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O Capital
Crítica da Economia Política
Karl Marx

Livro Primeiro: O processo de produção do capital

Quarta Secção: A produção da mais-valia relativa
Décimo terceiro capítulo. Maquinaria e grande indústria


4. A fábrica


capa

No início deste capítulo considerámos o corpo da fábrica, a articulação do sistema de máquinas. Vimos, então, como a maquinaria multiplica o material humano de exploração do capital pela apropriação do trabalho feminino e infantil, como ela confisca todo o tempo de vida do operário pela extensão desmedida do dia de trabalho, e como o seu progresso, que permite fornecer um produto em enorme crescimento num tempo sempre mais curto, serve por fim de meio sistemático para fazer fluir mais trabalho em cada momento do tempo ou explorar cada vez mais intensivamente a força de trabalho. Viramo-nos agora para a fábrica no seu todo, e precisamente na sua figura mais desenvolvida.

O Dr. Ure, o Píndaro da fábrica automática, descreve-a, por um lado, como

«cooperação combinada de muitas ordens de gente trabalhadora, adulta e jovem, para assistir com destreza diligente um sistema de máquinas produtivas, continuamente impelido por uma força central» (o primeiro motor),

e por outro lado, como

«um vasto autómato, composto de vários órgãos mecânicos e intelectuais, agindo em ininterrupto concerto para a produção de um objecto comum — estão todos eles subordinados a uma força motriz auto-regulada».

Estas duas expressões não são de maneira nenhuma idênticas. Numa, o operário total combinado ou corpo social do trabalho aparece como sujeito predominante e o autómato mecânico como objecto; na outra, o sujeito é o próprio autómato e os operários, enquanto órgãos conscientes, estão apenas coordenados com os seus órgãos desprovidos de consciência e, com estes, subordinados à força central de movimento. A primeira expressão vale para toda a aplicação possível da maquinaria em grande; a outra caracteriza a sua aplicação capitalista e, por isso, o sistema fabril moderno. Ure gosta por isso também de expor a máquina central, da qual parte o movimento, não só como autómato, mas como autocrata.

«Nestes espaçosos salões a força benigna do vapor convoca para redor de si as suas miríades de servidores prontos.»(1*)

Com a ferramenta de trabalho, também a virtuosidade no seu manejo passa do operário para a máquina. A capacidade de rendimento da ferramenta é emancipada das barreiras pessoais da força de trabalho humana. Com isso é suprimida a base técnica em que assenta a divisão do trabalho na manufactura. Para o lugar da hierarquia de operários especializados que a caracteriza entra, portanto, na fábrica automática, a tendência para a igualização ou nivelamento dos trabalhos que os ajudantes da maquinaria têm de executar(2*), para o lugar das diferenças artificialmente criadas entre os operários parcelares entram predominantemente as diferenças naturais de idade e sexo.

Na medida em que a divisão do trabalho reaparece na fábrica automática, é antes de mais repartição de operários pelas máquinas especializadas e de massas de operários, que não formam ainda quaisquer grupos articulados, pelos diferentes departamentos da fábrica, onde trabalham em máquinas-ferramentas similares, alinhadas em filas ao lado umas das outras, havendo entre eles portanto apenas cooperação simples. O grupo articulado da manufactura é substituído pela conexão do operário principal com poucos ajudantes. A cisão essencial é a de operários que estão ocupados realmente com as máquinas-ferramentas (incluem-se aqui alguns operários para vigilância e ou alimentação da máquina motriz) e de meros serventes (quase exclusivamente crianças) desses operários com máquinas. Entre os serventes encontram-se mais ou menos todos os «feeders» (os que estendem meramente às máquinas material de trabalho). Além destas classes principais surge um pessoal, numericamente insignificante, que se ocupa do controlo de toda a maquinaria e da sua constante reparação, como engenheiros, mecânicos, carpinteiros, etc. Esta é uma classe operária superior, em parte cientificamente cultivada, em parte de ofício [handwerksmqfiige] fora do círculo dos operários fabris e a eles apenas agregada(4*). Esta divisão do trabalho é puramente técnica.

