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Primeira Edição: A tese, como um todo, foi apresentada e discutida na Primeira Conferência Comunista Latino-Americana realizada em Buenos Aires em junho de 1929, e reproduzida no livro "O Movimento Revolucionário Latino-Americano". A primeira parte da tese, que trata quase exclusivamente do problema indígena peruano, foi apresentada na íntegra no Congresso Constituinte da Confederação Sindical Latino-Americana realizado em Montevidéu em maio de 1929 e reproduzida no livro "Sob a Bandeira da C.S.L.A." (Imprenta La Linotipo, Montevidéu; 1929, páginas 117 a 159) com o título "O Problema Indígena". Esta mesma primeira parte foi reproduzida na AMAUTA, Nº 25 (Julho-Agosto de 1929) com o título "O Problema Indígena" na seção "Panorama Móvel".
Tradução: Jorge Fonseca de Almeida a partir da versão disponível em https://www.marxists.org/espanol/mariateg/oc/ideologia_y_politica/paginas/tesis%20ideologicas.htm
HTML: Fernando Araújo.
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O problema das raças serve na América Latina, na especulação intelectual burguesa, entre outras coisas, para encobrir ou ignorar os verdadeiros problemas do continente. A crítica marxista tem a obrigação inadiável de o colocar nos seus verdadeiros termos, retirando-lhe todas as deformações casuístas ou pedantes.
As raças indígenas encontram-se na América Latina num estado clamoroso de atraso e ignorância, devido à servidão que sobre elas pesa desde a conquista espanhola. O interesse da classe exploradora – espanhola primeiro e crioula depois – tem tendido invariavelmente, sob diversos disfarces, a explicar a condição das raças indígenas com o argumento da sua inferioridade ou primitivismo. Com isso, esta classe não faz outra coisa senão reproduzir, nesta questão interna nacional, os argumentos da raça branca sobre a questão do tratamento e tutela dos povos coloniais.
O sociólogo Vilfredo Pareto que reduz a raça a apenas um dos fatores que determinam o desenvolvimento da sociedade, analisou a hipocrisia da ideia da raça na política imperialista e esclavagista dos povos brancos nos seguintes termos: “A teoria de Aristóteles sobre a escravatura natural é a mesma dos povos civilizados modernos para justificar as suas conquistas e o seu domínio sobre os povos a que chamam de raça inferior. E como Aristóteles dizia que há homens naturalmente escravos e outros donos, que é conveniente que os primeiros sirvam e os segundos mandem, o que é por demais justo e proveitoso para todos; igualmente os povos modernos, que se atribuem a si próprios o epiteto de civilizados, dizem existir povos que devem naturalmente dominar e que estes são eles próprios e outros povos que não menos naturalmente devem obedecer e que são aqueles a quem querem explorar, sendo justo, conveniente, e proveitoso para todos que os primeiros mandem e os segundos sirvam. Daqui resulta que um inglês, um francês, um belga, um italiano, se luta e morre pela sua terra é um herói, mas se um africano ousar defender a sua pátria contra essas nações é um vil rebelde e um traidor. E os europeus cumprem um sacrossanto dever de destruir os africanos, como no Congo, para os ensinar a ser civilizados. Não falta logo quem beatamente admire esta obra “de paz, de progresso, de civilização”. É preciso acrescentar que, com uma hipocrisia verdadeiramente admirável, os bons povos civilizados, pretendem fazer o bem aos povos a eles submetidos, quando os oprimem e os destroem mesmo; e tanto amor lhes têm que os querem “libertar” pela força. Assim os ingleses libertaram os indianos da “tirania” dos rajás, os alemães libertaram os africanos da “tirania” dos reis Negros, os franceses libertaram os habitantes de Madagáscar e, para os tornar mais livres, mataram muitos reduzindo os outros a um estado que apenas em nome não é o de escravidão, assim os italianos libertaram os árabes da opressão dos turcos. Tudo isto é dito de forma séria e há até quem acredite. O gato apanha o rato e come-o, mas não diz que o faz para o bem do rato, não proclama o dogma da igualdade de todos os animais e não levanta hipocritamente os olhos ao céu para adorar o “Pai comum” (Tratado de Sociologia Geral, Volume III).
