As guerras camponesas na Alemanha

Friedrich Engels


IV - A sublevação da nobreza


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Enquanto perdurava na Floresta Negra a repressão à quarta conspiração do Bundschuh, Lutero deu, em Wittenberg, o sinal para o movimento que ia arrastar todas as classes, comovendo o império em suas bases mais profundas. As “teses” do monge agostinho da Turíngia caíram como um raio num paiol de pólvora. As múltiplas e divergentes tendências dos cavaleiros e dos burgueses, dos camponeses e dos plebeus, dos príncipes que anelavam a plena soberania e das camadas inferiores do clero, das seitas místicas clandestinas e da oposição intelectual formadas pelos escritores eruditos e satírico-burlescos, acharam nessas teses urna expressão comum em torno da qual se agruparam com surpreendente rapidez. Por pouco que durasse essa aliança de todos os elementos da oposição, formada do dia para a noite, revelou, de um só golpe, a enorme pujança do movimento e o ajudou a progredir rapidamente.

Mas, precisamente esse progresso do movimento devia desenvolver cedo os germes da discórdia, que trazia latentes em seu seio, dividindo em dois campos antagônicos as diferentes fações diametralmente opostas uma à outra, por sua posição social. A concentração dessa massa policrômica de oposição em torno de duas figuras centrais não tardou a produzir-se: a nobreza e os burgueses estavam incondicionalmente ao lado de Lutero; os camponeses e os plebeus, sem considerar Lutero um inimigo direito, formavam, como dantes, seu próprio partido de oposição revolucionária. Porém agora o movimento era geral e muito mais potente do que antes de Lutero; já existia a necessidade de uma luta direta entre ambos partidos, que se enfrentavam abertamente. Tal inimizade não tardou a manifestar-se; Lutero e Münzer se combatiam mutuamente na imprensa e no púlpito, do mesmo modo que os exércitos dos príncipes, cavaleiros e cidades, compostos em sua maioria por forças luteranas, ou que, pelo menos, simpatizavam com o luteranismo, dispersavam os bandos de camponeses e plebeus.

Até que ponto divergiam os interesses e necessidades dos diferentes elementos que aceitaram a reforma, é o que demonstra, já antes da guerra camponesa, a tentativa da nobreza de conseguir seus objetivos ante os príncipes e o clero.

Já é nossa conhecida a posição que ocupava a nobreza alemã em começos do século XVI.

Estava a ponto de perder sua independência para os príncipes de sangue e espirituais, cada dia mais poderosos. Na mesma medida em que decaía a nobreza, decaía também o poder imperial, e o império se dissolvia em vários principados autônomos. Segundo pensava a nobreza, sua decadência ia coincidir com a destruição da Alemanha como nação. A nobreza, e especialmente a nobreza independente, era a classe que mais diretamente representava o império e o poder imperial, quer por seu ofício militar quer por sua posição diante dos príncipes. Era a classe do maior espírito nacional; poderosa quando também o era o império, quando os príncipes eram débeis e pouco numerosos e quando a Alemanha estava unida. Por isso a indignação dos cavaleiros ante a lamentável situação política da Alemanha e ante a impotência do império em face do estrangeiro, o que se acentuava à medida em que a casa imperial incorporava ao império, uma após outra, as províncias que herdara. As intrigas das potências estrangeiras no interior da Alemanha, as conspirações que os príncipes alemães tramavam contra o poder imperial com a ajuda do estrangeiro, tudo isso indignava grandemente os cavaleiros. A primeira reivindicação da nobreza tinha forçosamente de ser a reforma do império sacrificando os príncipes e o alto clero. Esta reivindicação foi formulada por Ulrico de Hutten, o representante teórico da nobreza alemã, unido a Francisco Sickingen, seu representante militar e político.

Essa reforma do império, que se exigia em nome da nobreza, foi por Hutten formulada de maneira muito enérgica e radical. Pedia nada menos que a supressão radical dos príncipes, a secularização de todos os principados e bens eclesiásticos e o estabelecimento de uma democracia aristocrática chefiada por um monarca. Isso é, aproximadamente, o que fora em seus melhores dias a defunta república polaca. Hutten e Sickingen acreditavam que o governo da nobreza, classe eminentemente militar, a supressão dos príncipes, representantes da divisão, o aniquilamento do poder sacerdotal e a libertação da Alemanha do jugo espiritual de Roma, devolveriam ao império sua unidade, liberdade e força.

A democracia aristocrática, baseada na servidão, tal como existiu na Polônia e, de forma um pouco modificada, nos primeiros séculos nos reinos conquistados pelos germanos, é uma das formas mais primitivas da sociedade que, no curso normal da evolução, se transforma na hierarquia feudal perfeita, o que caracteriza uma etapa muito superior. Essa democracia de nobres era impossível na Alemanha do século XVI. Impossível porque já existiam na Alemanha grandes e poderosas cidades. Por outro lado não era possível aquela aliança da pequena nobreza com as cidades, que na Inglaterra logrou a transformação da monarquia feudal hierárquica em monarquia burguesa constitucional. Na Alemanha subsistia a nobreza antiga, que na Inglaterra já havia sido destruída nas guerras das Duas Rosas e substituída por uma nova nobreza de origem e tendências burguesas. Na Alemanha subsistia a servidão, as fontes de renda da nobreza tinham caráter feudal enquanto que na Inglaterra já estavam quase abolidas. Além Mancha a nobreza desfrutava da propriedade burguesa do solo; sua fonte de renda era a renda burguesa. Finalmente a centralização da monarquia absoluta que na França existia desde os tempos de Luís XI, acentuando-se progressivamente graças sobretudo ao antagonismo entre a nobreza e a burguesia, era totalmente impossível na Alemanha, por não existir quase nenhuma das condições para a centralização nacional.