Todo o trabalho com a máquina exige aprendizagem precoce por parte do operário para que ele aprenda a adaptar o seu próprio movimento ao movimento uniformemente contínuo de um autómato. Na medida em que a própria maquinaria total forma um sistema de múltiplas máquinas combinadas e operando em simultâneo, a cooperação que nela assenta exige também uma repartição de grupos de operários de diversos tipos pelas máquinas dos diversos tipos. Mas o funcionamento com máquinas suprime a necessidade de fixar esta repartição à maneira da manufactura através da contínua apropriação do mesmo operário à mesma função(5*). Uma vez que o movimento total da fábrica já não parte do operário, mas da máquina, a contínua mudança das pessoas pode ter lugar sem interrupção do processo de trabalho. A prova mais flagrante disto é fornecida pelo sistema de turnos [Relaissytem][N137] posto em acção durante a revolta dos fabricantes ingleses de 1848-1850. Por fim, a velocidade com que o trabalho com a máquina é aprendido numa idade jovem elimina igualmente a necessidade de instruir uma classe particular de operários exclusivamente para operários com máquinas(7*). Os serviços dos meros serventes são porém substituíveis na fábrica, em parte, por máquinas(10*) e, em parte, permitem, em virtude da sua completa simplicidade, uma mudança rápida e constante das pessoas sobrecarregadas com este trabalho pesado.

Embora agora a maquinaria tecnicamente atire pela borda fora o velho sistema da divisão do trabalho, primeiro, continua a arrastar-se na fábrica por hábito como tradição da manufactura, para depois ser reproduzido e consolidado sistematicamente pelo capital, de uma forma ainda mais repugnante, como meio de exploração da força de trabalho. Da especialidade de manejar durante uma vida inteira uma ferramenta parcelar advém a especialidade de servir durante uma vida inteira uma máquina parcelar. A maquinaria é usada abusivamente para transformar o próprio operário, desde a infância, numa parte de uma máquina parcelar(11*). Assim, não só são reduzidos significativamente os custos precisos para a sua própria reprodução, mas se completa também, ao mesmo tempo, a sua desamparada dependência do todo da fábrica, portanto, do capitalista. Aqui, como em todo o lado, temos de distinguir entre a maior produtividade devida ao desenvolvimento do processo social de produção e a maior produtividade devida à sua exploração capitalista.

Na manufactura e no artesanato o operário serve-se da ferramenta, na fábrica ele é que serve a máquina. Ali, é dele que parte o movimento do meio de trabalho e, aqui, ele tem de seguir esse movimento. Na manufactura, os operários são membros de um mecanismo vivo. Na fábrica existe um mecanismo morto, independente deles, e eles são incorporados nele como apêndices vivos.

«O lúgubre ramerrão de um tormento infindável do trabalho em que o mesmo processo mecânico é percorrido sempre de novo assemelha-se ao trabalho de Sísifo; a carga do trabalho, tal como o rochedo, vai cair sempre de novo em cima do extenuado operário.»(13*)

Enquanto o trabalho com máquinas agride ao máximo o sistema nervoso, oprime o multivariado jogo dos músculos e confisca toda a actividade livre, física e espiritual(14*). Até o aligeiramento do trabalho se torna num meio de tortura, na medida em que a máquina não liberta o operário do trabalho, mas sim o seu trabalho de conteúdo. Toda a produção capitalista, enquanto não é só processo de trabalho, mas simultaneamente um processo de valorização do capital, tem em comum o facto de não ser o operário que emprega a condição de trabalho, mas, inversamente, a condição de trabalho que emprega o operário. Mas só com a maquinaria esta inversão adquire realidade tecnicamente palpável. Através da sua transformação num autómato, o meio de trabalho, durante o próprio processo de trabalho, enfrenta o operário como capital, como trabalho morto, que domina e suga a força de trabalho viva. A cisão das potências espirituais do processo de produção relativamente ao trabalho manual e a transformação dessas potências em poderes do capital sobre o trabalho, como antes já foi aludido, completa-se na grande indústria construída na base da maquinaria. A destreza de detalhe do operário com máquinas individual, esvaziado, desaparece como uma pequeníssima coisa acessória ante a ciência, as gigantescas forças da Natureza e o trabalho social de massas que estão encorporadas no sistema de máquinas e formam com ele o poder do «patrão» (master). Este «patrão», em cujo cérebro a maquinaria e o seu monopólio da mesma estão inseparavelmente fundidos, em casos de colisão dirige-se aos «braços» com desdém:

«Os operários fabris deviam guardar em salutar lembrança o facto de o seu trabalho ser realmente uma espécie inferior de trabalho especializado; e que não há nenhum que seja mais facilmente adquirido ou mais bem remunerado, pela sua qualidade, ou que, com um curto treino do menos experto, possa ser mais rápida quanto abundantemente adquirido [...] A maquinaria do patrão desempenha realmente um papel muito mais importante no negócio da produção do que o trabalho e a destreza do operário, que seis meses de educação podem ensinar e um trabalhador comum pode aprender.»(15*)

A subordinação técnica do operário à marcha uniforme do meio de trabalho e a composição peculiar do corpo de trabalho por indivíduos de ambos os sexos e dos mais diversos escalões etários criam uma disciplina tipo caserna que se perfaz no regime fabril completo e desenvolve inteiramente o trabalho de supervisão, anteriormente referido, portanto, simultaneamente, a divisão dos operários em operários manuais e supervisores do trabalho, em soldados rasos da indústria e sargentos da indústria.

«A principal dificuldade [na fábrica automática] [...] consiste [...] sobretudo em treinar seres humanos a renunciarem aos seus inconstantes hábitos de trabalho e a identificarem-se com a regularidade invariável do autómato complexo. Inventar e administrar um código bem sucedido de disciplina fabril, adequado às necessidades da diligência fabril, foi a empresa hercúlea, a nobre proeza de Arkwright! Mesmo hoje em dia, quando o sistema está perfeitamente organizado [...], considera-se quase impossível converter pessoas que passaram a idade da puberdade em braços úteis para a fábrica.»(16*)

O código fabril, no qual o capital formula, como um legislador privado, a sua autocracia sobre os seus operários — sem a divisão dos poderes tão querida da burguesia noutras ocasiões e o sistema representativo ainda mais querido —, é apenas a caricatura capitalista da regulamentação social do processo de trabalho, que se torna necessária com a cooperação em grande escala e a aplicação de meios de trabalho comuns, nomeadamente a maquinaria. Para o lugar do chicote do condutor de escravos entra o livro de penalizações do supervisor. Todas as penas se reduzem naturalmente a multas em dinheiro e descontos no salário e a perspicácia legisladora dos Licurgos fabris faz com que, para eles, seja ainda se possível mais rentável a violação da lei do que o seu cumprimento(17*).

Nós só aludimos às condições materiais em que o trabalho fabril é executado. Todos os órgãos dos sentidos são igualmente afectados pela subida artificial de temperatura, pela atmosfera impregnada de resíduos da matéria-prima, pelo ruído atordoante, etc, abstraindo do perigo de vida no meio de maquinaria densamente amontoada que, com a regularidade das estações do ano, produz a lista de baixas desta batalha industrial(22*). A economização nos meios sociais de produção, só no sistema fabril amadurecido como em estufa se torna nas mãos do capital, simultaneamente, roubo sistemático das condições de vida do operário durante o trabalho, roubo de espaço, ar, luz e meios de protecção pessoal contra as circunstâncias do processo de produção que põem em perigo a vida e são contrárias à sua saúde, para não falar já do roubo de dispositivos que visam o conforto do operário(24*).

É sem razão que Fourier denomina as fábricas de «presídios temperados»[N139] ?(25*)


Notas de rodapé:

(1*) Ure, 1. c, p. 18. (retornar ao texto)

(2*) L. c, p. 20. Cf. Karl Marx, Misère, etc., pp. 140, 141(3*). (retornar ao texto)

(3*) Ver Karl Marx, Miséria da Filosofia, Edições «Avante!», Lisboa, 1991, pp. 125-126. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(4*) É característico da intenção da fraude estatística — que aliás também seria ainda demonstrável em detalhe — que a legislação fabril inglesa exclua expressamente da sua esfera de acção os operários referidos em último lugar no texto como não operários fabris, enquanto por outro lado os «Returns» publicados pelo Parlamento expressamente incluem igualmente não só engenheiros, mecânicos, etc, mas também directores de fábrica, vendedores, moços de recados, encarregados de armazém, embaladores, etc, em suma, toda a gente, com excepção do próprio proprietário da fábrica, na categoria de operários fabris. (retornar ao texto)