A exploração dos indígenas na América Latina também é justificada com o pretexto que serve a redenção cultural e moral das raças oprimidas.
A colonização da américa Latina pela raça branca não teve, entretanto, como é fácil de provar, senão efeitos deprimentes e de atraso na vida das raças indígenas. A evolução natural destas foi interrompida pela opressão depreciadora do branco e do mestiço. Povos como o asteca e o quéchua, que tinham chegado a um grau avançado de organização social, regrediram sob o regime colonial para a condição de tribos agrícolas dispersas. O que subsiste de elementos de civilização nas comunidades indígenas do Peru é, sobretudo, o que sobrevive da antiga organização autóctone. Na agricultura feudal, a civilização branca não criou focos de vida urbana, não significou sequer industrialização ou introdução de máquinas: no latifúndio serrano, com exceção de algumas herdades de criação de gado, o domínio branco não representa, nem sequer tecnologicamente, nenhum progresso relativamente à cultura aborígene.
Chamamos problema indígena à exploração feudal dos nativos na grande propriedade agrária. O índio, em 90% dos casos, não é um proletário mas sim um servo. Na América Latina o capitalismo, como sistema económico e político, manifesta-se incapaz, de edificar uma economia emancipada das taras feudais. O preconceito da inferioridade da raça indígena consente-lhe uma exploração máxima do trabalho desta raça; e não está disposto a renunciar a esta vantagem, tantos são os proveitos que dela obtém. Na agricultura, o estabelecimento do salariato, a adoção da máquina, não eliminam o carácter feudal da grande propriedade. Apenas aperfeiçoaram o sistema de exploração das terras e das massas camponesas. Boa parte dos nossos burgueses e “gamonais”(2) defende calorosamente a tese da inferioridade do índio: o problema indígena é, a seu ver, um problema étnico cuja solução depende do cruzamento da raça indígena com as raças superiores estrangeiras. A sobrevivência de uma economia de bases feudais apresenta-se, contudo, em irreconciliável oposição com um movimento migratório suficiente para produzir essa transformação por cruzamento. Os salários que se pagam nas herdades da costa e da serra (quando nestas últimas se adota o salário) descartam a possibilidade de empregar imigrantes europeus na agricultura. Os imigrantes camponeses nunca concordariam em trabalhar nas condições dos índios; apenas os poderiam atrair fazendo-os pequenos proprietários. O índio nunca pôde ser substituído nas fainas agrícolas das herdades da costa senão pelo escravo negro ou pelo “coolie”(3) chinês. Os planos de colonização com imigrantes europeus têm, por agora, como campo exclusivo, a região florestal do Oriente, conhecida com o nome de Montaña. A tese de que o problema índio é um problema étnico não merece sequer ser discutida; mas convém notar até que ponto a solução que se propõe está em desacordo com os interesses e as possibilidades da burguesia e do gamonalismo em cujo seio encontra os seus aderentes.
Para o imperialismo yankee ou para o imperialismo inglês o valor económico destas terras seria muito menor se para além das suas riquezas naturais não possuíssem uma população indígena atrasada e miserável a que é possível explorar de forma extrema com o apoio da das burguesias nacionais. A história da indústria açucareira peruana, atualmente em crise, demonstra que os seus lucros, repousavam, acima de tudo, no baixo custo da mão-de-obra e este na miséria dos trabalhadores braçais. Tecnicamente esta indústria nunca esteve em condições de concorrer com a de outros países no mercado mundial. A distância aos mercados mundiais agravava com elevados fretes a sua exportação. Mas todas essas desvantagens eram largamente compensadas pelo baixo custo da mão-de-obra. O trabalho das massas camponesas escravizadas, alojadas em repugnantes “rancherias”, privadas de toda a liberdade e de todos os direitos, submetidas a uma jornada de trabalho esmagadora, colocava a indústria açucareira peruana em condições de competir com os que, noutros países, cultivavam melhor as suas terras, ou estavam protegidos por tarifas protecionistas ou melhor situados do ponto de vista geográfico. O capitalismo estrangeiro serve-se da classe feudal para explorar em seu proveito as massas camponesas. Mas, por vezes, a incapacidade destes latifundiários (herdeiros da preconceitos, soberba e arbitrariedade medieval) para se tornarem capitalistas industriais é tal que o capitalismo estrangeiro se vê obrigado a tomar nas suas próprias mãos a gestão dos latifúndios e centrais. Isto é o que ocorre, especialmente, na indústria açucareira do vale de Chicana quase completamente monopolizada por uma empresa inglesa e uma empresa alemã.
