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O Capital
Crítica da Economia Política
Karl Marx

Livro Primeiro: O processo de produção do capital

Segunda Seção: A Transformação de dinheiro em capital

Quarto capítulo. Transformação de dinheiro em capital


3. Compra e venda da força de trabalho


capa

A modificação de valor do dinheiro, que se deve transformar em capital, não pode processar-se neste mesmo dinheiro, pois — como meio de compra e como meio de pagamento — ele realiza apenas o preço da mercadoria, que ele compra ou paga, enquanto que — permanecendo na sua forma própria — enrigesse em petrificação de magnitude de valor que permanece igual(1*). Tão-pouco pode a modificação brotar do segundo acto de circulação, da revenda da mercadoria, pois este acto transforma a mercadoria meramente da forma natural outra vez em forma-dinheiro. A modificação teve, portanto, de dar-se com a mercadoria que é comprada no primeiro acto D — M, mas não com o seu valor, pois sendo trocados equivalentes, a mercadoria é paga pelo seu valor. Portanto, a modificação só pode brotar do seu valor de uso como tal, i. é, do seu consumo. Para extrair valor do consumo de uma mercadoria, o nosso possuidor de dinheiro teria de ser tão feliz a ponto de descobrir, dentro da esfera de circulação, no mercado, uma mercadoria cujo próprio valor de uso possuísse a qualidade própria de ser fonte de valor, cujo consumo real fosse portanto, ele mesmo, objectivação de trabalho e, desse modo, criação de valor. E o possuidor de dinheiro depara-se no mercado com uma tal mercadoria específica — a faculdade de trabalho ou a força de trabalho.

Por força de trabalho ou faculdade de trabalho entendemos o complexo das capacidades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de um ser humano, e que ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de qualquer espécie.

Diversas condições têm, porém, de ser preenchidas para que o possuidor de dinheiro se depare com a força de trabalho, como mercadoria, no mercado. A troca de mercadorias não inclui, em si e por si, quaisquer outras relações de dependência para além das que brotam da sua natureza própria. Neste pressuposto, a força de trabalho, como mercadoria, só pode aparecer no mercado na medida em que — e porque — é posta à venda ou vendida como mercadoria pelo seu próprio possuidor, a pessoa de quem ela é força de trabalho. Para que o seu possuidor a venda como mercadoria, tem de poder dispor dela, ser portanto proprietário livre da sua faculdade de trabalho, da sua pessoa(2*). Ele e o possuidor de dinheiro encontram-se no mercado e enfrentam-se um com o outro como possuidores de mercadorias de igual condição, só distinguíveis por um ser comprador, o outro, vendedor, ambos pois juridicamente pessoas iguais. A persistência desta relação requer que o proprietário da força de trabalho a venda sempre e apenas por tempo determinado, pois se a vende por grosso, de uma vez por todas, ele vende-se a si mesmo, transforma-se de [homem] livre em escravo, de possuidor de mercadorias numa mercadoria. Ele, enquanto pessoa, tem de se comportar constantemente para com a sua força de trabalho como para com propriedade sua e, assim, [para como] com mercadoria sua própria; e só o pode fazer na medida em que a põe à disposição do comprador — entrega-a ao consumo — sempre e apenas de modo passageiro, por um determinado prazo de tempo, e, portanto, através da sua alienação, não prescinde da sua propriedade sobre ela(3*).

A segunda condição essencial para que o possuidor de dinheiro se depare com a força de trabalho no mercado como mercadoria é que o seu possuidor, em vez de poder vender mercadorias em que o seu trabalho se objectivou, tem antes de pôr à venda a sua própria força de trabalho — como mercadoria —, a qual só existe na sua corporalidade viva.

Para alguém vender mercadorias diferentes da sua força de trabalho terá naturalmente de possuir meios de produção, p. ex., matérias-primas, instrumentos de trabalho, etc. Não poderá fazer botas sem cabedal. Precisará, além disso, de meios de vida. Ninguém, nem mesmo um «músico do futuro»[Adenda], pode viver de produtos do futuro, portanto também não de valores de uso cuja produção ainda se não encontra pronta e, tal como no primeiro dia do seu aparecimento no palco terrestre, o homem tem ainda de consumir cada dia antes e enquanto produz. Se os produtos forem produzidos como mercadorias, terão então de ser vendidos depois de serem produzidos e só depois da venda poderão satisfazer as necessidades do produtor. Ao tempo de produção acrescenta-se o tempo preciso para a venda.

