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Quando Gorbatchov nos surpreendeu em 1985 com um discurso radicalmente novo em relação aos 17 anos de brejnevismo, quando lançou propostas corajosas no domínio do desarmamento, quando a seguir retirou as suas tropas de certos envolvimentos aventureiros no Terceiro Mundo, reabriu-se de novo um velho debate. Existiria ainda uma esperança de que a União Soviética regressasse aos princípios socialistas revolucionários? Seria necessário reler a análise elaborada, logo no final dos anos 60, pelo Partido Comunista Chinês e o Partido do Trabalho Albanês? A restauração do capitalismo na URSS teria sido consumada com o golpe de estado de Khruchov em 1956? O regime existente desde então na URSS poderia ser caracterizado como um capitalismo de Estado praticando uma política externa social-imperialista?
Hoje, em Agosto de 1990, Gorbatchov surpreende-nos novamente: pela rapidez e a energia com que restabelece o mercado livre e a propriedade privada e com a qual lança planos de privatização e de integração ao sistema capitalista mundial.
Estas duas tomadas de posição inesperadas remetem-nos para uma avaliação do período de Bréjnev, de 1966 a 1982.
Opiniões diferentes circulam entre as forças que se reclamam do marxismo-leninismo.
Alguns consideram que a chegada ao poder de Bréjnev, em 1965, significou o início de uma crítica do revisionismo de Khruchov. Os ataques odiosos contra Stáline e a experiência histórica dos anos 20 e 30 cessaram. Houve algum reconhecimento dos méritos de Stáline e da linha que ele representou. A URSS regressou a certos princípios essenciais do leninismo abandonados por Khruchov.
Outros pensam que a linguagem mais ortodoxa servia de cobertura para esconder o processo de decomposição ideológico e político que persistia à cabeça do partido e do Estado. A linguagem aparentemente mais marxista-leninista não correspondia a uma prática autenticamente revolucionária, mas a um comportamento hegemónico e aventureiro.
Outros, ainda, crêem que o regresso a um discurso mais ortodoxo era a expressão de um compromisso entre diferentes classes e tendências políticas. A camada dos burocratas renunciava aos ataques ultrajantes contra Stáline para evitar reacções populares violentas. Ela sentia que era preciso mais tempo para desmontar, na prática diária, os mecanismos e estruturas socialistas; só depois é que poderia atacar os fundamentos ideológicos do sistema. Forças marxistas-leninistas continuavam a sua actividade sob Bréjnev, apesar de já não determinarem as orientações do partido.
O abalo de Gorbatchov teria sido inevitável após o período Bréjnev?
Gorbatchov representaria o salto qualitativo num processo contínuo de degenerescência? Após o fracasso do brejnevismo, uma outra viragem, uma mudança revolucionária e marxista-leninista, teria sido possível na direcção do PCUS?
Uma resposta completa a todas estas interrogações exige com certeza um estudo da evolução económica e social da URSS, uma análise da diferenciação das classes sociais, uma informação bastante completa sobre as diferentes tendências existentes no PCUS e entre os seus quadros dirigentes, uma análise do peso do aparelho militar e das suas tendências políticas e ideológicas.
Neste estudo queremos avaliar se os quatro congressos do PCUS organizados sob Bréjnev podem indicar-nos respostas sobre algumas das perguntas levantadas. Os relatórios que Bréjnev apresentava no congresso do partido não são mais que um aspecto da realidade soviética. Mas são um aspecto importante porque nos dão as análises que a direcção fazia a propósito da situação nacional e internacional, a orientação política e ideológica que impunha ao partido, a sua visão do futuro e as tarefas que fixava ao partido e o povo.
Foi avançada a ideia de que a chegada ao poder de Bréjnev marcou uma ruptura com a política revisionista de Khruchov, que Bréjnev reabilitou Stáline e reintroduziu o conceito da ditadura do proletariado. Ora, no 23.° Congresso, realizado em 1966, Bréjnev afirma logo de entrada:
«Durante todos estes anos [1961-1966], o PCUS, inspirando-se da linha definida pelos 20.° e 22.º congressos do Partido, conduziu firmemente o povo soviético na via da construção do comunismo» (p. 5).
Em todo o relatório não encontramos a mínima crítica a nenhuma das grandes ideias novas que caracterizam o revisionismo de Khruchov.(2)
Durante o período abrangido pelo relatório produziu-se um acontecimento de importância histórica no movimento comunista internacional: a ruptura entre o PCUS e o Partido Comunista Chinês. No decurso da grande polémica, que ocorreu nos anos 1963 e 1964, a China defendeu os princípios revolucionários do leninismo, enquanto que a União Soviética, relativamente às questões essenciais, se virou para a social-democracia. No seu relatório, Bréjnev não produz a mínima análise nem o mínimo balanço desta luta ideológica. Apenas consagra algumas linhas sobre a China para dizer o seguinte:
«Os desvios da linha marxista-leninista, sejam eles de direita ou de "esquerda", tornam-se particularmente perigosos quando se confundem com manifestações de nacionalismo, de chauvinismo de grande potência e de hegemonismo» (p. 30-31).
Bréjnev conduz já a luta ideológica e política a golpes de bordão. Partindo das posições revisionistas de Khruchov, Bréjnev acusa o partido chinês de oportunismo de esquerda; a China é catalogada «de nacionalista» por ter se recusado a acatar as novas teses do 20.° e do 22.0 congressos do PCUS. A União Soviética projecta as suas próprias práticas bem reais de chauvinismo de grande potência e de hegemonismo sobre a China, cuja política de ajuda e de apoio aos revolucionários do mundo inteiro era, nos anos 60, autenticamente revolucionária. Esta política não tinha nada a ver com intenções de «hegemonia mundial», acusação que na altura foi lançada contra a China por todas as forças imperialistas. É bastante significativo o que escreve, em 1965, o antigo nazi Siegfried Muller, que ingressou na escola militar americana, em 1950, para a seguir servir a NATO durante seis anos e se tornar, em 1964, mercenário no Congo-Kinshasa:
«Se um perigo ameaça o Ocidente cristão, ele só pode vir da velha cidade imperial de Pequim. (...) Pequim já tacteia a África com a ponta do pé. Setecentos e cinquenta milhões de chineses comprimem-se no seu país. Avançam lenta mas seguramente em direcção aos Estados Unidos. Estão presentes na Indonésia, na Birmânia, em Hong-Kong (!!!) e em muitos outros lugares».(3)
Bréjnev apresenta uma análise da situação do movimento comunista internacional tingida pelo subjectivismo grosseiro que caracterizava a euforia khruchoviana, cuja função primária era encobrir a realidade.
«O movimento comunista internacional consolidou as suas posições como força política mais influente da nossa época» (p. 25). «No decurso dos anos transactos, o sistema mundial do socialismo reforçou-se sensivelmente. (...)
«Nos países irmãos, o regime socialista reforça-se regularmente» (p. 9 e 11). «Sim, este Estado socialista, vigoroso e próspero para todo o sempre, existe! Este Estado é a nossa pátria soviética, a URSS. O seu poderio no plano económico, militar e outros é inabalável» (p. 174).
O sentimento de potência irresistível que emana da URSS inspira a apreciação optimista do movimento comunista internacional. Mas falar de «consolidação» do movimento no momento da ruptura com os partidos chinês e albanês, no momento de confrontação política com a China socialista, com os seus 800 milhões de habitantes, no momento em que se manifestam divergências profundas com os partidos vietnamita, coreano, romeno e cubano, é pura mistificação. Analistas burgueses fizeram melhor ao assinalarem a possibilidade de um enfraquecimento estratégico do movimento comunista internacional devido à ruptura entre o PCUS e o PCC. A ideia do «poderio inabalável» da URSS está na base do hegemonismo soviético sobre o movimento comunista, que desponta já neste relatório do 23.° Congresso. «As constantes fundamentais da edificação socialista são comuns a todos os países» (p.11). Mas a URSS tem o monopólio para determinar estas constantes e, por conseguinte, para excomungar os que não seguem cegamente as concepções soviéticas, como foi o caso, nos anos 60, do Partido Comunista Chinês e do Partido do Trabalho Albanês.
Com a chegada ao poder de Bréjnev, o marxismo-leninismo transforma-se, de ciência da revolução, em ideologia, em falsa consciência que mascara os interesses privados de uma camada privilegiada que está a separar-se dos trabalhadores. Os relatórios que Lénine apresentava nos congressos do partido eram modelos de análise concreta, materialista, das realidades socioeconómicas em plena mudança, modelos com espírito de luta e de combate. Nos relatórios de Stáline reencontramos o marxismo-leninismo como ciência da prática da luta de classes; a análise que visa impulsionar a revolução mundial e a luta de classes na União Soviética, reencontramos o debate, a crítica, a confrontação política no interior do partido. Estas características fundamentais não devem ser obscurecidas pela constatação de certas fraquezas e erros políticos e ideológicos de Stáline, que não tinha o génio de Lénine. Com Bréjnev, o marxismo-leninismo passa a ser uma ideologia, um conjunto de teses, de ideias, de concepções, que serve para ofuscar as realidades vivas e moventes e legitimar os interesses particulares da camada no poder. Os relatórios de Bréjnev são verborreias mistificadoras à imagem dos discursos sociais-democratas no Ocidente que falam de socialismo, de ideais igualitários, de humanismo, de luta contra o capitalismo monopolista para melhor ocultar os antagonismos de classe e melhor conduzir as massas à colaboração com o sistema existente. No relatório de Bréjnev ao 23.° Congresso é em vão que procuramos uma análise materialista, profunda, sobre as posições políticas e os interesses económicos das diferentes camadas e classes sociais na União Soviética, uma análise dos fenómenos sociais essenciais da sociedade soviética. Bréjnev repete vezes sem conta generalidades do tipo:
«A teoria deve abrir sempre o caminho à prática» (p. 160) e «todo o trabalho ideológico deve estar estreitamente ligado à vida, à prática» (p. 163),
mas esquiva-se a aplicar estes excelentes preceitos. E quando de tempos a tempos se arrisca a «desenvolver» a teoria, afasta-se completamente da prática e da realidade.
«O Partido Comunista», afirma Bréjnev, «tornou-se ainda mais forte e monolítico» (p. 6).
Um ano após a queda de Khruchov, de que espécie de «monolitismo» se poderia falar? Sem a menor análise das realidades económicas, políticas, culturais, religiosas que existem entre as 131 nacionalidades e etnias que vivem na URSS, Bréjnev declara peremptoriamente:
«Os povos da URSS estão envolvidos num processo de aproximação cada vez mais pronunciado, a sua unidade e a sua coesão reforçam-se ao ponto de se tornarem indestrutíveis» (p. 165).
Bréjnev permanece fiel a uma das teses essenciais de Khruchov segundo a qual a luta de classes cessou de existir na URSS, excepto sob formas marginais de delinquência e de parasitismo. Isto leva Bréjnev a constatar certos fenómenos sociais, mas sem lhes consagrar uma análise de conjunto e em profundidade, portanto, sem desembocar numa prática de luta de classes consequente.
«Infelizmente», diz, «ainda existem pessoas que se reclamam da arte e que se consagram a denegrir o nosso regime, a caluniar o nosso povo heróico. É certo que se podem contar pelos dedos» (p. 127).
Eis ao que se resume a análise da corrente ideológica conduzida por Soljenítsine, esse ideólogo do tsarismo alimentado pelo anti-stalinismo de Khruchov, esse porta-voz das antigas correntes reaccionárias e das novas tendências pró-imperialistas na sociedade.