A raça tem acima de tudo esta importância na questão do imperialismo. Mas também tem um outro papel, que impede de fazer uma analogia entre o problema da luta pela independência nacional nos países da América Latina que têm uma grande percentagem de população indígena com o mesmo problema em África e na Ásia. Os elementos feudais ou burgueses, nos nossos países, sentem pelos índios, tal como pelos negros e mulatos, o mesmo desprezo imperialista dos brancos. O sentimento racial atua nesta classe dominante num sentido absolutamente favorável à penetração imperialista. Entre o senhor ou o burguês crioulo e os seus peões de cor não há nada de comum. A solidariedade de classe, soma-se a solidariedade de raça, ou de preconceito, fazendo das burguesias nacionais instrumentos dóceis dos imperialismos yankee e britânico. E este sentimento estende-se em grande medida às classes médias, que imitam a aristocracia e a burguesia no desdém pela plebe de cor, embora a sua própria mestiçagem seja bem evidente.
A raça negra, importada para a América Latina pelos colonizadores para aumentar o seu poder sobre a raça indígena americana, preencheu passivamente a sua função colonialista. Ela própria duramente explorada, reforçou a opressão da raça indígena pelos conquistadores espanhóis. Um maior grau de mistura, de familiaridade e de convivência com os conquistadores espanhóis nas cidades coloniais, converteu-a em auxiliar do domínio branco, mesmo apesar de qualquer explosão de humor turbulento ou levantino. O negro ou o mulato, nos serviços domésticos ou de artesanato, pertenceu à plebe de que a casta feudal dispôs sempre mais ou menos incondicionalmente. A indústria, a fábrica, o sindicato redimem o negro desta domesticidade. Apagando entre os proletários a fronteira da raça, a consciência de classe eleva moral e historicamente o negro. O sindicato significa a rutura definitiva com os hábitos servis que mantinha na condição de artesão ou criado.
O índio pelas suas faculdades de assimilação ao progresso, à técnica de produção moderna, não é absolutamente inferior ao mestiço. Pelo contrário é, geralmente, superior. A ideia da sua inferioridade racial está demasiado desacreditada para que mereça, neste tempo, as honras de uma refutação. O preconceito do branco, que também tem sido o do crioulo, relativamente à inferioridade do índio não repousa em nenhum facto digno de ser tomado em conta no estudo científico da questão. O alcoolismo e o vício da coca da raça indígena, muito exagerados pelos seus comentadores, não são outra coisa do que consequências, resultados da opressão branca. O gamonalismo fomenta e explora esses vícios, que sob certos aspetos, se alimenta dos impulsos de luta e de dor particularmente vivos e operantes num povo subjugado. Na antiguidade, o índio não bebia senão “chicha”,(4) bebida fermentada de arroz, enquanto que desde que o branco implantou no continente o cultivo de cana bebe álcool. A produção de cana é um dos mais “sãos” e seguros negócios do latifúndio, em cujas mãos se encontra também a produção de coca nos vales quentes da Montaña.
Há muito que a experiência japonesa demonstrou a facilidade que os povos de raça e tradições distintas da europeia se apropriam da ciência ocidental e se adaptam ao uso da sua técnica de produção. Nas minas e nas fábricas da Sierra del Peru, o índio camponês confirma esta experiência.