(5*) Ure admite isto. Ele diz que, «em caso de necessidade», os operários podem ser mudados, segundo a vontade do director, de uma máquina para outra e exclama triunfante: «Uma tal mudança está em directa contradição com a velha rotina que divide o trabalho e a um operário atribui a tarefa de modelar a cabeça de uma agulha(6*) e a outro o aguçar da ponta.»[N136] Ele deveria ter-se antes perguntado porque é que esta «velha rotina» na fábrica automática só «em caso de necessidade» é abandonada. (retornar ao texto)

(6*) Marx traduz: Stecknadel, alfinete, seguindo aliás a versão francesa da obra de Ure, que regista épingle. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(7*) Quando é preciso, como p. ex. durante a guerra civil americana, o operário fabril é utilizado pelo burguês excepcionalmente para os trabalhos mais grosseiros, como construção de estradas, etc. Os «ateliers nationaux»(8*) ingleses do ano de 1862 e seguintes para os operários do algodão desocupados distinguiam-se dos franceses de 1848 porque nestes o operário tinha de realizar trabalhos improdutivos à custa do Estado e naqueles executava trabalhos citadinos produtivos para vantagem do burguês e até mesmo mais barato do que o operário regular, com o qual era, assim, posto em concorrência. «O aspecto físico dos operários do algodão melhorou inquestionavelmente. Atribuo isto..., no que toca aos homens, ao trabalho ao ar livre em obras públicas.» (Trata-se aqui dos operários fabris de Preston, ocupados no «Preston Moor»(9*).) (Rep. of Insp. of Fact., Oct., 1863, p. 59.) (retornar ao texto)

(8*) Em francês no texto: «oficinas nacionais». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(9*) Em inglês no texto: «Pântano de Preston». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(10*) Exemplo: os diversos aparelhos mecânicos que são introduzidos na fábrica de lã a partir da lei de 1844 para substituir o trabalho infantil. Logo que os filhos dos próprios senhores fabricantes tiverem de fazer a «sua escola» como serventes da fábrica, este domínio da mecânica, quase ainda por cultivar, terá em breve uma prosperidade notável. «De entre a maquinaria as máquinas de fiar automáticas (self-acting mules) são talvez tão perigosas como quaisquer outras. A maior parte dos acidentes, causados por elas, foram com crianças pequenas por rastejarem debaixo das máquinas de fiar para varrerem o chão enquanto elas estavam em movimento. Vários 'vigilantes' ('minders')» (operários das máquinas de fiar) «foram» (pelos inspectores fabris) «multados por esta transgressão, mas sem grande benefício geral. Se os construtores da máquina tivessem inventado um sistema de autolimpeza, para cuja utilização pudesse ser evitada a necessidade dessas crianças pequenas gatinharem por debaixo da maquinaria, seria um acrescento feliz às nossas medidas de protecção.» (Reports of Insp. of Factories for 31st October, 1866, p. 63.) (retornar ao texto)

(11*) Aprecie-se por isso o fabuloso achado de Proudhon que «constrói» a maquinaria não como síntese de meios de trabalho, mas como síntese de trabalhos parcelares para os próprios operários(12*). (retornar ao texto)

(12*) Ver Karl Marx, Miséria da Filosofia, Edições «Avante!», Lisboa, 1991, capítulo II, §2. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(13*) F. Engels, Lage, etc, p. 217. Mesmo um livre-cambista do mais ordinário e optimista, o sr. Molinari, observa: «Um homem gasta-se mais depressa a vigiar, quinze horas por dia, a evolução uniforme de um mecanismo do que a exercer, no mesmo espaço de tempo, a sua força física. Este trabalho de vigilância, que serviria talvez de útil ginástica para a inteligência se não fosse demasiado prolongado, destrói a longo prazo, pelo seu excesso, tanto a inteligência como o próprio corpo.» (G. de Molinari, Études économiques, Paris, 1846, [p. 49].) (retornar ao texto)

(14*) F. Engels, 1. c, p. 216. (retornar ao texto)

(15*) «The factory operatives should keep in wholesome remembrance the fact that theirs is really a low species of skilled labour; and that there is none which is more easily acquired or of its quality more amply remunerated, or which, by a short training of the least expert can be more quickly as well as abundantly acquired... The master’s machinery really plays a far more important part in the business of production than the labour and the skill of the operative, which six months’ education can teach, and a common labourer can learn.» (The Master Spinners’ and Manufacturers’ Defence Fund. Report of the Committee, Manchester, 1854, p. 17.) Mais tarde ver-se-a que o «master» canta outra musica logo que se ve ameaçado de perder os seus autómatos «vivos». (retornar ao texto)