«Alguns jovens têm uma mentalidade de parasitas, exigindo muito do Estado, mas esquecendo o seu dever para com a sociedade. Os ideólogos burgueses apostam nestas pessoas pouco aguerridas, receptivas às más influências ideológicas, para as utilizar nos seus interesses. Felizmente que são muito raras entre nós» (p. 151).
A despolitização da juventude decorre necessariamente da concepção do Estado de todo o povo e da afirmação da cessação da luta das classes sob o socialismo. O marxismo-leninismo não pode ancorar-se na juventude senão como teoria da luta social viva. Um marxismo-leninismo esclerosado, ideologizado, não pode implantar-se no espírito dos jovens. Ora, desde Lénine, sabemos que não existe vazio em matéria de ideologia. Onde não se implanta a ideologia socialista, reina, sob as suas múltiplas formas, a ideologia burguesa.
A ideia essencial de Bréjnev é que já não existem ameaças sérias ao socialismo na URSS, podem ainda colocar-se pequenos problemas em sectores marginais da sociedade mas, no seio do «partido de todo o povo», atingem a plenitude para a eternidade o leninismo e o socialismo científico e que, por conseguinte, não há nenhuma ameaça de perigo vinda do interior do partido. Trata-se de uma completa desmobilização dos comunistas para a defesa da ditadura do proletariado, para a luta de classes no interior do partido e na sociedade. Daqui decorre um economismo grosseiro na concepção do partido e dos sindicatos. O economismo, a tendência de não considerar senão os problemas directos resultantes da produção e do trabalho na fábrica e no escritório, é uma forma da ideologia burguesa que se impõe espontaneamente aos trabalhadores. O economismo impede os trabalhadores de elevarem ao nível da compreensão dos interesses das diferentes classes e camadas sociais, das suas lutas e oposições; o economismo mascara a questão essencial da ditadura de certas classes que se exprime na acção do Estado. O economismo desmobiliza o partido para a defesa da ditadura do proletariado. Eis a tese economista fundamental elaborada por Bréjnev no domínio da edificação do partido:
«Nas novas condições, as organizações do Partido tornam-se ainda mais responsáveis pelo trabalho dos colectivos de produção, pelo desenvolvimento económico das cidades, das repúblicas. Elas devem tornar-se verdadeiros organizadores da realização dos planos [quinquenais] fixados pelo partido» (p. 102).
Bréjnev define a seguir as tarefas dos sindicatos:
«Nas condições actuais, a actividade dos sindicatos como escola do comunismo adquire um conteúdo novo. O alargamento das prerrogativas e da autonomia económica das empresas, a utilização sistemática dos estímulos económicos aumentam muito a responsabilidade dos sindicatos no que respeita ao cumprimento do plano do Estado, ao aperfeiçoamento técnico da produção, à multiplicação dos inventores e dos racionalizadores» (p. 142).
Ora, durante todo o período socialista existe a luta entre a via socialista e a via capitalista no campo da edificação económica; a autonomia das empresas e os estímulos materiais podem desenvolver os elementos capitalistas em todos os domínios essenciais, no da propriedade dos meios de produção, no da distribuição, no das relações sociais, no da consciência política. Estes problemas são deliberadamente afastados para permitir que os elementos burgueses no partido e no Estado consolidem as suas posições com toda a tranquilidade.
Debruçando-se sobre a economia, Bréjnev responde à imprensa burguesa que fala de crise na economia soviética e prognostica o abandono do socialismo.
«Estas afirmações são perfeitamente ridículas. A propriedade social dos meios de produção permanece para nós um princípio inelutável. Não só mantemos como continuamos a aperfeiçoar a planificação do desenvolvimento económico. O reforço da direcção planificada centralizada da economia nacional alia-se doravante ao alargamento da iniciativa e da independência das empresas. A sociedade socialista tem por princípio a remuneração em função da quantidade e da qualidade do trabalho fornecido, que implica consequentemente a acção dos estímulos económicos, o interesse material» (p.75-76).
Estas teses khruchovianas são pois reafirmadas por Bréjnev em 1966, e sê-lo-ão até à sua morte em 1982. Não obstante, o Partido Comunista Chinês tinha formulado observações que mereciam reflexão. Porém, na campanha antichinesa dirigida contra «o oportunismo de esquerda» de Mao Tse-Tung, todas as observações do PCC foram imediatamente varridas com desprezo. A ruptura entre o PCUS e o PCC provocou o enfraquecimento da luta política baseada no marxismo-leninismo e empobreceu grandemente a reflexão no seio do PCUS. O PCC escreveu em 1964:
«Khruchov aplicou uma série de medidas políticas revisionistas que aceleraram consideravelmente o desenvolvimento das forças capitalistas e exacerbaram de novo a luta de classes na União Soviética entre o proletariado e a burguesia, a luta entre a via socialista e a via capitalista. (...) As fábricas, que caíram nas mãos de elementos degenerados, permanecem nominalmente empresas socialistas, mas na realidade tornaram-se empresas capitalistas, instrumento da sua fortuna. As suas relações com os trabalhadores transformaram-se em relações de exploradores e explorados. (...) E os seus cúmplices no seio dos organismos de Estado, com quem têm ligações estreitas, participam em todo tipo de explorações, desviam fundos, dão e aceitam subornos, participam na partilha do saque. Não serão eles também elementos burgueses na plena acepção do termo?»(4).
Apesar de certas conclusões provavelmente precipitadas, estas observações colocam correctamente um problema fundamental que não parou de se agravar ao longo de todo o reinado de Bréjnev.
É interessante notar que Bréjnev aflora já em 1966 um certo número de fragilidades do sistema económico, que, apesar de serem retomadas em todos os congressos seguintes, nunca serão corrigidas, bem pelo contrário.
«No decurso destes últimos anos, começaram a manifestar- se fenômenos negativos como o abrandamento das taxas de crescimento da produção e da produtividade do trabalho, a diminuição da eficácia na utilização dos fundos produtivos e dos investimentos» (p. 71). «A taxa de crescimento das principais produções agrícolas foi sensivelmente inferior à registada no precedente período de cinco anos» (p. 89). «Entre as imperfeições mais graves devemos mencionar a lentidão da passagem dos avanços do laboratório à produção. Os prazos de aplicação das descobertas estendem-se frequentemente por anos» (p.120). «O Partido definiu como um dos objectivos mais urgentes a melhoria substancial da qualidade da produção fornecida» (p. 83). «Nem todas as empresas que fabricam os artigos de consumo têm em conta as exigências crescentes e gostos dos consumidores. Numerosos artigos são de qualidade inferior» (p. 111).(5)
Bréjnev não faz uma análise materialista e dialéctica dos pontos fortes e fracos do imperialismo, nem dos fenómenos positivos e negativos nos países socialistas, nem tão pouco da evolução da luta entre socialismo e imperialismo nos diferentes domínios. Também aqui só produz ideologia: o socialismo avançando sempre vitoriosamente, o imperialismo afundando-se em crises cada vez mais graves.
«O sistema capitalista conhece uma crise geral». «A agressividade crescente do imperialismo reflecte o crescimento das dificuldades e das contradições com as quais se debate o sistema capitalista mundial hoje em dia. (...) O imperialismo é impotente para obstaculizar o avanço da história» (p. 17-18 e 7-8).
Desta visão de um imperialismo «impotente para obstaculizar o avanço da história» decorre uma posição reformista sobre a passagem do capitalismo ao socialismo. Bréjnev retoma a tese de Khruchov sobre a passagem pacífica pela via parlamentar «apoiada por duras lutas de massas». Na França, onde o Partido Comunista se tinge cada vez mais de revisionismo, Bréjnev constata «a maturidade política acrescida das massas». Faz a mesma afirmação relativamente à Itália e aos Estados Unidos.
«Constata-se a formação de uma vasta frente antimonopolista. Este processo favorece a união das massas e o alargamento da sua luta pelo objectivo final: a transformação revolucionária da sociedade, o socialismo. O capitalismo está na véspera de dias difíceis. Torna-se cada vez mais evidente que está predestinado a desaparecer. Mas os capitalistas nunca renunciarão por vontade própria à sua dominação. Só através de batalhas de classe tenazes é que as massas trabalhadoras e a classe operária alcançarão a vitória» (p. 22-23).
Esta é a linguagem de todos os traidores do marxismo, a começar pelos sociais-democratas dos anos 1918-1921 que então divagavam sobre «as batalhas tenazes» e a «a transformação revolucionária da sociedade», para melhor combater a insurreição popular, a destruição do aparelho repressivo do Estado burguês e a ditadura do proletariado.
Mais grave ainda, a suposta «impotência» do imperialismo serve para justificar a via reformista nos países do Terceiro Mundo e repelir a via da revolução nacional e democrática, defendida então de maneira consequente pelo PCC, relegado para um canto pelo seu «oportunismo de esquerda». Referindo a República Árabe Unida (o Egipto, a Síria), a Argélia, o Mali, a Guiné, o Congo- Brazzaville e a Birmânia, onde «importantes transformações sociais foram realizadas», Bréjnev afirma:
«As massas populares convencem-se de que a melhor via é a do desenvolvimento não capitalista. Os povos não podem livrar-se da exploração, da miséria e da fome sem enveredarem por esta via. (...) Estabelecemos relações estreitas e amigáveis com os jovens Estados que se orientam para o socialismo» (p. 4).
Estas teses revisionistas negam a necessidade de uma análise de classe das diferentes forças no poder nos países recentemente independentes; negam também a análise de classe do antigo aparelho de Estado colonial, que frequentemente continua intacto, bem como recusam uma avaliação materialista da dominação do imperialismo sobre as diferentes alavancas económicas nestes países.
No seu relatório ao 24.° Congresso, Bréjnev reafirma novamente a linha revisionista do 20.° Congresso.(6)
Por duas vezes, Bréjnev sublinha que o «dogmatismo» do tempo de Stáline deu lugar «ao espírito criador», e que a «destalinização» de Khruchov era necessária e correcta.
«O partido mostrou a inanidade das concepções dogmáticas que ignoram as grandes mudanças positivas ocorridas nestes últimos anos na vida da nossa sociedade. A liquidação das sequelas do culto da personalidade e dos erros subjectivistas teve repercussões profundamente benéficas na atmosfera política geral» (p. 183).
Após ter denunciado a tendência extremista de direita representada por Soljenítsine, Bréjnev vê-se obrigado a atacar aqueles que continuam a defender certas concepções fundamentais da época stalinista.
«Uma outra tendência extrema é a tentativa de branquear certos fenómenos registados no passado e que o Partido submeteu a uma firme crítica de princípio; é a tentativa de manter noções e opiniões contrárias ao elemento novo, criador, que o Partido introduziu no decorrer destes últimos anos» (p. 157).
Bréjnev redobra os seus ataques contra a China e contra todos os partidos e organizações que insistem numa interpretação revolucionária do marxismo-leninismo.
«Os dirigentes chineses», declara Bréjnev, «adoptaram a respeito das questões essenciais da vida internacional e do movimento comunista mundial uma plataforma ideológica e política específica, incompatível com o leninismo. Exigiram que renunciássemos à linha do 20.° Congresso e ao programa do PCUS» (p. 17).