Portanto, para a transformação do dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro tem de encontrar o operário livre no mercado das mercadorias, livre no duplo sentido de que ele, como pessoa livre, dispõe da sua força de trabalho como mercadoria sua e de que, por outro lado, não tem outras mercadorias para vender, está isento e disponível, livre de todas as coisas precisas para a realização da sua força de trabalho.

A questão de por que é que este trabalhador livre se lhe contrapõe na esfera da circulação não interessa ao possuidor de dinheiro que se depara com o mercado de trabalho como uma repartição particular do mercado de mercadorias. E, por enquanto, ela tão-pouco nos interessa. Nós atemo-nos ao facto teoreticamente, tal como o possuidor de dinheiro praticamente. Uma coisa, porém, é clara. A Natureza não produz, por um lado, possuidores de dinheiro ou de mercadorias e, por outro, meros possuidores das forças de trabalho próprias. Esta relação não pertence à história natural, nem é sequer uma relação social comum a todos os períodos da história. É manifestamente ela mesma o resultado de um desenvolvimento histórico precedente, o produto de muitos revolucionamentos económicos, do declíneo de toda uma série de formações mais antigas da produção social.

Também as categorias económicas, que antes considerámos, trazem a sua marca histórica. Na existência do produto como mercadoria ocultam-se determinadas condições históricas. Para se tornar mercadoria, o produto não deve ser produzido como um meio imediato de subsistência para o próprio produtor. Se tivéssemos continuado a investigar: sob que circunstâncias todos aceitam ou apenas a maioria dos produtos aceita a forma da mercadoria, ter-se-ia então descoberto que isto apenas sucede com base num modo de produção muito específico, o capitalista. Uma tal investigação estaria longe da análise da mercadoria. Produção de mercadorias e circulação de mercadorias podem ter lugar mesmo que a massa de produtos mais preponderante, imediatamente dirigida às necessidades próprias, não se transforme em mercadoria e, portanto, o processo de produção social não esteja ainda por muito tempo dominado pelo valor de troca em toda a sua extensão e profundidade. A manifestação do produto como mercadoria tem por condição uma divisão do trabalho de tal modo desenvolvida no seio da sociedade que a separação entre valor de uso e valor de troca, que só principia no comércio de troca imediato, já se encontra realizada. Um tal estádio de desenvolvimento é, porém, comum às formações económicas da sociedade historicamente mais diversas.

Ou, se considerarmos o dinheiro, ele pressupõe um certo nível da troca de mercadorias. As formas-dinheiro particulares — mero equivalente de mercadorias, ou meio de circulação ou meio de pagamento, tesouro e dinheiro mundial — apontam para estádios muito diversos do processo social de produção, segundo o diverso âmbito e a relativa preponderância de uma ou de outra função. Contudo, segundo a experiência, basta uma circulação de mercadorias relativamente pouco desenvolvida para a formação de todas estas formas. Diferentemente com o capital. As suas condições históricas de existência não estão de modo algum dadas com a circulação das mercadorias e do dinheiro. Surge apenas onde o possuidor de meios de produção e de vida se depara no mercado com o operário livre como vendedor da sua força de trabalho, e [só] esta condição histórica encerra [toda] uma história universal. O capital anuncia, pois, desde o início, uma época do processo social de produção(4*).

Há que considerar mais de perto esta mercadoria peculiar, a força de trabalho. Tal como todas as outras mercadorias, ela possui um valor(5*). Como é ele determinado?