(16*) Ure, 1. c„ p. 15. Quem conheça a historia da vida de Arkwright nunca atiraria a palavra «nobre» a cara deste genial barbeiro. De todos os grandes inventores do seculo XVIII era indiscutivelmente o maior ladrao de inventos alheios e o tipo mais ordinario. (retornar ao texto)

(17*) «A escravatura a que a burguesia mantem o proletariado amarrado nunca veio tao nitidamente a luz do dia como no sistema fabril. Aqui legal e facticamente toda a liberdade cessa. O operario tem de manhã de estar na fabrica as 5 e meia. Se chega alguns minutos atrasado é punido; se chega 10 minutos atrasado nem sequer o deixam entrar até passar a hora do pequeno-almoço e perde assim o salario de um quarto de dia. Tem de comer, beber e dormir a voz de comando... O despotico sino tira-o da cama, tira-o da mesa do pequeno-almoco e do almoço. E como se passarão as coisas então na fábrica? Aí o fabricante é o legislador absoluto. Faz os regulamentos fabris como lhe apraz, altera e faz aditamentos ao seu código a seu bel-prazer; e se acrescenta a coisa mais insensata, os tribunais dizem para o operário: uma vez que aceitaram voluntariamente este contrato, têm também de o cumprir... Estes operários estão condenados a viver, desde os nove anos até à sua morte, sob esta férula espiritual e física.» (F. Engels, 1. c, p. 217 sqq.) Quero ilustrar o que «os tribunais dizem» com dois exemplos. Um caso ocorre em Sheffield em fins de 1866. Aí, um operário tinha um contrato por 2 anos numa fábrica metalúrgica. Na sequência de uma desavença com o fabricante deixou a fábrica e declarou não querer em nenhuma circunstância voltar a trabalhar para ele. Foi acusado de romper o contrato e condenado a dois meses de prisão. (Se o fabricante rompe o contrato, só pode ser acusado civiliter(18*) e arrisca-se apenas a uma multa em dinheiro.) Depois de cumpridos os dois meses o mesmo fabricante entrega-lhe uma intimação para voltar à fábrica de acordo com o antigo contrato. O operário declara: Não. Pela quebra do contrato já ele tinha pago. O fabricante acusa-o de novo e o tribunal condena-o de novo, apesar de um dos juízes, o sr. Shee, ter denunciado isto publicamente como uma monstruosidade jurídica, pela qual um homem, durante toda a sua vida, pode continuar a ser periodicamente castigado pela mesma ofensa ou crime. Esta condenação foi emitida não pelos «Great Unpaid»[N138], os Dogberries provinciais, mas em Londres, por um dos supremos tribunais. {À 4.a ed. — Isto foi agora abolido. À excepção de poucos casos — p. ex. nas fábricas públicas de gás —, agora na Inglaterra, em caso de rompimento do contrato, o operário e o empregador estão em pé de igualdade e o operário só pode ser processado em acção civil. — F. E.} — O segundo caso decorre em Wiltshire, em fins de Novembro de 1863. Cerca de 30 tecedoras de teares a vapor, ao serviço de um certo Harrupp, fabricante de tecidos em Leower's Mill, Westbury Leigh, fizeram uma strike(19*) porque este mesmo Harrupp tinha o hábito agradável de fazer descontos nos seus salários quando elas chegavam atrasadas de manhã; 6 d. por 2 minutos, 1 sh. por 3 minutos e 1 sh. 6 d. por 10 minutos. Isto faz, a 9 sh. por hora, 4 lib. esterl. por dia, enquanto o seu salário médio ao ano nunca sobe acima de 10 a 12 sh. semanalmente. Harrupp também encarregou um rapaz de anunciar o começo do trabalho com um assobio, o que ele próprio muitas vezes fazia antes das 6 horas da manhã, e quando os braços não estavam todos lá assim que ele acabava fechavam-se os portões e os que ficassem de fora pagavam uma multa; e como não havia nenhum relógio no edifício, as desgraçadas ficavam à mercê do jovem guardião do tempo inspirado por Harrupp. Os braços em strike, mães de família e raparigas, declararam que queriam voltar ao trabalho se o guardião do tempo fosse substituído por um relógio e fosse introduzida uma tarifa de penalização mais racional. Harrupp levou 19 mulheres e raparigas perante o magistrado por quebra de contrato. Foram condenadas, cada uma, a 6 d. de multa e 2 sh. e 6 d. de custas perante a ruidosa indignação do auditório. Harrupp abandonou o tribunal acompanhado por uma massa de povo que o assobiava. — Uma das operações predilectas dos fabricantes é fazer pagar os operários pelos defeitos nos materiais que lhes eram fornecidos através de descontos no salário. Este método levou a uma strike geral em 1866 nos distritos ingleses de cerâmica. Os relatórios da Ch. Employm. Commiss. (1863-1866) revelam casos em que o operário em vez de receber salário, pelo seu trabalho, por meio do regulamento das penalizações, ainda ficava por cima devedor do seu ilustre «master». A mais recente crise do algodão fornece também exemplos edificantes acerca da sagacidade dos descontos no salário feitos pelos autocratas fabris. «Eu próprio», diz o inspector fabril R. Baker, «tive recentemente de processar um fabricante de algodão por ter deduzido, nestes tempos difíceis e dolorosos, 10 d. [...] de alguns dos jovens trabalhadores por ele empregues» (os de mais de 13 anos) «para o certificado médico (pelo qual ele próprio tinha pago apenas 6 d.), quando a lei só permite deduzir 3 d., e por costume até nem se desconta nada... E fui informado acerca de outro que, para atingir o mesmo objectivo, mas sem entrar em conflito com a lei, cobra das pobres crianças que trabalham para ele um xelim por cada uma como um honorário por lhes ensinar a arte e o mester [mystery](20*) de fiar algodão logo que são declaradas pelo médico pessoas aptas e próprias para essa ocupação. Pode, portanto, haver causas subterrâneas para tais manifestações extraordinárias como greves (strikes) [...] em alturas como a presente» (trata-se aqui de uma strike de tecelões mecânicos numa fábrica de Darven em Junho de 1863). (Reports of Insp. of Fact. for 30th April, 1863, pp. 50, 51.) (Os relatórios fabris vão sempre para além da sua data oficial.) (retornar ao texto)