Tal como no 23.° Congresso, não aprendemos nada sobre as questões de fundo debatidas entre o PCUS e o PCC. A China teria «exigido» que o PCUS renunciasse à sua linha. Na realidade foram os soviéticos que exigiram a todos os partidos comunistas do mundo que subscrevessem a linha do 20.° Congresso do PCUS. Apelaram abertamente ao derrubamento dos dirigentes dos partidos que exprimiam o seu desacordo com Khruchov. Em vários partidos, a direcção do PCUS organizou putschs para afastar os dirigentes que mantinham a linha «stalinista» e substituí-los por adeptos da linha revisionista de Khruchov. Servindo-se da sua posição hegemónica, os dirigentes soviéticos decretaram que «a plataforma política específica» elaborada pelo PCC era «incompatível» com o leninismo (na sua versão khruchoviana...). Também Bréjnev faz do seguidismo político em relação ao PCUS o critério decisivo do internacionalismo: os que não seguem são culpados de desvio nacionalista senão mesmo de anti-sovietismo. No entanto é claro que durante o grande debate, os chineses defendiam as teses essenciais de Lénine e o seu espírito revolucionário, enquanto que Khruchov apresentava como «desenvolvimentos criativos do leninismo» velhas teses sociais- democratas. Muitas organizações revolucionárias, nascidas nos anos 60, sentiam-se mais próximas das ideias defendidas pela China e pela Albânia do que do revisionismo. Todas foram acusadas de quererem provocar a cisão, desprezando as realidades políticas do respectivo país. Assim, o insignificante grupo revisionista dos irmãos Lava, nas Filipinas, recebe o rótulo de marxista-leninista, enquanto que o novo Partido Comunista das Filipinas, uma das organizações comunistas mais sérias e dinâmicas da Ásia, é afastado como divisionista. Na Itália, Bréjnev classifica «o grupúsculo Il Manifesto»(7) entre os «renegados» (p.36).
Entre 1966 e 1971, Bréjnev passou da luta política para eliminar a linha marxista-leninista defendida pelo PCC à confrontação política e militar com o Estado chinês.
«Os dirigentes chineses», declara Bréjnev, «desencadearam uma violenta campanha de propaganda odiosa contra o nosso partido e o nosso país, formularam pretensões territoriais em relação à URSS e chegaram mesmo a provocar incidentes armados na fronteira soviética em 1969» (p. 17).
Os que estudaram este problema com objectividade reconhecem que o direito estava do lado chinês e que Bréjnev seguiu neste caso uma política de força e de hegemonismo. Do que é que se tratava? Da delimitação da fronteira entre a China e a URSS ao longo dos 1200 quilómetros em que o Ussuri separa os dois países. Um tratado desigual imposto pelos tsares colocou esta fronteira sobre a margem chinesa do rio. Jaurès Medvédiev, que não pode ser suspeito de simpatia em relação à China, escreve:
«A atitude da China era mais lógica na medida em que pretendia que a Revolução de Outubro tinha anulado os tratados assinados pelo governo tsarista».(8)
A China aceitava o status quo e por conseguinte a anexação de territórios chineses pelo tsarismo, mas exigiu que a fronteira sobre o Ussuri fosse definida segundo as regras internacionais.
«Os dois países precisam do rio para a navegação, a pesca e outras actividades», escreve Medvédiev. «Habitualmente, quando um rio faz fronteira, a linha de separação passa ou pelo meio do rio ou pelo meio do canal de navegação».
Pouco depois da morte de Bréjnev, em Novembro de 1982, uma nova lei sobre a fronteira soviética estipula no seu artigo 3.º que «a fronteira passa pelo meio do canal de navegação nos rios navegáveis»(9). Mas, em 1969, por pouco Bréjnev não provocou uma guerra geral com a China.
«Foi Bréjnev que deu ordem à artilharia de atacar maciçamente as tropas chineses, o que provocou a morte de vários milhares de soldados chineses e um profundo ressentimento da China em relação à União Soviética».(10)
Este confronto com a China é sintomático da passagem da URSS a uma política de hegemonismo relativamente aos países socialistas e aos países anti-imperialistas do Terceiro Mundo.
Esta atitude hegemónica decorre de uma política que aposta no poderio militar como meio essencial para influenciar o curso dos acontecimentos no mundo.
«Durante o período considerado», diz Bréjnev, «os problemas do exército estiveram sem cessar no centro da nossa atenção». «Reforçar o Estado soviético quer também dizer reforçar as suas forças armadas, aumentar ao máximo a capacidade de defesa da nossa pátria» (p. 145 e 144).
A coberto do internacionalismo, a União Soviética propulsa a sua força militar para os diferentes pontos do mundo onde as oportunidades se apresentam para implantar e reforçar a presença soviética. O «orgulho pela pátria» degenera em chauvinismo de grande potência.
«Foi realizado um trabalho considerável para educar os soviéticos no orgulho pela sua pátria, o seu povo e as suas grandes realizações, no respeito das páginas gloriosas do passado do seu país» (p. 149).
Do tsarismo retêm-se «as grandes realizações» e apagam-se os crimes de agressão, da expansão, da anexação. A defesa do tratado tsarista sobre a fronteira do Ussuri é característica do pensamento de Bréjnev. Pensamos que este acesso de chauvinismo explica também por que razão a direcção do PCUS abandonou naquele momento a crítica contra Stáline. Não se trata de uma refutação das teses khruchovianas e de um regresso a concepções revolucionárias defendidas no tempo do Stáline: Bréjnev retém do passado apenas os aspectos de grandeza e as vitórias que permitem reforçar um patriotismo chauvinista e conquistador. A crítica de Stáline não se enquadra numa educação centrada no passado glorioso da pátria.
A opção de um país pela via socialista é, no espírito dos dirigentes soviéticos, cada vez mais sinónimo de aliança com a União Soviética, de aceitação do seu guarda-chuva militar e de acordo com a sua interpretação do socialismo.
Bréjnev coloca a tónica na «integração econômica dos estados socialistas» (p.8) que implica, na realidade, uma subordinação das economias dos diferentes países socialistas à da União Soviética. Estendendo o seu guarda-chuva militar sobre todos os países socialistas, Bréjnev declara:
«As fronteiras da comunidade socialista são invioláveis e intangíveis». «A unidade fraternal dos países socialistas é a melhor muralha contra as forças que tentam atacar e enfraquecer o campo socialista» (p. 21-22).
Na aparência, a União Soviética exprime assim a sua fidelidade ao internacionalismo proletário. Olhando mais de perto, a sua ingerência e o seu controlo sobre os outros países, longe de reforçarem a comunidade socialista, enfraquecem as bases do socialismo nos diferentes países e fazem assentar a coesão sobre a força da União Soviética. A teoria da «melhor muralha: a unidade fraternal», isto é, a protecção da União Soviética, é fundamentalmente falsa. A melhor muralha não pode ser senão a mobilização dos trabalhadores, o desenvolvimento da sua consciência, o seu esforço independente para defender o regime popular. Nesta base, um país pode recorrer, em circunstâncias excepcionais e por um período limitado, à ajuda dos países socialistas amigos. A República Democrática Popular da Coreia manteve sempre a sua independência política e económica. Agredida pelo exército americano em 1950, aceitou a ajuda militar chinesa e soviética, mas isso não a desviou da sua política fundamental de contar antes de mais com as suas próprias forças. A experiência mostrou que o socialismo na Coreia estava mais firmemente implantado nas massas do que nos países da Europa de Leste que aceitaram o controlo económico e militar permanente da URSS.
A mesma tendência de hegemonia e de controlo é perceptível na concepção da luta no Terceiro Mundo defendida por Bréjnev.
«O sistema socialista mundial», afirma, «representa a força decisiva na luta anti-imperialista» (p.8).
Declarando a União Soviética como «a força decisiva» na luta anti-imperialista, Bréjnev tende a colocar os países e os povos anti-imperialistas sob a sua «protecção» e recusa o ponto de partida de qualquer visão revolucionária do mundo: são os povos que fazem a história, as massas trabalhadoras do Terceiro Mundo são os artesãos da sua libertação, a consciência anti-imperialista, a capacidade de organização, a força de combate dos povos do Terceiro Mundo são o factor essencial na luta anti-imperialista.
O ponto-chave da traição khruchoviana é a negação da luta de classes sob o socialismo e, por conseguinte, a liquidação da ditadura do proletariado. Bréjnev levou este absurdo ao cúmulo. A simples observação materialista da sociedade soviética mostrava que as diferenças de classe se acentuavam à medida que os anos passavam e se agudizavam as contradições económicas, políticas e culturais entre as repúblicas. Mas «os desenvolvimentos criativos da teoria», de que Bréjnev fala, são elucubrações idealistas, completamente afastadas da realidade, não passam de imagens ideológicas com que a camada dirigente se enfeita para legitimar a nova divisão da sociedade em classes antagónicas. Eis o que diz Bréjnev sobre a sociedade sem classes que existiria na URSS:
«A aproximação de todas as classes e grupos sociais, o reforço da sua unidade social produzem-se entre nós com base na ideologia marxista-leninista» (p. 129). «A nossa intelligentsia soviética considera que é sua vocação consagrar a energia criativa à obra da edificação da sociedade comunista» (p. 132).
Naquela altura, uma grande parte desta intelligentsia que «se consagra ao comunismo» está na realidade completamente despolitizada, desenvolve uma ideologia tecnocrática e é atraída pelo sistema económico e social do Ocidente. Nesta sociedade brejneviana sem classes apagam-se também as distinções entre nacionalidades... Bréjnev fala de
«uma demonstração impressionante da unidade monolítica de todos os povos da nossa Pátria» (p. 134).
Isto leva-o a formular uma das suas descobertas teóricas essenciais: a criação do povo soviético, noção na qual se dissolvem as classes assim como as nacionalidades.
«Assistimos à formação no nosso país de uma nova comunidade histórica: o povo soviético. Novas relações harmoniosas entre as classes e os grupos sociais, entre as nações e as nacionalidades, relações de amizade e de cooperação, nasceram no trabalho comum. (...) As pessoas no nosso país estão unidas pela sua ideologia marxista-leninista comum» (p. 136).
Esta ficção «da unidade do povo soviético selada pelo marxismo-leninismo» é contrariada por múltiplos factos e fenómenos que não podem deixar de se assinalar. Como resolve Bréjnev esta contradição? Reduzindo contradições e antagonismos sociais a fenómenos marginais resultantes de atitudes pessoais e da degenerescência moral individual. Por outras palavras nega que os fenómenos negativos demasiado visíveis estejam relacionados com a diferenciação das classes em função das posições económicas e sociais cada vez mais divergentes que os indivíduos ocupam na produção material e no seio do aparelho estatal; nega que estejam relacionados com as correntes políticas burguesas, reaccionárias que se desenvolvem tanto junto das camadas dirigentes como no seio das massas populares.
«É necessário reconhecer que ainda há funcionários sem coração, burocratas, personagens grosseiras», constata Bréjnev.
O seu remédio não passa de um banal voto piedoso.
«Uma atmosfera de benevolência, de respeito pelo homem, deve reinar em cada um dos nossos escritórios» (p. 139).
Ele anuncia
«uma luta constante e implacável contra os resquícios do passado, (...) [contra] o parasitismo, a cupidez, o peculato, a calúnia, a má- fé, a embriaguez, etc.» (p. 150).
A análise de Bréjnev sobre os países dominados pelo capitalismo mundial é, também ela, completamente desprovida de fundamento materialista. De 1917 a 1956, o socialismo mundial conheceu um desenvolvimento notável graças a incessantes lutas revolucionárias dos povos, dirigidas, no essencial, de maneira correcta pelos partidos comunistas. Durante este período, o imperialismo teve que recuar frente ao vigor do movimento revolucionário internacional dos povos. Esta tendência, concretizada através de persistentes combates, é transformada por Bréjnev numa lei da história que se impõe automaticamente: o socialismo reforça-se continuamente e o imperialismo tende irremediavelmente para o seu fim.