O valor da força de trabalho, tal como o de qualquer outra mercadoria, é determinado pelo tempo de trabalho necessário para a produção — portanto, também reprodução — deste artigo específico. Enquanto valor, a própria força de trabalho representa apenas um quantum determinado de trabalho social médio nela objectivado. A força de trabalho existe apenas como disposição do indivíduo vivo. A produção daquela pressupõe, portanto, a existência desta. Dada a existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste na sua própria reprodução ou conservação. Para a sua conservação, o indivíduo vivo precisa de uma certa soma de meios de vida. O tempo de trabalho necessário para a produção da força de trabalho resolve-se, pois, no tempo de trabalho necessário para a produção destes meios de vida ou: o valor da força de trabalho é o valor dos meios de vida necessários para a conservação do seu possuidor. A força de trabalho, porém, só se realiza pela sua exteriorização, só se activa no trabalho. Pela sua activação — o trabalho — é despendido um determinado quantum de músculo humano, nervo, cérebro, etc, que tem de ser de novo substituído. Este dispêndio aumentado implica uma entrada aumentada(6*). Se o proprietário da força de trabalho hoje trabalhou, tem amanhã de poder repetir o mesmo processo nas mesmas condições de força e saúde. A soma dos meios de vida tem, pois, de bastar para conservar o indivíduo que trabalha como indivíduo que trabalha no seu estado de vida normal. As próprias necessidades naturais [naturlicheri], como alimentação, vestuário, aquecimento, habitação, etc, são diversas segundo as peculiaridades climáticas e outras peculiaridades naturais de um país. Por outro lado, o âmbito das chamadas necessidades imprescindíveis, assim como a maneira da sua satisfação, são eles mesmos um produto histórico e dependem, portanto, em grande parte, do estádio de civilização de um país e entre outras coisas dependem também essencialmente das condições em que se formou a classe dos trabalhadores livres e, portanto, de com que hábitos e exigências de vida(8*). Por oposição às outras mercadorias, a determinação de valor da força de trabalho contém, pois, um elemento histórico e moral. Para um determinado país, num determinado período, contudo, o volume médio dos meios de vida necessários está dado.

O proprietário da força de trabalho é mortal. Havendo, portanto, o seu aparecimento no mercado de ser contínuo, como pressupõe a transformação contínua de dinheiro em capital, então o vendedor da força de trabalho tem de se eternizar «no modo em que cada indivíduo vivo se perpetua a si próprio, por procriação»(9*). As forças de trabalho retiradas ao mercado por deterioração e morte têm no mínimo de ser constantemente substituídas por um número igual de forças de trabalho novas. A soma dos meios de vida necessários para a produção da força de trabalho inclui, portanto, os meios de vida dos substitutos, i. é, dos filhos dos operários, de tal modo que esta raça de peculiares possuidores de mercadorias se eternize no mercado das mercadorias(10*).

Para modificar a natureza humana em geral, para que ela atinga destreza e prontidão num determinado ramo de trabalho, e se torne força de trabalho desenvolvida e específica, é preciso uma determinada formação ou instrução que, por seu lado, custa uma soma maior ou menor de equivalentes de mercadorias. Segundo o carácter mais ou menos mediado da força de trabalho, são também diversos os seus custos de formação. Os custos de aprendizagem, extremamente pequenos para a força de trabalho habitual, entram pois no âmbito dos valores despendidos para a sua produção.

O valor da força de trabalho resolve-se no valor de uma determinada soma de meios de vida. Muda, pois, também com o valor destes meios de vida, i. é, com a magnitude do tempo de trabalho requerido para a sua produção.

Uma parte dos meios de vida, p. ex., alimentos, meios de aquecimento, etc, são consumidos de novo diariamente e têm diariamente de ser de novo substituídos. Outros meios de vida, como roupas, móveis, etc, consomem-se em espaços de tempo mais longos e há apenas que substituí-los em espaços de tempo mais longos. Mercadorias de uma espécie têm de ser compradas ou pagas diariamente, outras semanalmente, trimestralmente, etc Como quer que se reparta a soma destas despesas — p. ex., durante um ano — ela tem de ser coberta todos os dias pela receita média. Se a massa das mercadorias requeridas diariamente para a produção da força de trabalho = A, a da requerida semanalmente = B, a da requerida trimestralmente = C, etc., então a media diária destas mercadorias seria =

365A + 52B + 4C + etc.

365

Admitindo que nesta massa de mercadorias precisa para o dia médio estão contidas 6 horas de trabalho social, então objectiva-se diariamente na força de trabalho meio dia de trabalho médio social, ou: meio dia de trabalho é requerido para a produção diária da força de trabalho. Este quantum de trabalho requerido para a sua produção diária constitui o valor diário da força de trabalho ou o valor da força de trabalho reproduzida diariamente. Se meio dia de trabalho social médio se manifesta igualmente numa massa de ouro de 3 sh. ou num táler, então um táler é o preço correspondente ao valor diário da força de trabalho. Se o possuidor da força de trabalho puser esta à venda diariamente por um táler, então o seu preço de venda é igual ao seu valor e, segundo o nosso pressuposto, o possuidor de dinheiro, desejoso de transformar os seus táleres em capital, paga este valor.

