/10/2019 |