«A crise geral do capitalismo continua a aprofundar-se» (p. 24).
A abordagem idealista e unilateral das realidades do imperialismo é seguida de uma estratégia reformista para «derrubar» o capitalismo nas metrópoles e para eliminar o imperialismo nos países dependentes.
«As batalhas actuais travadas pela classe operária anunciam novas confrontações de classe susceptíveis de conduzirem a transformações sociais fundamentais, à instauração do poder da classe operária em aliança com as outras camadas de trabalhadores» (p. 29).
A instauração do socialismo através de transformações sociais é a ideia mestre da social-democracia e dos partidos burgueses «socializantes». Durante os anos 60, certos partidos burgueses e pequeno-burgueses do Terceiro Mundo utilizavam um palavreado marxista e socialista para mistificar uma população extenuada por décadas de crueldade colonial, para atrair apoios do campo socialista e reforçar a sua posição nas negociações com o capitalismo internacional. Afastando toda e qualquer análise de classe e à revelia de qualquer a estratégia leninista, Bréjnev declara que estas forças enveredam pela via do socialismo autêntico.
Após saudar «a ofensiva das forças de libertação nacional e social contra o domínio do imperialismo», Bréjnev afirma:
«Na Ásia e na África, muitos países já enveredaram pela via do desenvolvimento não capitalista, isto é, optaram por edificar no futuro a sociedade socialista».
Menciona nomeadamente o Egipto, a Birmânia, a Argélia, a Guiné, o Sudão, a Somália, a Tanzânia, a Síria, o Congo-Brazzaville.
«Os governos do Peru e da Bolívia lutam contra o domínio dos monopólios americanos» (p.33).
Na embriaguez que se seguiu a vitória parlamentar da esquerda chilena, a estratégia reformista de Bréjnev parece ter passado a prova do fogo.
«No Chile, a vitória da Frente de Unidade Nacional foi um acontecimento capital» (p.32).
Porém, uma observação minimamente lúcida das realidades no seio da «comunidade socialista», que se encontra sob influência soviética, permite descobrir o bluff político de Bréjnev. A sua «sociedade sem classes» pode ainda criar ilusões na URSS, onde os comunistas autênticos moldaram desde 1917 a fisionomia política das amplas massas e onde as tradições, como o poderio do Exército Vermelho e dos serviços policiais, impõem uma certa unidade à sociedade.
Mas nas sociedades da Europa de Leste rebentam as contradições de classe e desenvolvem-se vigorosamente movimentos de massas burgueses. Bréjnev é incapaz de perceber a amplitude e a profundidade destes fenómenos e, por conseguinte, de encontrar os remédios adequados. A presença ou intervenção do Exército Vermelho impede a direita de triunfar nestes países, mas a decomposição não pode evidentemente ser interrompida pelas generalidades banais de um Bréjnev cego perante as realidades.
A Polónia conheceu uma crise em 1968 (200 mil pessoas, essencialmente intelectuais liberais, foram excluídas do partido) e greves importantes em 1971. Bréjnev analisa a situação:
«Assinalamos com uma profunda satisfação que as dificuldades que surgiram na Polónia foram superadas. O Partido Operário Unificado Polaco está a tomar medidas no sentido de consolidar a ligação à classe operária e reforçar as posições do socialismo no país» (p. 15).
Foi a corrente social-democrata de Dubcek, à cabeça do partido checoslovaco, que lançou o desafio mais perigoso tanto para os fundamentos socialistas do país, como para as pretensões hegemónicas da URSS. O Exército Vermelho teve que intervir em Agosto de 1968.
«Os acontecimentos na Checoslováquia lembraram uma vez mais que nos países empenhados na via da edificação socialista, as forças anti-socialistas internas, que mais ou menos persistem, podem, em certas condições, intensificar a sua actividade e chegar a actos contra-revolucionários directos na esperança de um apoio do exterior por parte do imperialismo, sempre pronto a fazer bloco com estas forças. Vimos manifestar-se o perigo do revisionismo de direita que, sob pretexto de melhorar o socialismo, se esforça por desimpedir a via à ideologia burguesa. (...) É importante reforçar constantemente o papel dirigente do partido na sociedade socialista, abordar como marxistas-leninistas, com um espírito criador, os problemas do desenvolvimento socialista que amadureceram» (p. 20).
Na realidade, os fundamentos do revisionismo de direita tinham sido lançados por Khruchov: a denúncia da experiência revolucionária do partido sob Stáline, a rejeição da ditadura do proletariado, a teoria do fim da luta de classes sob o socialismo, a concepção do partido «de todo o povo». Khruchov é sem dúvida o primeiro a ter desimpedido o caminho à ideologia burguesa sob pretexto de melhorar o socialismo. Bréjnev tenciona manter este revisionismo soviético, mas ao mesmo tempo quer proibir os outros de tirarem todas as consequências deste revisionismo. Mas não se pode criticar eficazmente os ultra-revisionistas partindo de uma posição revisionista. Neste contexto, «reforçar o papel dirigente do partido» quer dizer: reforçar a direcção de um partido fiel à concepção revisionista que prevalece em Moscovo e não permitir que se desenvolvam centros de contrapoder ultra-revisionistas, ou seja, sociais-democratas pró-ocidentais.
Noutro domínio essencial, o do desenvolvimento do movimento comunista internacional, as pretensões de Bréjnev à hegemonia mundial revelam-se um bluff.
Bréjnev afirma que a Conferência Internacional dos Partidos Comunistas e Operários, realizada em 1969,
«fez muito para aprofundar um certo número de pontos da teoria marxista-leninista aplicada à situação contemporânea» (p.34).
A seguir expõe a sua ideia mestre:
«No conjunto, a coesão do movimento comunista internacional não pára de se aprofundar» (p. 35).
Na realidade, com base na plataforma revisionista de Khruchov, um grande número de partidos comunistas precipita-se em direcção à reconciliação com a burguesia local e à colaboração com a grande burguesia monopolista. Esta aproximação com a burguesia do seu próprio país significa de facto a destruição da unidade do movimento comunista internacional.
Totalmente divididos sobre as questões da revolução, os partidos comunistas, sob o impulso de Bréjnev, tentam manter uma unidade no apoio à União Soviética e na luta pelo desarmamento. Mas como a traição do marxismo revolucionário atinge todos os domínios, também aqui a unidade se torna meramente formal.
Aliás, apesar da sua demagogia sobre a unidade, Bréjnev não consegue esconder os quatro eixos pelos os quais o movimento comunista rebenta: a defesa da experiência revolucionária de Lénine e Stáline («revisionismo de esquerda»), a social-democracia, versão Dubcek ou Togliatti («revisionismo de direita»), a oposição ao modelo soviético como referência, às imposições e às intervenções nos assuntos dos outros partidos («nacionalismo») e finalmente a fidelidade incondicional à URSS («marxismo-leninismo autêntico»). Bréjnev diz o seguinte:
«A luta contra os revisionistas de direita e de esquerda, contra o nacionalismo, mantém toda a sua actualidade. É precisamente sobre as tendências nacionalistas, em particular sobre aquelas que tomam a forma do anti-sovietismo, que os ideólogos burgueses apostam mais» (p. 35).
Apesar desta constatação (bem discreta) das tendências de ruptura, Bréjnev mantém a ficção de que «a luta de princípio» conduzida pelo PCUS, contra todos os revisionismos que não se enquadram nos seus próprios interesses, orienta o conjunto do movimento comunista mundial e assegura-lhe a sua unidade!
«A luta inflexível do PCUS pela pureza da teoria marxista-leninista do partido teve uma larga ressonância internacional, concorrendo para orientar no bom caminho os comunistas e os milhões de trabalhadores» (p. 182).
A conferência internacional de 1969, glorificada por Bréjnev pelo seu «aprofundamento da coesão do movimento comunista», será a última que os soviéticos conseguirão convocar...
O 25.° Congresso encontra Bréjnev no apogeu da sua «grandeza».(11) É neste congresso que o revisionismo, entrando em delírio, se torna numa parvoíce. É este congresso que lançará pela primeira vez um programa em favor do hegemonismo soviético nos cinco continentes.
Bréjnev vai mais longe do que Khruchov na cegueira frente às realidades sociais e políticas da União Soviética; o seu discurso ideologista já não tem raízes na análise concreta. Apesar das críticas de 1965 sobre o subjectivismo e o voluntarismo de Khruchov, o qual prometia ultrapassar os Estados Unidos no decurso dos anos 70 e realizar o comunismo antes de 1980, dez anos mais tarde, Bréjnev perde-se na mesma auto-satisfação beata e estúpida. A União Soviética é uma sociedade sem classes e sem contradições entre nacionalidades que o Estado de todo povo transforma em sociedade comunista, garantia de um progresso contínuo e ilimitado!
«No nosso país», declara Bréjnev, «está construída uma sociedade socialista desenvolvida que se transforma progressivamente em sociedade comunista. O nosso Estado é o Estado de todo o povo. Constituiu-se entre nós uma comunidade histórica nova — o povo soviético — que assenta na aliança indestrutível da classe operária, do campesinato, da intelligentsia, na amizade de todas as nações e etnias do país» (p. 110). «É uma sociedade de economia sem crises e em perpétuo crescimento. É uma sociedade que tem uma confiança firme no seu futuro e perante a qual se abrem perspectivas ilimitadas de um progresso contínuo» (p. 118).
O mesmo quadro surrealista é pintado para os outros países socialistas, Polónia, Checoslováquia, etc., que conhecem «um progresso incessante» e «uma consolidação política contínua» (p. 9).
«A comunidade socialista tornou-se hoje a força econômica mais dinâmica do mundo» (p. 13).
Na sua caminhada para a frente, contínua e irresistível, o socialismo desenvolvido exerce uma influência cada vez mais forte sobre o destino do mundo inteiro.
«O mundo modifica-se literalmente sob os nossos olhos, e na melhor direcção. (...) Poderemos nós evitar um sentimento de profunda satisfação perante a força das nossas ideias, a eficácia da nossa política?» (p.5).
Este é o discurso de uma nova camada burguesa que, tendo-se separado completamente das massas trabalhadoras, separa-se também — contrariamente à grande burguesia do mundo imperialista —, das realidades políticas e ideológicas do seu país, bem como das realidades internacionais.
Desta visão ideologista de um socialismo irresistível e triunfante na União Soviética e, sob o impulso da URSS, nos outros países socialistas, nasceu a concepção da hegemonia mundial, o contributo mais original de Bréjnev para a ciência política. Bréjnev tem a firme convicção de que, numa grande parte do mundo actual, dominará em breve o socialismo de tipo soviético, graças à ajuda e à direcção política geral da União Soviética.
A concepção do hegemonismo de Bréjnev tem as suas raízes na hegemonia muito real que a União Soviética exerce sobre os países socialistas da Europa de Leste. Já não se pode falar de uma unidade genuína, revolucionária, da comunidade socialista, uma vez que lhe falta o fundamento: a direcção efectiva do Partido Comunista sobre as massas, ganhas através da luta de classes contra as antigas camadas exploradoras, contra as ingerências e as influências ideológicas do imperialismo, contra a burocracia, a tecnocracia, o revisionismo e a corrupção nas instituições, e na mobilização política das massas trabalhadoras para a edificação económica. As camadas aburguesadas que dirigem os países socialistas de Leste já perderam a direcção política da maioria do povo; a influência que ainda têm provém essencialmente do enquadramento administrativo e não é conquistada numa luta de classes política. A obediência destas camadas aburguesadas - que, recusando o regresso aos métodos da mobilização política das massas, métodos qualificados de «stalinistas», não têm outras possibilidades de sobrevivência - é apresentada como uma forma superior da integração socialista. Bréjnev declara:
«Vemos que aparecem cada vez mais elementos comuns na política, na economia, na vida social dos Estados socialistas. Este processo de aproximação gradual dos países socialistas adquire hoje força de lei» (p. 9).