E já a sociologia marxista fez justiça sumária às ideias racistas, produto todas elas do espirito imperialista. Bukharin escreve em “A Teoria do Materialismo Histórico”: “A teoria das raças é, antes de tudo, contrária aos factos. Considera-se a raça negra uma raça “inferior”, incapaz de se desenvolver por si própria. No entanto está provado que os antigos representantes da raça negra, os habitantes de Cuxe, criaram uma civilização muito desenvolvida nas Índias (antes dos hindus) e no Egito. A raça amarela que, também, não goza de grande favor, criou através dos chineses uma cultura que era muito mais avançada do que as dos seus contemporâneos brancos, os brancos não eram senão umas crianças em comparação com os chineses. Sabemos, hoje, muito bem tudo o que os gregos antigos beberam dos assírio-babilónicos e dos egípcios. Estes factos chegam para provar que as explicações assentes no argumento das raças não serve para nada. Embora nos possa dizer: Podes ter razão mas podeis afirmar que um negro médio iguala em qualidades um branco médio? Não se pode responder a essa questão com uma tirada como a de certos professores liberais: todos os homens são iguais; segundo Kant a personalidade humana constitui um fim em si mesma; Jesus Cristo ensinava que não havia helénicos nem judeus, etc. (ver, por exemplo, Khvestov “é muito provável que a verdade esteja do lado dos defensores da igualdade dos homens …” “A Teoria do Processo Histórico”). Pois, tender para a igualdade dos homens não quer dizer reconhecer a igualdade das suas qualidades, e, por outro lado, tende-se sempre para o que ainda existe porque outra coisa seria forçar uma porta aberta. Por agora, não tentamos perceber para que lado tender. O que nos interessa saber é se genericamente existe uma diferença entre o nível de cultura dos brancos e dos negros. De facto, essa diferença existe. Atualmente os “brancos” são superiores aos outros. Mas o que é que isso prova? Prova que atualmente as raças trocaram de lugar. E isto contradiz a teoria das raças. De facto, esta teoria reduz tudo às qualidades das raças, à sua “natureza eterna”. Se assim fosse essa “natureza” ter-se-ia feito sentir em todos os períodos da História. Que se pode deduzir disto? Que a própria “natureza” muda constantemente com as condições de existência de uma dada raça. Estas condições são determinadas pelas relações da sociedade com a natureza, isto é pelo estado de desenvolvimento das forças produtivas. Por isso, a teoria das raças não explica absolutamente as condições de evolução social. Surge aqui claramente que há que começar a análise pelo estudo do movimento das forças produtivas” (A Teoria do Materialismo Histórico, p. 129 a 130).
Do preconceito da inferioridade da raça indígena começa a passar-se ao extremo oposto: ao da criação de uma nova cultura americana: que será essencialmente obra das forças raciais autóctones. Subscrever esta tese é cair no mais ingénuo e absurdo misticismo. Ao racismo dos que o depreciam o índio, porque acreditam na superioridade absoluta e permanente da raça branca, seria insensato e perigoso opor-lhe o racismo dos que sobrestimam o índio com uma fé messiânica na sua missão como raça no renascimento americano.
As possibilidades de o índio se elevar material e intelectualmente dependem da mudança das condições socioeconómicas. Estas possibilidades não são determinadas pela raça mas sim pela economia e pela política. A raça, por si só, não despertou nem despertaria para a compreensão de uma ideia libertadora. Sobretudo nunca teria o poder de a impor e de a realizar. O que assegura a sua emancipação é o dinamismo de uma economia e de uma cultura que trazem nas suas entranhas o gérmen do socialismo. Na guerra da conquista a raça índia não foi vencida por uma raça étnica ou qualitativamente superior, mas por uma técnica que estava mais desenvolvida do que a técnica dos aborígenes. A pólvora, o ferro, a cavalaria, não eram vantagens raciais; eram vantagens técnicas. Os espanhóis chegaram a estas regiões longínquas porque dispunham de meios de navegação que lhes permitiam atravessar os oceanos. A navegação e o comércio permitiram-lhes mais tarde a exploração de alguns recursos naturais das suas colonias. O feudalismo espanhol sobrepôs-se ao regime agrário indígena, respeitando parcialmente algumas das suas formas comunitárias; mas essa mesma adaptação criava uma ordem estática, um sistema económico cujos fatores de estagnação eram a melhor garantia da servidão indígena. A indústria capitalista rompe este equilíbrio, interrompe esta estagnação, criando novas forças produtivas e novas relações de produção. O proletariado cresce paulatinamente substituindo o artesanato e a servidão. A evolução económica e social da nação entra numa era de atividade e de contradições que, no plano ideológico, provoca o aparecimento e desenvolvimento do pensamento socialista.