O limite último ou limite mínimo do valor da força de trabalho é formado pelo valor de uma massa de mercadorias sem o aprovisionamento diário da qual o portador da força de trabalho, o homem, não pode renovar o seu processo de vida; portanto, pelo valor dos meios de vida fisicamente indispensáveis. Se o preço da força de trabalho desce deste mínimo, desce então abaixo do seu valor, pois assim ela só se pode conservar e desenvolver de forma enfezada. O valor de toda a mercadoria é, porém, determinado pelo tempo de trabalho exigido para a fornecer em qualidade normal.

É um sentimentalismo extraordinariamente barato achar grosseira esta determinação do valor da força de trabalho, decorrente da natureza da coisa, e lamentar-se como Rossi:

«Conceber a potência de trabalho (puissance de travail) fazendo abstracção dos meios de subsistência dos trabalhadores durante a obra da produção é conceber um ente de razão (être de raison). Quem diz trabalho, quem diz potência de trabalho, diz ao mesmo tempo trabalhadores e meios de subsistência, operário e salário.»(11*)

Quem diz faculdade de trabalho não diz trabalho, tão pouco como quem diz faculdade de digestão diz digerir. Para este último processo é obviamente exigido mais do que um bom estômago. Quem diz faculdade de trabalho não abstrai dos meios de vida necessários para a sua subsistência. O valor destes está antes expresso no valor daquela. Se não é vendida, não vale de nada ao operário e ele experimenta antes como uma necessidade cruel da Natureza que a sua faculdade de trabalho tenha requerido um determinado quantum de meios de subsistência para a sua produção e, sempre de novo, os requeira para a sua reprodução. Ele descobre então, com Sismondi, que esta «potência se não for vendida... é nada.»(13*)

A natureza peculiar desta mercadoria específica, da força de trabalho, implica que, com a conclusão do contrato entre comprador e vendedor, o seu valor de uso ainda não tenha passado realmente para a mão do comprador. O seu valor, como o de qualquer outra mercadoria, foi determinado antes dela ter entrado em circulação, pois foi despendido um determinado quantum de trabalho social para a produção da força de trabalho, mas o seu valor de uso apenas consiste na ulterior exteriorização da força. A alienação da força e a sua exteriorização real, i. é, a sua existência como valor de uso, diferem pois no tempo. Porém, no caso daquelas mercadorias(14*) em que a alienação formal do valor de uso pela venda e a sua entrega real ao comprador diferem no tempo, o dinheiro do comprador funciona a maior parte das vezes como meio de pagamento. Em todos os países de modo de produção capitalista, a força de trabalho só é paga depois de ter funcionado já durante o prazo fixado no contrato de compra, p. ex., no fim de cada semana. Em toda a parte, pois, o operário adianta ao capitalista o valor de uso da força de trabalho: ele permite que ela seja consumida pelo comprador antes de receber como pagamento o seu preço; em toda a parte, portanto, o trabalhador concede crédito ao capitalista. Que este conceder de crédito não é uma presunção vã mostra-o não só a perda ocasional por falência do capitalista(15*) do salário concedido em crédito, mas também uma série de efeitos mais duráveis(16*). Entretanto, quer o dinheiro funcione como meio de compra ou como meio de pagamento, nada se modifica na natureza da própria troca de mercadorias. O preço da força de trabalho está fixado contratualmente, mesmo que só mais tarde venha a ser realizado, tal como o preço de aluguer de uma casa. A força de trabalho está vendida, mesmo que só mais tarde venha a ser paga. Para a pura apreensão desta relação é, contudo, útil pressupor por agora que o possuidor da força de trabalho recebe de cada vez com a sua venda imediatamente também o preço estipulado contratualmente.