Quanto mais se empenhava Hutten em realizar seu ideal, mais concessões tinha de fazer e mais imprecisa se tornava a sua reforma do império. Por si só a nobreza não era suficientemente poderosa para conseguir seus fins, o que é demonstrado por sua crescente debilidade ante os príncipes. Era preciso conseguir aliados e os únicos possíveis eram as cidades, os camponeses e os teóricos influentes da Reforma. Porém as cidades conheciam a nobreza suficientemente para não confiar nela e para negar-se a todo e qualquer compromisso. Os camponeses com muita razão consideravam como seu maior inimigo a nobreza que os explorava e maltratava. E os grandes teóricos da Reforma estavam ao lado dos burgueses, dos príncipes, ou dos camponeses. Que promessa positiva podia fazer a nobreza aos burgueses e camponeses no que se referia a uma reforma do império, cujo principal objetivo constituía em melhorar as condições da própria nobreza? Em seus escritos de propaganda, Hutten não teve outro remédio senão silenciar sobre tudo o que se referia às relações entre a nobreza, as cidades e os camponeses, deitando a culpa de todos os males sobre os príncipes, padres e a influência de Roma, e tratando de convencer os burgueses que era de interesse deles permanecerem pelo menos neutros na luta iminente entre os príncipes e a nobreza. Hutten não tocava na abolição da servidão e dos tributos que o camponês devia à nobreza.

Naquele tempo, a posição da nobreza alemã perante os camponeses era idêntica à dos nobres polacos em relação aos seus camponeses, nas insurreições ocorridas desde 1830. Da mesma maneira que nas recentes insurreições polonesas, na Alemanha de então o movimento não podia vencer a não ser por uma aliança de todos os partidos da oposição e sobretudo da nobreza com os camponeses. Precisamente essa aliança era impossível em ambos os casos. A nobreza não se via tentada a renunciar a seus privilégios políticos, a seus foros feudais e a sua jurisdição sobre os camponeses; e os camponeses não podiam, com perspectivas tão incertas, aventurar-se a concluir uma aliança com a nobreza que precisamente era a classe que mais os oprimia. Assim como na Polônia em 1830, já na Alemanha de 1522 a nobreza não podia atrair os camponeses. Apenas a abolição da servidão e da vassalagem, a renúncia a todos os privilégios feudais teriam tornado possível a união da população rural com a nobreza; porém a nobreza, como toda classe privilegiada, não tinha o menor desejo de renunciar voluntariamente a suas vantagens, à sua superioridade e à maior parte de suas rendas.

Ao começar a luta, os nobres se encontravam sós contra os príncipes. Era evidente que os príncipes, que durante dois séculos tinham continuamente ganho terreno, iam destruí-los ainda desta vez com grande facilidade.

O desenvolvimento da luta é conhecido. Hutten e Sickingen, que já era o chefe militar e político reconhecido dos nobres da Alemanha central, lograram constituir em 1522, em Landau, uma aliança de seis anos da nobreza da Renânia, Suábia e Francônia visando a autodefesa, como diziam. Com seus próprios meios e com a ajuda dos cavaleiros vizinhos, Sickingen concentrou um exército e organizou o recrutamento na Francônia, nas margens do baixo Reno, nos Países Baixos e na Westfália: Em setembro de 1522 iniciou as hostilidades desafiando o eleitor-arcebispo de Trèves. Porém, enquanto sitiava esta cidade, os príncipes intervieram rapidamente, interceptando-lhe os aprovisionamentos. O landgrave de Hessen e o eleitor do Palatinado correram em auxílio do arcebispo e Sickingen teve que refugiar-se em seu castelo de Landstuhl. Apesar dos esforços de Hutten e de seus amigos, os nobres aliados abandonaram-no atemorizados pela ação rápida e eficaz dos príncipes. Sickingen, gravemente ferido, entregou Landstuhl, morrendo pouco depois. Hutten teve que fugir para a Suíça e morreu poucos meses depois na ilha de Ufnau, no lago de Zurique.

Essa derrota aniquilou o poder da nobreza como corporação independente dos príncipes. A partir de então a nobreza não aparece senão a serviço e sob a direção destes últimos. A guerra dos camponeses, que estalou pouco depois, obrigou-a entretanto a colocar-se ainda mais sob a proteção dos príncipes e ao mesmo tempo demonstrou que a nobreza alemã preferia continuar explorando os camponeses, mesmo dependente, do que vencer príncipes e padres, fazendo causa comum com os camponeses emancipados.


Inclusão: 17/01/2022