Em tudo isto, a influência do fator raça mostra-se evidentemente insignificante quando comparado com o fator economia – produção, técnica, ciência, etc.. Sem os elementos materiais que criam a indústria moderna, ou sem o capitalismo, haveria possibilidade de esboçar um plano, ou mesmo uma intenção de um estado socialista baseado nas reivindicações e na emancipação das massas indígenas? É o dinamismo desta economia, deste regime, que torna instáveis todas as relações, e que com as classes opõe as ideologias, que torna possível a ressurreição indígena, facto decidido pelo jogo de forças económicas, políticas, culturais e ideológicas e não por forças raciais. A maior acusação que podemos formular contra a classe dominante da república é não ter sabido acelerar, com uma inteligência mais liberal, mais burguesa, mais capitalista, a sua missão de transformação da economia colonial em economia capitalista. O feudalismo com a sua estagnação e a sua inércia opõe-se à emancipação, ao despertar indígena: o capitalismo, com os seus conflitos, com os seus instrumentos de exploração, empurra as massas pela via das suas reivindicações, convoca-as para uma luta em que se capacitam material e mentalmente para presidir a uma nova ordem.
O problema das raças não é comum a todos os países da América Latina, nem apresenta em todos os que dele sofrem as mesmas proporções e características. Em alguns países latino-americanos este problema tem uma localização geográfica específica e não influi de forma apreciável no processo social e económico. Mas em países como o Peru, a Bolívia e, em menor dimensão o Equador, onde a maioria da população é indígena, a reivindicação do índio é a reivindicação popular e social dominante.
Nestes países o fator raça mistura-se com o fator classe de forma que uma política revolucionária não pode deixar de o ter em conta. O índio quéchua ou aimará vê o seu opressor no “misti”, no branco. E no mestiço, apenas a consciência de classe, é capaz de destruir o hábito do desprezo e da repugnância pelo índio. Não é raro encontrar entre os próprios elementos citadinos que se proclamam revolucionários o preconceito da inferioridade do índio e a resistência em reconhecer este preconceito como uma simples herança ou contágio mental do ambiente.
A barreira da língua interpõe-se entre as massas camponesas índias e os núcleos operários revolucionários de raça branca ou mestiça.
Mas, através de propagandistas índios, a doutrina socialista, pela natureza das suas reivindicações, arreigar-se-á rapidamente nas massas indígenas. O que tem faltado até agora é a preparação destes propagandistas. O índio alfabeto, que a cidade corrompe, converte-se regularmente num auxiliar dos exploradores da sua raça. Mas na cidade, no ambiente operário revolucionário, o índio começa a assimilar a ideia revolucionária, a apropriar-se dela, a entender o seu valor como instrumento de emancipação dessa raça oprimida pela mesma classe que explora na fábrica o operário, em quem descobre um irmão de classe.
Nestes países, o realismo de uma política socialista segura e exata na apreciação e utilização dos factos sobre os quais lhe compete atuar pode e deve converter o fator raça em fator revolucionário. O Estado atual nestes países repousa na aliança da classe feudal terratenente com a burguesia mercantil. Abatida a feudalidade latifundiária, o capitalismo urbano não terá forças para resistir à crescente força operária. Representa uma burguesia medíocre, débil, formada no privilégio, sem espírito combativo e organizado que perde a cada dia o seu ascendente sobre a flutuante camada intelectual.