Conhecemos agora o modo da determinação do valor que é pago ao possuidor desta mercadoria peculiar, da força de trabalho, pelo possuidor de dinheiro. O valor de uso, que este último por seu lado recebe na troca, apenas se mostra no consumo real, no processo de consumo da força de trabalho. Todas as coisas precisas para este processo, tal como matérias-primas, etc, compra-as o possuidor de dinheiro no mercardo de mercadorias e paga-as a preço inteiro. O processo de consumo da força de trabalho é simultaneamente o processo de produção de mercadoria e de mais-valia. O consumo da força de trabalho, tal como o consumo de qualquer outra mercadoria, realiza-se fora do mercado ou da esfera de circulação. Deixamos, pois, esta esfera ruidosa, que mora à superfície e é acessível a todos os olhos, juntamente com o possuidor de dinheiro e o possuidor da força de trabalho, para seguir a ambos até ao lugar oculto da produção, em cuja entrada se pode ler: No admittance except on business(19*). Aqui mostrar-se-á não apenas como o capital produz, mas também como se produz ele próprio, o capital. O segredo da negociata [Plusmacherei] tem de ser finalmente revelado.

A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, dentro de cujos limites se move a compra e venda da força de trabalho, era de facto um verdadeiro Éden dos direitos humanos inatos. O que aí impera somente é liberdade, igualdade, propriedade e Bentham. Liberdade! Pois o comprador e o vendedor de uma mercadoria — p. ex., da força de trabalho — são apenas determinados pelo seu livre arbítrio. Eles fazem contrato enquanto pessoas livres, juridicamente de igual condição. O contrato é o resultado final pelo qual as suas vontades dão uma à outra a sua expressão jurídica comum. Igualdade! Pois eles apenas se relacionam entre si como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade! Pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham! Pois cada um deles só se preocupa consigo. O único poder que os junta e põe em relação é o do seu proveito próprio, da sua vantagem particular, dos seus interesses privados. E exactamente porque cada um apenas se volta para si e nenhum para o outro, todos realizam apenas a obra da sua vantagem recíproca, do proveito comum, do interesse conjunto, em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providência toda-manhosa.

Ao separar-se desta esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, à qual o livre-cambista vulgaris vai buscar concepções, conceitos e padrão para o seu juízo sobre a sociedade do capital e do trabalho assalariado, algo se transforma já — ao que parece — a fisionomia da nossa dramatis personae(20*). O antigo possuidor de dinheiro marcha à frente como capitalista, o possuidor de força de trabalho segue-o como seu operário; um significativamente sorridente e zeloso pelo negócio, o outro tímido, contrariado, como alguém que levou a sua própria pele ao mercado e agora nada mais tem a esperar senão — ser esfolado.


Notas de rodapé:

(1*) «Na forma de dinheiro... o capital não produz qualquer lucro.» (Ricardo, Princ. of Pol. Econ., p. 267.) (retornar ao texto)

(2*) Em enciclopédias de conhecimentos úteis acerca da Antiguidade Clássica pode ler-se o contra-senso de que, no mundo antigo, o capital estava plenamente desenvolvido, «excepto que faltavam o trabalhador livre e o sistema de crédito». Também o senhor Mommsen na sua Römische Geschichte incorre num quiproquó após outro. (retornar ao texto)

(3*) Diversas legislações fixam, pois, um máximo para o contrato de trabalho. Todos os códigos, entre povos de trabalho livre, regulam condições de rescisão do contrato. Em diversos países, nomeadamente no México (antes da guerra civil americana também nos territórios tomados ao México, e, quanto ao fundo da questão, nas províncias do Danúbio até à revolução de Cuza[N64] a escravatura dissimulou-se sob a forma de peonagem. Por adiantamentos a pagar em trabalho e que vão passando de geração em geração, não apenas o trabalhador isolado, mas a sua família, torna-se, de facto, propriedade de outras pessoas e de suas famílias. Juarez tinha abolido a peonagem. O chamado imperador Maximiliano voltou a introduzi-la por meio de um decreto que, na Câmara dos Representantes em Washington, foi acertadamente denunciado como decreto para a reintrodução da escravatura no México. «Das minhas particulares aptidões e possibilidades de actividade, tanto corporais como espirituais, posso... alienar a outrem um uso limitado no tempo, pois elas, segundo esta limitação, mantêm uma relação externa com a minha totalidade e universalidade. Pela alienação de todo o meu tempo, concreto pelo trabalho, e da totalidade da minha produção, tornaria propriedade de outrem o substancial dos mesmos — a minha actividade universal e realidade [efectiva], a minha personalidade.» (Hegel, Philosophie des Rechts, Berlin, 1840, p. 104, § 67.) (retornar ao texto)