(18*) Em latim no texto: em acção civil. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(19*) Em inglês no texto: greve. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(20*) Marx traduz: Mysterium, literalmente: mistério. Alude assim a uma aproximação de ministerium (mester) e mysterium (mistério), já presente no inglês mystery, dado o segredo que estava ligado ao exercício e transmissão de determinados ofícios. Ver, por exemplo, no presente tomo, p. 555, nota 305. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(21*) (Nota 305) No famoso Livre des métiers de Etienne Boileau está prescrito, entre outras coisas, que um oficial, ao ser aceite entre os mestres, tinha de fazer um juramen­to de «amar fraternalmente os seus irmãos, de os apoiar, cada um na ordem do seu mester (métier)», não trair voluntariamente os segredos do mester e até mes­mo «no interesse comum da corporação» não dar a «conhecer ao comprador, para fazer valer as suas mercadorias, os defeitos das mal confeccionadas».(retornar ao texto)

(22*) As leis de protecção contra maquinaria perigosa tiveram um efeito benéfico. «Mas... há outras fontes de acidentes que não existiam há vinte anos; uma especialmente, viz.(23*) a maior velocidade da maquinaria. Rodas, rolos, fusos e lançadeiras são agora propulsionadas em taxas maiores e em aumento; os dedos têm que ser mais rápidos e ágeis nos movimentos para emendar as linhas partidas porque se forem colocados com hesitação ou descuido são sacrificados... Um grande número de acidentes são causados pela ânsia dos operários de fazerem o seu trabalho mais espeditamènte. Tem de ser lembrado que é para os manufactureiros da maior importância que a sua maquinaria esteja em movimento, i. e, produzindo fios e bens. Cada minuto de paragem é não só uma perda de energia, mas também de produção, e os operários são instigados pelos supervisores, a quem interessa a quantidade de trabalho produzido, a manter a maquinaria em movimento; e não é menos importante para aqueles operários que são pagos a peso ou à peça que as máquinas se mantenham em movimento. Consequentemente, embora seja estritamente proibido em muitas, não na maioria das fábricas, limpar as máquinas enquanto estão em movimento é, no entanto, prática constante na maior parte delas, se não em todas [...]. Assim, só por esta causa ocorreram 906 acidentes durante os seis meses... Embora uma grande quantidade de limpeza seja feita dia após dia, é, no entanto, o sábado que é designado para a total limpeza da maquinaria e uma grande parte da limpeza é feita com a maquinaria em movimento.» E uma operação que não é paga e os operários procuram por isso acabá-la tão depressa quanto possível. Por isso «o número de acidentes que ocorrem às sextas-feiras e especialmente aos sábados, é muito maior do que em qualquer outro dia. No primeiro dia referido, o excesso é quase 12 por cento sobre o número médio dos primeiros quatro dias da semana, e no último dia referido o excesso é de 25 por cento sobre a média dos cinco dias precedentes; ou, se for tomado em conta o número de horas de trabalho ao sábado — 7 1/2 horas no sábado comparado com 10 1/2 nos outros dias — há um excesso de 65 por cento aos sábados sobre a média dos outros cinco dias.» (Rep. of Insp. of Fact., 31 st Oct., 1866, pp. 9, 15, 16, 17.) (retornar ao texto)