É de notar que pelo menos três dos 12 países que Bréjnev inclui na sua «comunidade socialista» se subtraem à integração preconizada por Bréjnev. A Jugoslávia e a Roménia compram a sua liberdade relativa vendendo-se às multinacionais e aos bancos ocidentais. A Coreia mantém a sua independência através de uma política de mobilização popular. Bréjnev também sublinha a necessidade
«de lutar contra o retraimento sobre si próprio e o isolamento nacional» (p.9).
Como revisionista, Bréjnev combateu a estratégia da insurreição popular tanto nos países imperialistas como nos do Terceiro Mundo; pronunciou-se sempre pela estratégia reformista, em que a direcção cabe à burguesia «esclarecida» aliada com formações revisionistas. A sua revolução mundial é, na sua essência, a extensão a todo o planeta do hegemonismo soviético segundo o modelo da Europa de Leste. Para Bréjnev, o socialismo mundial não nascerá da soma das experiências revolucionárias nacionais; ele nega que os partidos revolucionários devem estar ancorados nas realidades específicas do seu país ou que devem mobilizar as amplas massas, tendo em conta as suas particularidades, para a luta revolucionária, para a luta armada, e esmagar as forças do imperialismo e da reacção local. Hostil a qualquer revolução popular autêntica, Bréjnev vê o progresso do socialismo na atracção que o modelo soviético exerce sobre centenas de milhões de homens. Ele rejeita a ideia de que as massas populares armadas constituem a única muralha contra o imperialismo e a reacção, mas faz lampejar aos povos acções do exército soviético como garantia da sua liberdade.
Ao apresentar a actividade do bloco soviético como o «eixo principal do progresso da humanidade», Bréjnev nega a verdade elementar de que só a acção revolucionária autónoma dos que ainda sofrem o jugo do imperialismo pode conduzir ao socialismo na sua parte do mundo. A construção do socialismo, a luta pela revolução socialista e a luta pela revolução nacional e democrática são os três eixos do progresso político e social. Estes três eixos são fundamentais e independentes, embora existam também relações de interdependência entre eles. Ampliar arbitrariamente um eixo, o da construção do socialismo e da sua influência sobre o mundo, a despeito das lutas revolucionárias dos trabalhadores e das nações oprimidas, é um dos passos característicos do revisionismo khruchoviano.
Vale a pena notar que quando Khruchov elaborou as suas teses, apresentou de imediato a construção do socialismo na URSS e a influência que a sua linha de coexistência pacífica exerceria sobre as lutas dos povos como o factor decisivo na evolução da humanidade. No momento do Grande Debate, o Partido Comunista Chinês denunciou a tese avançada pelos soviéticos de que
«o princípio da coexistência pacífica determina agora a linha geral da política externa do PCUS e dos outros partidos marxistas-leninistas». «Quando o povo soviético gozar dos benefícios do comunismo, outras centenas de milhões de homens sobre a terra dirão: somos a favor do comunismo! E nesse momento, mesmo os capitalistas “passarão para o Partido Comunista”»(12).
Os revisionistas khruchovianos, dizia o PCC,
«querem subordinar a revolução de libertação nacional à sua linha geral de coexistência pacífica e aos interesses nacionais do seu próprio país».(13) «Os países socialistas e as lutas revolucionárias dos povos e nações oprimidas apoiam-se e ajudam-se mutuamente. O movimento de libertação nacional na Ásia, na África e na América Latina e o movimento revolucionário dos povos dos países capitalistas constituem um poderoso apoio para os países socialistas. Os países socialistas não devem adoptar [a seu respeito] uma atitude meramente formal, de egoísmo nacional ou de chauvinismo de grande potência. (... ) A superioridade do sistema socialista e as realizações dos países socialistas na edificação servem de exemplo e constituem um incentivo para os povos e nações oprimidas. Contudo, este exemplo não pode em caso algum substituir a luta revolucionária dos povos e nações oprimidas. Só pela sua própria luta revolucionária resoluta é que todos os povos e nações oprimidos obterão a sua libertação. Ora, alguns exageram unilateralmente o papel da competição pacífica entre países socialistas e países imperialistas e tentam substituir a competição pacífica à luta revolucionária dos povos e nações oprimidos. De acordo com o seu sermão, o imperialismo desabaria por si próprio no decurso da competição pacífica, e os povos e nações oprimidos só teriam que esperar tranquilamente por esse dia».(14)
Esta controvérsia de 1963 é muito reveladora. Constatamos que Bréjnev, em 1976, não abandonou, quanto ao fundo, o ponto de vista de Khruchov. Mas «desenvolve» de maneira criadora o revisionismo no contexto da correlação de forças mundial existente em 1976.
Eis o ponto de vista de Bréjnev:
«O desenvolvimento dos países socialistas e o aumento do seu poderio e da influência benéfica exercida pela sua política internacional constituem hoje o eixo principal do progresso social da humanidade. A força de atracção do socialismo cresceu ainda mais perante a crise que rebentou nos países capitalistas» (p.37-38). «O socialismo exerce já hoje uma imensa influência sobre as ideias de centenas de milhões de homens no mundo. (...) Serve de muralha aos povos que lutam para a sua liberdade e a sua independência» (p.15).
Para Khruchov, o futuro do socialismo é determinado pelo exemplo que a URSS oferecerá aos povos, graças à sua política de coexistência pacífica e à sua competição econômica com o capitalismo (competição que ganhará, como é evidente). Bréjnev mantém este ponto, mas acrescenta que a força econômica e militar da URSS exercerá uma influência até ao mais pequeno recanto do planeta, facilitando a passagem ao socialismo.
Esta linha de hegemonismo soviético, apresentada como uma aplicação do internacionalismo proletário, está orientada sobretudo para os povos do Terceiro Mundo, o elo fraco do sistema imperialista mundial. Eis a exposição de Bréjnev:
«A União Soviética não se intromete nos assuntos internos dos outros países e povos. (...) Nos países em vias de desenvolvimento, como por toda a parte, estamos ao lado das forças do progresso, da democracia e da independência nacional» (p.18).
«A tragédia do Chile não infirmou de modo algum a conclusão dos comunistas sobre a possibilidade de a revolução seguir vias diversas, incluindo pacíficas, se as condições necessárias estiveram reunidas para isso. Mas recordou imperiosamente que a revolução deve saber defender-se. Ela recomenda vigilância face ao fascismo e aos actos da reacção estrangeira, ela preconiza o reforço da solidariedade internacional» (p. 41).
Combatendo com maior frequência os verdadeiros marxistas-leninistas no Terceiro Mundo, Bréjnev apoiará reformistas (Chile), bem como golpistas e aventureiros (Etiôpia, Afeganistão), que apresenta indistintamente como artesãos da revolução socialista. Como a União Soviética «está ao seu lado» e o seu exército «constitui a muralha que garante a sua liberdade», Bréjnev intervirá em vários países para manter no poder reformistas e putschistas pró-soviéticos. Como não dirigiam verdadeiras revoluções populares, estas forças deverão apoiar-se cada vez mais na União Soviética e nas suas próprias forças armadas para reprimir os reaccionários, os grandes burgueses e os agentes do imperialismo que salvaguardaram o essencial do seu arsenal econômico, político e ideológico, uma vez que não houve uma revolução autêntica no país.
Como se pode compreender a emergência de uma corrente hegemonista na URSS entre 1965 e 1975?
Durante este período, forças revolucionárias no Terceiro Mundo infligiam efectivamente duros golpes à dominação imperialista. O processo de descolonização avança vigorosamente ao longo dos anos 60 e 70. O imperialismo americano sofreu derrotas militares maiores no Vietname, no Camboja e no Laos, recebeu duros golpes no Chile e na Etiópia. O velho colonialismo europeu foi desfeito pela luta armada em Angola e em Moçambique.
Tendo abandonado o ponto de vista marxista-leninista sobre a luta de classes nos países dependentes, Bréjnev pensava que podia capitalizar estas lutas para alargar a influência e a presença soviética.
O capitalismo conheceu graves problemas e crises económicas e políticas importantes. Os movimentos de massas dos trabalhadores e dos estudantes desenvolviam-se. Tendo abandonando o ponto de vista marxista-leninista sobre a natureza do imperialismo, sobre a natureza do Estado burguês e o carácter burguês dos movimentos reformistas, Bréjnev pensava que o socialismo estava na ordem do dia no mundo capitalista e que a influência política, o peso militar e a ajuda económica da URSS facilitariam essa passagem.
Na União Soviética, um grande número de mecanismos socialistas continuava a funcionar, comunistas continuavam a motivar e a mobilizar os trabalhadores para a produção. O desmantelamento das estruturas e dos valores socialistas fazia-se lentamente. A União Soviética conhecia uma estabilidade económica relativa e um desenvolvimento constante.
Explorando algumas superioridades do sistema económico socialista, Bréjnev realizou esforços gigantescos no domínio militar, dando à URSS uma paridade com a superpotência americana.
Nascida de um processo de degenerescência de um partido comunista, a nova burguesia soviética não tinha um estilo de análise materialista. Além disso tinha a arrogância de todos os arrivistas.
Bréjnev fez uma apreciação idealista de todos os fenómenos que acabamos de enumerar e, sobre esta apreciação, construiu os seus sonhos de hegemonia, os sonhos de um império «socialista» sob direcção soviética.
Na realidade, o hegemonismo soviético estava construído desde o início sobre areia. As forças reformistas, golpistas e aventureiras, nas quais ele apostava no Terceiro Mundo e nos países capitalistas, não podiam assegurar-lhe nem vitórias sólidas, nem a fidelidade dos eventuais vencedores. A situação política e ideológica degradava-se a olhos vistos no campo socialista sob controlo soviético. A erosão do apoio das massas aos objectivos do PCUS deixava também prever um futuro difícil. A União Soviética era efectivamente uma superpotência, mas também um colosso com pés de barro. Podia adoptar uma política agressiva e aventureira em certas regiões específicas. Mas a tese de que constituía «a superpotência mais perigosa» tendo um «regime social-fascista de tipo hitleriano» foi sempre uma afirmação idealista que uma observação materialista dos factores em jogo não podia de modo algum sustentar.
A vontade de desanuviamento com o mundo capitalista propugnada por Bréjnev é o desenvolvimento da linha da coexistência pacífica que Khruchov apresentou como sendo «a linha geral da política externa da União Soviética». Ela baseia-se em quatro erros: uma grave subestimação das possibilidades do imperialismo; a rejeição da luta de classes e da ditadura do proletariado como armas necessárias para a defesa do sistema socialista; a negação da revolução socialista nos países capitalistas e da revolução nacional e democrática nos países dependentes.
Bréjnev repete que o imperialismo continua a enfraquecer-se.
«Assistimos à exacerbação da rivalidade entre os países imperialistas». «A crise política e ideológica da sociedade burguesa agravou-se» (p. 38-39).
Aos olhos de Bréjnev, o fundamento essencial da coexistência pacífica é a força militar soviética.
«A passagem da guerra-fria ao desanuviamento está ligada, sobretudo, à alteração da correlação de forças na arena mundial» (p. 22).