A crítica socialista começou no Peru um novo posicionamento sobre o problema indígena com a denúncia e o repúdio inexoráveis de todas as tendências burguesas ou filantrópicas que o consideram um problema administrativo, jurídico, moral, religioso ou educativo (“7 ensaios de interpretação da realidade peruana; O problema indígena; por J.C. Mariátegui). No Peru e, por analogia, em outros países da América Latina que também possuem uma numerosa população indígena, as conclusões sobre os termos económicos e políticos em que esta questão se coloca, e a luta proletária pela sua resolução são, na minha opinião, as seguintes:
Não existem censos recentes que permitam saber exatamente a percentagem da população indígena. Aceita-se genericamente a afirmação de que a raça indígena constitui quatro quintos de uma população total calculada em pelo menos 5.000.000. Esta apreciação não tem em conta estritamente a raça mas também a condição socioeconómica das massas que constituem os ditos quatro quintos. Existem províncias onde os índios apresentam uma extensa mestiçagem. Mas nessas zonas o sangue branco foi completamente assimilado pelo meio índio e a vida dos “cholos” produzidos por esta mestiçagem não difere da vida dos índios propriamente ditos.
Pelo menos 90% da população indígena, assim definida, trabalha na agricultura. Nos últimos tempos, o desenvolvimento da indústria mineira trouxe como consequência um crescente emprego da mão-de-obra indígena nas minas. Mas uma parte dos operários mineiros continuam a ser agricultores. São índios das “comunidades” que passam a maior parte do ano nas minas, mas que nas épocas dos trabalhos agrícolas retomam às suas parcelas, que são insuficientes para a sua sobrevivência.
Na agricultura subsiste até hoje o regime de trabalho feudal ou semifeudal. Nas plantações da serra o salariato, quando existe, apresenta-se tão incipiente e deformado que apenas altera as caraterísticas do regime feudal. Normalmente os índios não obtêm pelo seu trabalho senão uma mesquinha parte dos frutos (ver em “7 Ensaios sobre a Realidade Peruana” no capítulo sobre o Problema da Terra os diferentes sistemas de trabalho usados na serra). Em quase todas as terras de latifúndio o solo é trabalhado de forma primitiva; e, apesar de os latifundiários reservarem para si os melhores terrenos, a sua produtividade é, em muitos casos, inferior ao das terras “comunitárias”. Em algumas regiões as “comunidades” indígenas conservam uma parte das terras; mas trata-se de uma área exígua e insuficiente para as suas necessidades, de modo que os seus membros são obrigados a trabalhar para os latifundiários. Os proprietários dos latifúndios, donos de enormes extensões de terras, em grande parte incultas, não tiveram interesse em despojar as “comunidades” das suas propriedades tradicionais porque a “comunidade” anexa à plantação lhe permite assegurar mão-de-obra segura e “própria”. O valor de um latifúndio não se calcula só pela sua extensão territorial mas pelo também pela sua população indígena própria. Quando uma plantação não tem esta população, o proprietário, em sintonia com as autoridades, decreta um recrutamento forçado de peões a quem remunera miseravelmente. Os índios de ambos os sexos, incluindo as crianças, são obrigados à prestação de serviços gratuitos aos proprietários e às famílias destes. O mesmo se passando relativamente às autoridades. Homens, mulheres e crianças revezam-se ao serviço dos “gamonais” e das autoridades, não só nas casa-fazendas mas também nas aldeias e cidades onde estes vivem. A prestação de serviços gratuitos foi várias vezes proibida legalmente; mas, na prática, subsiste até hoje, porque nenhuma lei pode contrariar o mecanismo da ordem feudal da serra enquanto esta estrutura se mantiver intacta. Recentemente, a lei do recrutamento rodoviário veio acentuar a fisionomia feudal da serra. Esta lei obriga todos os indivíduos a trabalhar seis dias por semestre na abertura ou na conservação de caminhos ou a obter “remissão” dessa obrigação mediante um pagamento fixado consoante a região. Em muitos casos, os Índios são obrigados a trabalhar a grandes distâncias das suas residências; o que os obriga a sacrificar um maior número de dias. Com o pretexto do serviço rodoviário, que tem para os indígenas o caracter das antigas mitas(5) coloniais, os Índios são vítimas de inúmeros roubos por parte das autoridades.