(4*) O que caracteriza, portanto, a época capitalista é que a força de trabalho assume para o próprio operário a forma de uma mercadoria a ele pertencente e o seu trabalho a forma de trabalho assalariado. Por outro lado, generaliza-se apenas a partir deste momento a forma-mercadoria dos produtos de trabalho. (retornar ao texto)

(5*) «O valor [value] ou mérito [worth] de um homem é, como de todas as outras coisas, o seu preço — ou seja, tanto quanto seria dado pelo uso do seu poder.» (Th. Hobbes, Leviathan, in Works, edit. Molesworth, London, 1839-1844 v III P- 76.) (retornar ao texto)

(6*) O villicus(7*) da Roma antiga, enquanto administrador à frente dos escravos agrícolas, recebia, portanto, «porque tinha um trabalho mais leve do que os servos, uma ração mais magra do que estes». (Th. Mommsen, Röm. Geschichte, 1856, p. 810.) (retornar ao texto)

(7*) Em latim no texto: feitor. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(8*) Cf. Over-Population and Its Remedy, London, 1846, de W. Th. Thornton. (retornar ao texto)

(9*) Petty (retornar ao texto)

(10*) «O seu» (do trabalho) «preço natural... consiste numa quantidade tal de meios de subsistência e confortos de vida que, segundo a natureza do clima e os hábitos do país, sejam necessários para sustentar o trabalhador e para lhe permitir criar uma família tal que possa preservar no mercado um fornecimento não diminuido de trabalho» (R. Torrens, An Esay on the External Corn Trade, London, 1815, p. 62) A palavra trabalho está aqui mal empregue em vez de força de trabalho. (retornar ao texto)

(11*) Rossi, Cours D'écon. polit., Bruxelles, 1843, pp. 370, 371(12*) (retornar ao texto)

(12*) Nas edições francesa e inglesa: 1842, p. 370. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(13*) Sismondi, Nouv. Princ, etc, t. I, p. 113. (retornar ao texto)

(14*) «Todo o trabalho é pago depois de ter cessado.» (An Inquiry into Those Principies Respecting the Nature of Demand, etc, p. 104.) «O crédito comercial deve ter começado no momento em que o operário, primeiro artesão da produção, pôde, por meio das suas economias, esperar o salário do seu trabalho até ao fim da semana, da quinzena, do mês, do trimestre, etc.» (Ch. Ganilh, Des systèms d'écon. polit., 2ème édit., Paris, 1821, t. II, p. 150.) (retornar ao texto)

(15*) «O operário [...] empresta a sua indústria», mas, acrescenta Storch com esperteza: ele «só se arrisca [...] a perder o seu salário... o operário não transmite nada de material.» (Storch, Cours D'écon. polit., Pétersbourg, 1815, t. II, pp. 36, 37.) (retornar ao texto)