Negando a luta de classes e a ditadura do proletariado na URSS, Bréjnev fica cego perante a confrontação militar entre os dois sistemas sociais e não percebe o alcance estratégico do segundo passo dado pelo mundo imperialista: o da infiltração e subversão política, o do incentivo das tendências revisionistas no seio dos partidos comunistas no poder.
Assim, Bréjnev considera a conclusão do tratado de 1970 entre a URSS e a RFA como uma vitória estratégica, implicando da parte do imperialismo «a renúncia a pôr em causa as fronteiras europeias existentes» (p. 24). Na Alemanha Ocidental apenas as «forças de direita permanecem sobre posições revanchistas» (p. 26). Bréjnev não vê senão o espírito de revanche aberto, primitivo, militarista e não percebe o perigo do desejo de desforra escondido, inteligente, social-democrata. O SPD alemão ocidental, aliás, nunca negou que a sua política de desanuviamento visava criar as condições para a reunificação alemã.
Da mesma maneira, Bréjnev elogia as relações económicas, científicas e técnicas, os intercâmbios culturais com o Ocidente, e conclui:
«Tudo isto, camaradas, é a materialização do desanuviamento» (p. 30).
Ele não compreende que o imperialismo utiliza sistematicamente as relações económicas, científicas, técnicas e culturais para influenciar e infiltrar os meios dirigentes dos países socialistas.
Na verdade, a degenerescência política e ideológica contínua do partido comunista determinou a situação geral da URSS. Mas como principal iniciador desta degenerescência, Bréjnev é incapaz de detectar este fenómeno e de compreender o seu alcance estratégico. Ele continua a clamar
«a unidade monolítica das fileiras do Partido, o apoio total e unânime à linha geral do partido» (p. 89).
Repete frases esvaziadas de qualquer sentido, matraqueadas de congresso para congresso.
«As teorias escolásticas não podem senão entravar o nosso avanço» (p.99). «A iniciação em massa ao marxismo-leninismo é uma particularidade importante da evolução da consciência social na etapa contemporânea.»
Mas em que consiste este marxismo-leninismo não escolástico?
«O objectivo essencial de toda nossa rede de escolas do Partido será fazer estudar à fundo as decisões do 25.° Congresso do Partido» (p. 101).
Tal como no do 24.° Congresso, os fenómenos inegáveis de emergência de classes sociais opostas na URSS são abordados numa linguagem de tal modo moralizante que não seria rejeitada por nenhum político cristão reaccionário no Ocidente. Bréjnev admoesta as
«pessoas que conhecem a nossa política e os nossos princípios mas que nem sempre os respeitam na prática».
Ele denuncia
«o divórcio entre as palavras e os actos». «Há o risco de um regresso das manifestações de mentalidadefilisteia pequeno-burguesa» (p. 106).
Em tom crítico afirma:
«A cupidez, o desejo de "possuir", a delinquência, o burocratismo e indiferença para com o homem são traços contrários à própria natureza da nossa sociedade» (p. 106).
Palavras como estas foram pronunciadas por dezenas de políticos burgueses. Às relações sociais burguesas que se restabelecem na URSS correspondem tácticas e diligências ideológicas características de todas as sociedades capitalistas.
Tecnocratas, sobre os quais o «marxismo-leninismo» ossificado já não tem qualquer influência, são seduzidos pelas concepções políticas «científicas», «neutras», «humanistas» do Ocidente. O seu peso no PCUS aumenta constantemente. Bréjnev revela que
«a proporção dos membros do Partido no grupo dos especialistas aumentou de maneira substancial. Actualmente, um especialista em cada quatro ou cinco é comunista» (p.86). «99 por cento dos secretários dos comités do Partido de território e de região (...), dos secretários dos comités de cidade, de distrito e de bairro urbano têm uma formação superior» (p. 96).
Burocratas que ocupam postos de responsabilidade tornam-se quase inamovíveis. Bréjnev declara:
«A solicitude e a atenção para com os quadros são uma regra no Partido. Acabaram-se as deslocações injustificadas e mudanças demasiado frequentes de quadros permanentes» (p.96).
O brejnevismo é a tranquilidade assegurada para a camada aburguesada. Também aqui, a política de Bréjnev é o completo oposto da de Stáline: Stáline mostrava-se excessivamente exigente para com os quadros, os que cometiam erros eram expulsos senão mesmo encarcerados ou eliminados, e homens muito jovens, formados no espírito bolchevique puro e duro, eram promovidos para altas responsabilidades. Adepto de Khruchov, Jaurès Medvédiev escreve a este respeito:
«Na época do Stáline, os dignitários do Partido sentiam-se ainda mais ameaçados pelos órgãos de segurança do que os simples cidadãos».(15)
Violentamente anti-stalinista, Medvédiev é, apesar de tudo, obrigado a constatar que foi sob Bréjnev que uma nova camada social aburguesada se separou dos trabalhadores. Eis o que escreve:
«Bréjnev não era um verdadeiro chefe em 1964, mas o representante da burocracia que procurava viver mais tranquila e seguramente, continuando a aumentar os seus privilégios. Os seus eleitores restringiam-se à elite burocrática. Neste domínio, Bréjnev também alterou o sistema, uma vez que criou, mais do que ninguém, as condições do florescimento de uma verdadeira elite privilegiada, uma real nomenclatura».(16) «Quando era obrigado a efectuar mudanças no Politburo, em princípio atribuía altos postos na nomenclatura àqueles que eram destituídos, o que lhes permitia manter o seu estilo de vida confortável. Garantia o máximo de segurança de emprego aos dignitários do Partido, enquanto que os responsáveis de obkom(17) e do Estado eram assimilados como funcionários e não como políticos eleitos, responsáveis perante a sua circunscrição».(18)
Assegurada a tranquilidade e a estabilidade à elite política e económica, os seus membros não podiam contentar-se com os seus rendimentos legais.
«A estabilidade da elite teve outro efeito negativo. A corrupção oficial não parou de se desenvolver a todos os níveis. A disciplina do Partido diminuiu, o nepotismo tornou-se um fenómeno normal e o prestígio ideológico e administrativo do Partido foi ofuscado».(19) «A grande corrupção dos burocratas soviéticos altamente colocados tornou-se uma forma de "doença profissional". A distinção entre propriedade pública e propriedade privada não era respeitada».(20)
Russakov, secretário da região de Kúibichev, estava implicado na venda irregular dos automóveis Jiguli e Lada, construídos na principal fábrica soviética Fiat, situada na sua região.(21)
A filha de Bréjnev, Galina Tchurbánova, casada com o general Iúri Tchurbánov, vice-ministro dos Assuntos Internos, participava no contrabando de diamantes e na especulação de divisas, assim como o filho de Bréjnev, Iúri (promovido em 1981 para o Comité Central!). No apartamento de Anatoli Kolevatov, um membro deste bando, a polícia confiscou 200 mil dólares e diamantes com um valor estimado de um milhão de dólares.
O general Chiólokov, um velho amigo de Bréjnev, ocupou o posto de ministro dos Assuntos Internos. Entre 1970 e 1982 houve uma série de aumentos dos produtos de luxo, tais como ouro, prata, jóias, caviar e peles. Chiólokov tinha por hábito comprar grandes quantidades destes produtos antes do aumento inesperado dos seus preços.(22)Redes exportavam clandestinamente alguns artigos caros, como ícones, peles, caviar, vodka, e importavam clandestinamente aparelhos hi-fi, jeans e vestuário ocidental. Entre 1969 e 1979, centenas de pessoas, entre as quais estavam o ministro e vice-ministro das Pescas, foram implicadas no tráfico de caviar. O caviar preto era enlatado secretamente em conservas de três quilos com o rótulo de «arenques». Vendidas na URSS e no estrangeiro [pelo valor do seu conteúdo real], os prevaricadores embolsavam a diferença do preço entre o arenque e o caviar.(23)
No final dos anos 70, Víktor Gríchine e Grigóri Románov,(24) dois dos membros mais jovens do Politburo, viviam na opulência e na corrupção. Para o casamento da sua filha, Románov requisitou o serviço de mesa de Catarina II, a Grande, que contava centenas de peças de um valor inestimável. Em estado de embriaguez, os convidados partiram uma boa parte dos copos imperiais. A corrupção dos espíritos manifestava-se também no domínio político. O papel de Bréjnev na guerra antifascista fora meramente marginal. Mas 23 anos após a guerra, em 1968, fez-se atribuir a medalha de ouro da Ordem de Lénine, que era a medalha militar mais importante. No decurso dos anos 70, atribuiu-se a si próprio, por quatro vezes (!), a medalha de ouro de Herói da Guerra. Saltando três patentes, tornou-se marechal. A seguir, atribuiu-se a Ordem da Vitória, condecoração especial atribuída excepcionalmente no final da guerra a alguns marechais famosos que tinham dirigido as maiores batalhas durante os quatro anos do conflito. Entre eles, Júkov, que organizou a defesa de Leninegrado e de Moscovo, comandou, com outros generais, a batalha de Stalingrado e dirigiu o assalto a Berlim. À sua morte, Júkov possuía 27 medalhas e condecorações; Bréjnev, no momento do seu falecimento, tinha... 270!(25)
O 26.° Congresso é o de um Bréjnev em declínio, que se lança nas mais loucas aventuras, no momento em que todas as bases da sua política hegemónica estão já a ceder.(26)
No seu relatório encontramos toda verborreia habitual dos três congressos anteriores. A situação do campo progressista continua excelente.
«O poderio, a actividade e a autoridade da URSS aumentaram» (p. 4). «A unidade monolítica do PCUS» continua assegurada sem falhas (p. 132). «É permitido supor, segundo penso, que a estrutura sem classes da sociedade formar-se-á, nos seus traços essenciais e fundamentais, no quadro histórico do socialismo que atingiu a maturidade» (p. 102).
A amizade, a cooperação e a entreajuda entre os países da comunidade socialista desenvolvem- se vigorosamente ao ponto de serem realçados nas constituições destes países (p. 9).
No Terceiro Mundo, a causa continua também a progredir.
«Os estados com orientação socialista (...) tornaram-se mais numerosos».
Bréjnev menciona Angola, Etiópia, Moçambique, o Afeganistão, a República Democrática Popular do Iémen.
«O movimento comunista continuou a alargar as suas fileiras, a reforçar a sua influência nas massas». Bréjnev menciona então a sua «força de atracção irresistível» (p.28).
A situação do imperialismo continua o mais difícil possível.
«A esfera de dominação imperialista no mundo restringiu-se. As contradições internas nos países capitalistas e suas rivalidades agravaram-se» (p. 4 -5).
O hegemonismo torna-se aventureirismo militar.
Bréjnev faz uma fuga para a frente na sua política hegemónica, apoiando-se cada vez mais exclusivamente sobre a força militar, no momento em que a base política deste hegemonismo está a desmoronar-se e em que a sua base económica mostra sinais evidentes de uma crise próxima.
O regime socialista polaco foi praticamente liquidado pela degenerescência, pela corrupção e incompetência da equipa de Gierek e sob pressão de um movimento de massas reaccionário, dirigido pelo Solidarnosc e a Igreja. Tendências comparáveis existem nos outros países de Leste. No entanto, Bréjnev sublinha como «tarefa prioritária, a integração socialista» (p. 11). E nesta integração, o aspecto militar, isto é, o controlo militar da União Soviética sobre os países socialistas de Leste, torna-se preponderante.
«A organização das forças armadas unificadas decorreu de forma bem coordenada. (...) A aliança defensiva política e militar dos países socialistas dispõe de tudo o que é necessário para defender infalivelmente as conquistas socialistas dos povos» (p. 10).