(23*) Contracção do latim videlicet: a saber, isto é. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(24*) Na primeira secção do livro terceiro vou relatar uma campanha recente dos fabricantes ingleses contra as cláusulas da lei fabril para protecção dos membros dos «braços» contra a maquinaria perigosa. Aqui basta uma citação de um relatório oficial do inspector fabril Leonard Horner: «Ouvi alguns donos de fábricas falarem com imperdoável leviandade de alguns acidentes; como, por exemplo, que a perda de um dedo era uma questão insignificante. A vida e as perspectivas de um operário dependem tanto dos seus dedos que a perda de qualquer um deles é para ele um assunto muito sério. Quando ouvia fazer reparos tão inconsiderados punha usualmente esta questão: suponha que precisava de um operário adicional e se apresentavam dois, ambos igualmente bem qualificados em outros aspectos, mas um tinha perdido um polegar ou um indicador, qual deles empregaria? Nunca havia hesitação quanto à resposta...» Estes senhores fabricantes têm «preconceitos errados contra o que eles ouviram ser representado como uma legislação pseudofilantrópica.» (Reports. of lnsp. of Fact. for 31 st Oct., 1855 [, p. 6/7].) Estes senhores são «gente esperta» e não foi em vão que se entusiasmaram com a rebelião dos donos de escravos[N18]! (retornar ao texto)

(25*) Nas fábricas em que a lei fabril, com as limitações coercivas do tempo de trabalho e outros regulamentos, vigorou mais tempo muitas dos antigos inconvenientes desapareceram. O melhoramento da própria maquinaria exige em certo ponto uma «construção melhorada dos edifícios», que vem favorecer os operários. (Cf. Reports, etc, for 31st Oct., 1863, p. 109.) (retornar ao texto)

(26*) Em inglês no texto: «grandes não pagos» (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N18] Por «pro-slavery rebellion» («rebelião a favor da escravatura») entende-se a rebelião dos escravistas do Sul dos EUA, que levou à Guerra Civil de 1861-1865.(retornar ao texto)

[N76] Andrew Ure, The Philosophy of Manufactures: or, An Exposition of the Scientific, Moral and Commercial Economy of the Factory System of Great Britain. London, 1835, p. 406. Ou: Andrew Ure, Philosophie des manufactures ou économie industrielle de la fabrication du coton, de la laine, du lien et de la soie. Trad. sous les yeux de l'auteur. T. 2. Paris, 1836, pp. 197-198. (retornar ao texto)

[N136] Citação da p. 22 da edição inglesa da obra de A. Ure (ver a nota 76). Cf. edição francesa, pp. 32-33. (retornar ao texto)

[N137] Ver o tomo I, pp. 318 e segs. (retornar ao texto)

[N138] Estes «county magistrates», os «great unpaid»(26*), como lhes chama W. Cobbett, são uma espécie de juízes de paz não pagos, formados de entre os mais notáveis dos condados. Eles formam, de facto, os tribunais patrimoniais das classes dominantes. (retornar ao texto)

[N139] Fourier chama às fábricas «presídios [para penas de trabalhos forçados] mitigados» («les bagnes mitigés») no livro La fausse industrie morcelée, répugnante, mensongère, et l'antidote, l'industrie naturelle, combinée, attrayante, véridique, donnant quadruple produit. Paris, 1835-1836, p. 59. (retornar ao texto)

Inclusão 14/07/2012