(16*) Um exemplo. Em Londres existem duas espécies de padeiros, os full priced, que vendem o pão pelo seu valor inteiro, e os undersellers que o vendem abaixo deste valor. Esta última classe forma mais de 3/4 da totalidade dos padeiros (p. XXXII no Report do comissário governamental H. S. Tremenheere sobre as Grievances Complained of by the Journeymen Bakers, etc, London, 1862). Estes undersellers vendem, quase sem excepção, pão que é falsificado por mistura de alúmen, sabão, potassa purificada, cal, pedra moída de Derbyshire e semelhantes ingredientes agradáveis, nutritivos e saudáveis. (Ver o livro azul acima citado, assim como o relatório do «Committee of 1855 on the Adulteration of Bread» e as Adulterations Detected, 2nd edit., London, 1861, do Dr. Hassall.) Sir John Gordon explicou perante o comité de 1855 que, «em consequência destas adulterações, o pobre, que vive de duas libras de pão por dia, agora não recebe realmente nem a quarta parte de substância nutritiva, não contando com os efeitos deletérios sobre a sua saúde». Como razão para que «uma grande parte da classe operária», embora bem instruída acerca das falsificações, continue a comprar alúmen, pedra moída, etc, diz Tremenheere (1. c, p. XLVIII) que para eles é «uma questão de necessidade gastar do seu padeiro ou da chandler' s shop(17*) aquele pão que lhes apraz fornecer». Dado que eles são pagos apenas no fim da semana de trabalho também não podem «pagar o pão, consumido pelas suas famílias durante a semana, antes do fim da semana»; e, acrescenta Tremenheere introduzindo afirmações de testemunhas, «é notório que pão composto de tais misturas é feito expressamente para ser vendido desta maneira.» («It is notorius that bread composed of those mixtures, is made expressly for sale in this manner.») «Em muitos distritos agrícolas ingleses» (mas ainda mais nos escoceses) «os salários são pagos quinzenal e até mensalmente. Com intervalos tão longos entre os pagamentos, o trabalhador agrícola é obrigado a comprar a crédito... Tem de pagar preços mais elevados e fica de facto atado à loja que lhe dá crédito. Assim, por exemplo, em Horningsham, em Wilts, onde os salários são mensais, a mesma farinha que ele podia comprar noutro sítio a 1 sh. e 10 d. o stone custa-lhe 2 sh. e 4 d. o stone» (Sixth Report sobre Public Health by The Medical Officer of the Privy Council, etc, 1864, p. 264.) «Os estampadores manuais de Paisley e Kilmarnock» (Escócia Ocidental) em 1853 «forçaram por uma strike(18*) um pagamento de salários quinzenal em vez de mensal.» (Reports of the Inspectors of Factories for 31 st Oct., 1853, p. 34.) Como um belo desenvolvimento ulterior do crédito que o operário dá ao capitalista, pode-se considerar o método de muitos possuidores de minas de carvão ingleses, segundo o qual o operário só é pago no fim do mês e, no tempo intermédio, vai recebendo adiantamentos do capitalista, muitas vezes em mercadorias, que ele tem de pagar acima do seu preço de mercado (truck-system). «É uma prática comum entre os senhores do carvão pagar uma vez por mês e adiantar dinheiro aos seus trabalhadores no fim de cada semana intermédia. O dinheiro é dado na loja» (nomeadamente na tommy-shop ou mercearia pertencente ao próprio patrão). «Os homens recebem-no de um lado e gastam-no do outro.» (Children's Employment Commission, III. Report, London, 1864, p. 38, n. 192.) (retornar ao texto)

(17*) Em inglês no texto: mercearia. (Nota da edição Portuguesa.) (retornar ao texto)

(18*) Em inglês no texto: greve. (Nota da edição Portuguesa.) (retornar ao texto)

(19*) Em inglês no texto: Proibida a entrada excepto em negócios. (Nota da edição Portuguesa.) (retornar ao texto)

(20*) Em latim no texto: personagens do drama. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N64] A revolução de Cuza referida por Marx é um importante acontecimento na história da Roménia. Em Janeiro de 1859 teve lugar a eleição do eminente político Alexandre de Cuza como hospodar da Moldávia, e depois também da Valáquia. Com a unificação destes dois principados do Danúbio, que durante muito tempo haviam sido vassalos do Império otomano, foram criadas as bases do Estado romeno unificado. Ao subir ao poder, Cuza propôs-se levar a cabo uma série de reformas democrático-burguesas. Mas a sua política encontrou uma forte resistência por parte dos latifundiários e de alguns sectores da burguesia. Quando a Assembleia Nacional, dominada pelos representantes dos agrários (boiardos), rejeitou a reforma agrária proposta pelo governo, Cuza levou a cabo em 1864 um golpe de Estado, que conduziu à dissolução da Assembleia Nacional reaccionária, à promulgação de uma nova constituição, ao alargamento do círculo dos eleitores e ao reforço do papel do governo. A reforma agrária adoptada nessa nova situação política previa a abolição da servidão e a distribuição de terras aos camponeses na base do resgate. (retornar ao texto)

[Adenda] a expressão «músico do futuro» (inserida por Engels a partir da edição francesa) é uma alusão irónica a Richard Wagner que em 1860 publicara um ensaio intitulado Zukunftsmusik. [retornar ao texto]

Inclusão 16/11/2011
Última atualização 05/11/2019