No seu tempo, Khruchov afastou a tese de que «o imperialismo é a guerra». Negou também os três factores essenciais que permitem contrariar a política de guerra do imperialismo: o desenvolvimento do movimento revolucionário nacional democrático entre as massas do Terceiro Mundo, o reforço do movimento operário e democrático na base de uma plataforma anticapitalista revolucionária nos países capitalistas e a consolidação da ditadura do proletariado e da democracia socialista nos países socialistas, bem como o crescimento sustentado das suas economias.
Prosseguindo nesta mesma orientação de direita, Bréjnev aposta quase exclusivamente no aumento das forças militares soviéticas para manter a paz.
«O equilíbrio militar e estratégico que se instaurou entre a URSS e os Estados Unidos, entre a Organização do Tratado de Varsóvia e a NATO, contribui objectivamente para a manutenção da paz no nosso planeta» (p. 41).
Rejeitando a ditadura do proletariado e a revolução, Bréjnev envereda por uma via militarista e na realidade aventureira, dado que «a paridade militar e nuclear» com o complexo militar-industrial ocidental é uma via impraticável e nefasta para um país socialista. Bréjnev ficou reduzido a debitar ameaças totalmente contraproducentes dirigidas aos povos europeus. Ele declara:
«Uma guerra nuclear “limitada” à Europa significaria desde logo a destruição certa da civilização europeia» (p. 38).
O seu aventureirismo militar exprime-se mais abertamente no Terceiro Mundo. Desde Khruchov que o PCUS não tem qualquer confiança nas massas populares da Ásia, da África e da América Latina. Mostra-se abertamente hostil a um trabalho revolucionário de longo prazo que visa criar as bases políticas para a luta armada e para a revolta popular contra a dominação imperialista. Num tal quadro político, a linguagem ultra-esquerdista sobre o internacionalismo proletário, que Bréjnev utiliza em certas ocasiões, não passa de uma cobertura para uma política de ingerência, de controlo e de hegemonia. Nos países onde o imperialismo atacar o povo, a URSS enviará os seus soldados, naqueles para onde o imperialismo exportar a contra-revolução, o exército soviético está pronto para defender a revolução. É o que Bréjnev declara publicamente, caindo num aventureirismo completamente alheado dos princípios revolucionários marxistas- leninistas. Eis as palavras de Bréjnev:
«Cada vez que é necessário ajudar as vítimas de uma agressão, o soldado soviético aparece ao mundo como um patriota desinteressado e corajoso, como internacionalista pronto para superar qualquer dificuldade» (p. 127). «Ajudamos os Estados libertados que o solicitam a reforçar a sua capacidade de defesa. Foi o caso de Angola e da Etiópia. Tentou-se nestes países esmagar as revoluções populares. Somos contra a exportação da revolução, mas também não podemos aceitar a exportação da contra-revolução» (p.22).
O facto de este aventureirismo de «esquerda» se desenvolver sobre um pensamento político fundamentalmente de direita, que nega o papel fundamental dos movimentos populares revolucionários na realização do socialismo no mundo, é patente nesta tese fundamental do brejnevismo:
«A luta para reduzir a ameaça de guerra e pôr um travão à corrida aos armamentos constitui o eixo da política externa do nosso Partido» (p.48).
Khruchov tinha começado por afirmar que a coexistência pacífica era a linha geral da política externa da URSS. Bréjnev apostou tudo na paridade militar e nuclear entre a URSS e os Estados Unidos. Como o peso de tal política é insuportável para a URSS, Bréjnev deve fazer da luta contra a corrida aos armamentos «a linha geral» da sua política externa. Mas, ao mesmo tempo, espera utilizar o tema da ameaça nuclear para mobilizar as massas dos países imperialistas para a luta contra as respectivas burguesias; a paralisia relativa desta última permitiria então conduzir com êxito as aventuras militares da URSS no Terceiro Mundo. Mas perante a fraqueza económica e política da URSS, esta política contraditória estava, a prazo, destinada ao fracasso.
«A luta contra a corrida aos armamentos como eixo da política externa» deve ser vista em contraposição com a tese correcta que o PCC formulou durante o grande debate com Khruchov.
«A nosso ver, a linha geral da política externa dos países socialistas deve ter como conteúdo o seguinte: desenvolver com base no princípio do internacionalismo proletário as relações de amizade, de entreajuda e de cooperação entre os países do campo socialista; lutar pela coexistência pacífica entre países com sistemas sociais diferentes com base nos cinco princípios e lutar contra a política de agressão e de guerra do imperialismo; apoiar a luta revolucionária de todos os povos e nações oprimidos. Estes três aspectos estão ligados indissoluvelmente uns aos outros e nenhum pode ser omitido».(27)
O relatório do 26.° Congresso comporta uma orientação completamente nova no pensamento de Bréjnev. Pela primeira vez, as numerosas afirmações a propósito dos progressos contínuos e irresistíveis do socialismo são contrabalançadas por uma consciência difusa de um desmoronamento político e económico futuro.
«Registaram-se muitas dificuldades tanto ao nível do desenvolvimento económico do país como ao nível da situação internacional» (p.5).
Na Polónia, «as bases do Estado socialista encontram-se ameaçadas».
«Não deixaremos que a Polónia socialista seja atingida, não abandonaremos na desgraça um país irmão» (p.16)!
Efectivamente, as bases do socialismo na Polónia teriam sido completamente desmanteladas sem a intervenção do exército de Jaruzelski. É claro que a Polónia se encontra praticamente no fim do seu longo processo de degenerescência iniciado sob Khruchov, e que os outros países de Leste estão a caminhar pela mesma via. Ora, no momento em que se impunha uma mudança radical de estratégia política nos países socialistas de Leste, no momento em que, portanto, os fundamentos da política soviética de dominação deveriam ter sido postos em causa, Bréjnev lança-se numa aventura hegemónica no Afeganistão. Em vez de uma mudança radical de estratégia, Bréjnev retoma, na sua «análise» do caso polaco, as generalidades que já tinha apresentado dez anos atrás a propósito desta mesma Polónia e da Checoslováquia. Para salvar o socialismo na Polónia, declara, é necessário afirmar o papel dirigente do partido, ouvir atentamente as massas, lutar contra a burocracia e o voluntarismo, desenvolver a democracia socialista e aplicar uma política realista nas relações económicas externas (p. 17). Mesmo quando o processo de degenerescência na Polónia tinha atingido praticamente o seu termo, Bréjnev continua sem ter nada de sério a dizer sobre a degenerescência revisionista de um país socialista, a sua análise é nula e os seus remédios condizentes.
Aparentemente cansado e ultrapassado, o velho homem conclui com uma fórmula que nada tem a ver com o que acabou de expor.
«Houve momentos difíceis e momentos de crise. Mas os comunistas sempre fizeram frente com coragem aos ataques dos adversários e triunfaram. Assim foi e assim será» (p. 17).
Era assim que se falava na URSS no tempo do Stáline. Mas, nessa altura, o Partido era dirigido por verdadeiros bolcheviques.
No domínio econômico, a crise futura da sociedade soviética também transparece no relatório de Bréjnev. É a primeira vez que sublinha perante o congresso a utilidade de «utilizar a experiência dos países irmãos» (p. 11). Para dizer tal coisa é porque a situação está muito mal na URSS! Como exemplo, Bréjnev cita as cooperativas e empresas agrícolas na Hungria, a racionalização da produção, a economia de energia e de matérias-primas na RDA, o sistema de segurança social na Checoslováquia, a cooperação agro-industrial na Bulgária...
Desde há dez anos que Bréjnev sublinha a necessidade de algumas alterações qualitativas nas estruturas e mecanismos da economia. Num tom fatigado, limita-se a repetir sem a mais pequena análise os fracassos do passado. Assim, sublinha a necessidade da «passagem para um desenvolvimento essencialmente intensivo» onde a palavra chave é «eficácia». Mas por que razão não se conseguiu passar de um desenvolvimento extensivo para uma fase intensiva? Eis o que descobrimos:
«Ainda não se superou totalmente a força de inércia, dos hábitos adquiridos, de um período em que se dava prioridade a um aspecto mais quantitativo» (p.69).
Como nos relatórios anteriores, Bréjnev constata que os resultados da ciência são introduzidos na produção com «intolerável lentidão».
«O sector decisivo e o mais preocupante é hoje o da introdução das descobertas científicas e das invenções». (p. 81)
Bréjnev retoma os exemplos há muito conhecidos de desorganização e de negligência. Vinte por cento da produção dos laminados de metais ferrosos vão para a sucata ou têm defeito (p. 74). Há perdas consideráveis de legumes e frutas devido às debilidades no transporte, no armazenamento e tratamento (p. 88).
O sector do grande consumo continua a ser negligenciado, apesar de dois planos quinquenais se terem centrado na «a satisfação das necessidades diárias das pessoas»(28). Bréjnev constata:
«De ano para ano, os planos de fornecimento de numerosos artigos de consumo corrente não têm sido cumpridos, nomeadamente de tecidos, confecções, calçado de couro, móveis e televisores. Os progressos são insuficientes no que diz respeito à qualidade, ao acabamento, ao sortido» (p. 91).
Tomam-se decisões, mas aparentemente não há condições para planificar o desenvolvimento econômico em conformidade. Bréjnev nota
«os atrasos da base científica e do estudo de projectos das indústrias ligeiras, alimentar e farmacêutica, da construção de máquinas agrícolas».
A seguir faz uma observação muito significativa:
«Temos o direito de contar com a ajuda dos ramos que dispõem de uma base de investigação científica particularmente forte, nomeadamente os da Defesa» (p. 83).
É a primeira vez desde 1966 que ouvimos da boca de Bréjnev algo sobre o sector militar. Em todos os relatórios, quando aborda o capítulo da economia, consegue a proeza de discutir as orientações de desenvolvimento sem nunca tratar dos 10 a 14 por cento do Produto Nacional Bruto que se concentram na produção militar! Reside aqui sem dúvida uma das razões essenciais das debilidades econômicas da URSS. Esta ideia é familiar a Bréjnev... quando analisa os problemas da outra superpotência.
«A militarização dos Estados Unidos — as despesas militares atingem 150 mil milhões de dólares por ano — enfraquece a posição económica americana: a sua parte nas exportações mundiais diminuiu em 20 por cento» (p. 36).
Gostaríamos, é claro, de saber quais são os efeitos negativos sobre a economia soviética de um esforço militar que é relativamente mais consequente.
Bréjnev confessa que a planificação, um dos fundamentos da economia socialista, está cada vez mais deficiente.
«O Partido sempre encarou o plano como uma lei. Esta verdade manifesta tem tendência a ser esquecida. A revisão dos planos no sentido da sua diminuição é cada vez mais frequente. Tal prática desorganiza a economia, corrompe os quadros, incita-os a não assumirem as suas responsabilidades» (p. 95).
No entanto, lança uma conclusão que irá inevitavelmente no sentido de um desmantelamento mais acentuado da planificação. É necessário, diz,
«um alargamento da autonomia dos grupos e das empresas, dos direitos e da responsabilidade dos dirigentes económicos» (p. 96).
Fica-se com a impressão de que Bréjnev constata que partes inteiras do edifício económico soviético se desmoronam, sem que ele esteja em condições de perceber as causas e ainda menos de as remediar.
«Há erros na planificação e na gestão, há uma falta de exigência por parte de certos organismos do Partido e dos responsáveis económicos, há transgressões à disciplina e manifestações de incúria» (p. 69).
De notar que os economistas da equipa de Gorbatchov, Aganbeguian e Bogomolov, servir-nos-ão quase as mesmas críticas e observações. Mas apresentá-las-ão como «uma denúncia sem complacência do período de estagnação» (brejneviano). E face a estas velhas críticas, apresentarão respostas novas: medidas para se passar à restauração integral do capitalismo.
Notas de rodapé:
(1) Nota prévia do Editor: Apesar da demonstração objectiva e exaustiva das teses que apresenta neste texto, o tom extremamente crítico, por vezes cáustico, de Ludo Martens em relação ao período de Bréjnev pode levar o leitor a associar esta análise com posições esquerdistas marcadamente anti-soviéticas, divulgadas no final dos anos 60 e sobretudo nos anos 70 por formações ocidentais pró-chinesas, cuja prática era objectivamente anti-revolucionária e mesmo anticomunista.
É certo que Martens responsabiliza o revisionismo soviético, iniciado por Khruchov e agravado com Bréjnev, pela «despolitização» dos jovens: «Um marxismo-leninismo esclerosado, ideologizado, não pode implantar-se no espírito dos jovens» (pág. 5), acrescentando que «muitas organizações revolucionárias, nascidas nos anos 60, sentiam-se mais próximas das ideias defendidas pela China e pela Albânia do que do revisionismo» (pág. 8).
Todavia, a política chinesa que o autor qualifica de «autenticamente revolucionária» é delimitada aos «anos 60» (pág. 2), e mesmo neste período, referindo-se à carta enviada pelo PCC ao PCUS em 1964, no âmbito do «grande debate», Ludo Martens considera que «certas conclusões» são «provavelmente precipitadas», embora coloquem «correctamente um problema fundamental que não parou de se agravar ao longo de todo o reinado de Bréjnev» (pág. 6).
Por outro lado, não obstante as duríssimas críticas que faz à direcção soviética, o autor não escamoteia a existência de «forças marxistas-leninistas» na URSS que «continuavam a sua actividade sob Bréjnev, apesar de já não determinarem as orientações do partido» (pág. 2). E, malgrado todos os desvios e deformações, reconhece que «na União Soviética, um grande número de mecanismos socialistas continuava a funcionar, comunistas continuavam a motivar e a mobilizar os trabalhadores para a produção. O desmantelamento das estruturas e dos valores socialistas fazia-se lentamente. A União Soviética conhecia uma estabilidade económica relativa e um desenvolvimento constante.
«Explorando algumas superioridades do sistema económico socialista, Bréjnev realizou esforços gigantescos no domínio militar, dando à URSS uma paridade com a superpotência americana. (pág. 18).
Por fim, discordando de muitos aspectos da política externa soviética, Ludo Martens escreve: «A União Soviética era efectivamente uma superpotência, mas também um colosso com pés de barro. Podia adoptar uma política agressiva e aventureira em certas regiões específicas. Mas a tese de que constituía “a superpotência mais perigosa” tendo um “regime social-fascista de tipo hitleriano” foi sempre uma afirmação idealista que uma observação materialista dos factores em jogo não podia de modo algum sustentar» (pág. 17). (retornar ao texto)
(2) Todas as citações: Le XXIIIe Congrès du PCUS, ed. Agência Novosti, 1966. (retornar ao texto)
(3) Muller Siegfried, major: Les nouveaux mercenaires, ed. France Empire, Paris, 1965, p. 100-101. (retornar ao texto)
(4) Débat sur la ligne générale duMCI, éd. en langues étrangères, Pequim, 1965, p.441, 443-444. (retornar ao texto)
(5) As razões da desaceleração da economia da URSS, que neste trabalho apenas são afloradas indirectamente, foram objecto de um estudo aprofundado pelos autores norte-americanos Roger Keeran e Thomas Kenny, no seu livro Socialismo Traído (ver entrevista em hist-socialismo.net). Notando que as taxas de crescimento mais rápidas foram alcançadas entre 1929 e 1953, «quando a direcção soviética defendia firmemente a planificação central e suprimiu as relações de mercado anteriormente toleradas durante a NEP de 1921-1929» (pág. 261), os dois autores constatam que a partir da época de Khruchov, o crescimento económico passou de 10 a 15 por cento ao ano para apenas cinco, quatro e três por cento.
Paralelamente, sublinham que «a actividade econômica privada (...) emergiu com uma nova vitalidade no tempo de Khruchov, floresceu com Bréjnev e em muito aspectos substituiu a economia socialista primária no tempo de Gorbatchov e de Iéltsine» (pág. 71). De tal modo que, «no final da década de 70, a população urbana (que constituía 62% da população total) ganhava cerca de 30% do seu rendimento total a partir de fontes não oficiais, ou seja, da actividade privada quer legal quer ilegal» (pág. 79)
E finalmente constatam que «nas últimas três décadas e meia de existência da URSS, quanto mais se introduziam relações de mercado e outras reformas (...) mais as taxas de crescimento econômico a longo prazo decresciam» (pág. 242). Esta relação de causalidade torna-se ainda mais evidente se tivermos em conta que a economia privada na URSS, a chamada «economia paralela», neste último período da URSS, não podia desenvolver-se senão à custa e em claro prejuízo da economia socialista e da propriedade social (citações de Roger Keeran e Thomas Kenny, O Socialismo Traído - Por Trás do Colapso da União Soviética, Edições «Avante!», 2008). (N. do Ed.) (retornar ao texto)
(6) Todas as citações: Le XXIVe Congrès du PCUS, ed. Agência Novosti, 1971 (retornar ao texto)
(7) Il Manifesto, hoje um diário político italiano, foi originalmente uma revista política mensal, publicada pela primeira vez em 24 de Junho de 1969. Foi fundada por um grupo de dissidentes do PCI, entre os quais se destacavam Aldo Natoli, Luigi Pintor e Rossana Rossanda, que serão expulsos do Partido em Novembro de 1969, após a saída do segundo número da revista que condenava a invasão da Checoslováquia, posição que o próprio Enrico Berlinguer, que se tornou secretário-geral do PCI em 1972, substituindo Luigi Longo, defendeu nesse mesmo ano na Conferência Internacional dos Partidos Comunistas e Operários realizada em Moscovo. (N. do Ed.) (retornar ao texto)
(8) Medvedev Jaurès, Andropov au pouvoir, Flammarion, 1983, p.192. (retornar ao texto)
(9) Ibidem (retornar ao texto)
(10) Ibidem, p.189. (retornar ao texto)
(11) Todas as citações: Rapport d'activité du CC, XXVe Congrès du PCUS, ed. Agência Novosti, Moscovo 1976. (retornar ao texto)
(12) Débat sur la Ligne générale du Mouvement Communiste International, ed. en langues étrangères, Pequim, 1965, p. 288; 289-290. (retornar ao texto)
(13) Ibidem, p.220. (retornar ao texto)
(14) Ibidem, p.25-26 (retornar ao texto)
(15) Medevedev Jaurès, op.cit. p.7 (retornar ao texto)
(16) Ibidem, p.226-227 (retornar ao texto)
(17) Obkom, acrónimo russo de Oblástnoi Komitet, (Comité Distrital do Partido). (N. do Ed.) (retornar ao texto)
(18) Ibidem, p. 105 (retornar ao texto)
(19) Ibidem, p. 105 (retornar ao texto)
(20) Ibidem, p. 110 (retornar ao texto)
(21) Na verdade, esta fábrica (Voljski Avtomobílnaia Zavod – VAZ redenominada em 1971 Avtovaz) construída entre 1967 e 1970 com tecnologia da Fiat, situa-se na cidade de Togliatti, na região de Samara. (N. do. Ed.) (retornar ao texto)
(22) Ibidem, p.141 (retornar ao texto)
(23) Ibidem, p.162 (retornar ao texto)
(24) Hoje sabe-se que Románov foi apontado como um candidato real ao posto de secretário-geral do PCUS após a morte de Andrópov. Todavia, em resultado da luta interna, a escolha recaiu sobre Tchernenko e, após a morte deste, a liderança foi finalmente conquistada por Gorbatchov, candidato da facção que se opunha a Románov. É de resto com esta disputa como pano de fundo que foi posto a circular, na URSS e internacionalmente, o boato de que o líder do Partido em Leninegrado teria utilizado o Palácio de Travida (nome antigo de Crimeia) — local onde o seu proprietário, o príncipe Potiómkine, nos finais do século XVIII, promovia festas com três mil convidados —, para realizar a boda de casamento da sua filha e que, não se contentando com o luxo das instalações, teria requisitado ao Museu do Ermitage o serviço de mesa da imperatriz Catarina, metade do qual não seria devolvido, uma vez que, alegadamente, após brindarem aos noivos, os convidados arremessaram contra o chão os preciosos copos de cristal.
Na verdade, e embora esta história seja aqui evocada pelo autor apenas a título de exemplo da degradação moral que atingia inegavelmente uma parte da elite dirigente soviética da época, convém sublinhar que se trata de uma rábula inverosímil, totalmente inventada com propósitos obscuros num contexto de luta pelo poder no seio da direcção do PCUS.
Depois de publicada a sensacional notícia na revista alemã Spiegel, e logo difundido na URSS pelas rádios Liberdade e Voz da América, o rumor espalhou-se imediatamente pelo país, no início dos anos 80, ressurgindo de tempos a tempos. Apesar de provocar uma natural indignação nas pessoas e de ter motivado numerosas cartas de protesto de comunistas à direcção do Partido, as autoridades, estranhamente, nunca julgaram oportuno desmentir esta falsidade, que assim perdurou na memória colectiva e entrou na literatura como uma história verídica. Todavia, em 1989, foi constituída uma comissão especial do Soviete Supremo da URSS para investigar o assunto, na sequência de uma pergunta do deputado Roy Medvédiev, que se interessou em saber por que razão a procuradoria nunca tinha averiguado estes factos imputados a Románov. A Comissão chegou então à conclusão de que, na realidade, a boda de casamento tinha-se realizado, em 1974, não num palácio, mas numa datcha (casa de campo), propriedade da organização de Leninegrado do Partido, na qual estiveram apenas 10 ou 12 convidados e não uma centena e meia como se dizia. O pai da noiva, após fazer o primeiro brinde aos recém-casados, retirou-se para o seu gabinete e não voltou a comparecer à mesa. A boda, afinal, tinha sido bastante modesta e ninguém partiu copos. No entanto, os factos apurados continuaram a ser ocultados da opinião pública, dado que o chefe de Estado, presidente do Soviete Supremo, M.S. Gorbatchov, impediu a divulgação das conclusões da comissão parlamentar. Isto porque o devastador boato, que acabou por eliminar Románov da vida política, terá partido do próprio KGB, por incumbência directa de Gorbatchov, que recorreu a este ignóbil expediente para se livrar do perigoso concorrente. (Fonte: N.A. Zenkovitch, Camie Secrétnhie Rodstvenniki, Entsiclopédia Biográfii, Moscovo, 2005, Olma-Press, pág. 327; ver também artigo no site russo http://www.vesti7.ru/news?id=1826). (N. do Ed.) (retornar ao texto)
(25) Ibidem, p.120-123 (retornar ao texto)
(26) Todas as citações: L.I. Brejnev: Rapport d'activité au XXVIe Congrès du PCUS; ed. Agência Novosti, Moscovo 1981. (retornar ao texto)
(27) Débat sur la Ligne générale du Mouvement Communiste International, ed. en langues étrangères, Pékin, 1965, p. 34. (retornar ao texto)
(28) Rapport au 25e Congrès, p.74. (retornar ao texto)
Inclusão | 18/05/2014 |