Na indústria mineira reina o regime assalariado. Nas minas de Junin e de La Liberdade, onde têm as suas instalações as duas grandes empresas que exploram o cobre, a “Cerro de Pasco Copper Corporation”(6) e a “Northern” respetivamente, os trabalhadores ganham salários de S./. 2.50 a S/.3.00. Estes salários são sem dúvida elevados face aos inacreditavelmente baixos (vinte ou trinta centavos) a que estavam acostumados nas plantações da serra. Mas as empresas aproveitam-se de todas as formas da condição atrasada dos indígenas. A legislação social vigente nas minas é quase nula, não se observam as leis relativas a acidentes de trabalho ou sobre a jornada de oito horas de trabalho, nem se reconhece aos operários o direito de associação. Todo o operário acusado de tentativa de organização dos trabalhadores, mesmo que seja apenas com fins culturais ou mutualistas, é imediatamente despedido pelas empresas. Para os trabalhos nas galerias as empresas empregam geralmente “empreiteiros” os quais, com o objetivo de efetuar as empreitadas ao menor custo, atuam como um instrumento de exploração dos trabalhadores braçais. Contudo, os próprios “empreiteiros” vivem em condições apertadas, sobrecarregados com as obrigações decorrentes dos adiantamentos que recebem e que os tornam permanentemente devedores das empresas. Quando acontece um acidente de trabalho, as empresas, por intermedio dos seus advogados, burlam os direitos dos indígenas abusando da miséria e da ignorância destes. A catástrofe de Morococha,(7) que custou a vida a várias dezenas de operários, veio recentemente mostar a insegurança em que trabalham os mineiros. Por causa do mau estado de algumas galerias e pela execução de trabalhos que quase tocavam no fundo de uma lagoa produziu-se um afundamento que deixou sepultados muitos trabalhadores. O número oficial de vítimas é de 27, mas há fundada notícia de que o número é muito maior. As denúncias de alguns periódicos, influenciaram no sentido de que a Companhia se mostrasse desta vez mais respeitadora das leis laborais no que toca as indemnizações aos herdeiros das vítimas. Ultimamente, com o objetivo de evitar ainda mais descontentamento a Cerro de Pasco Copper Corporation concedeu aos seus empregados e operários um aumento de 10% enquanto durar a atual cotação do cobre. Nas províncias mais longínquas como Cotabambas(8) a situação dos mineiros é muito mais penosa e atrasada. Os “gamonais” da região encarregam-se do recrutamento forçado dos índios e os salários são miseráveis.
A indústria penetrou muito escassamente na serra. Está representada principalmente pelas fábricas de tecidos de Cuzco, onde a produção de lã de excelente qualidade é o maior fator de desenvolvimento. O pessoal destas fábricas é índio, com exceção da direção e dos chefes. O índio adaptou-se perfeitamente à maquinaria. É um operário atento e sóbrio que o capitalista explora habilmente. O ambiente feudal da agricultura estende-se a estas fábricas, em que um certo paternalismo, que usa os protegidos e os afilhados do amo como instrumentos de sujeição dos seus companheiros, se opõe à formação de uma consciência de classe.
Nos últimos anos, por estímulo do preço das lãs peruanas no mercado internacional, iniciou-se um processo de industrialização das plantações agropecuárias do Sul. Vários fazendeiros introduziram técnicas modernas, importando reprodutores estrangeiros que melhoraram o volume e a qualidade da produção, libertando-se do jugo dos comerciantes intermediários e criando nas suas terras moinhos e outras instalações industriais. Para além destes casos na serra não existem outras fábricas ou cultivos industrializados a não ser os do açúcar, da “chancaca”(9) e da aguardente para consumo regional.
Para a exploração das plantações da costa, em que a população é insuficiente, recorre-se em larga escala a mão-de-obra indígena serrana. As grandes plantações açucareiras obtêm os braços necessários para o trabalho agrícola através dos “recrutadores”. Os trabalhadores braçais ganham à jorna, que muito embora sejam sempre ínfimas são superiores às que se costumam receber na serra feudal. Em contrapartida, sofrem as consequências de um trabalho extenuante num clima cálido, de uma alimentação insuficiente relativamente a este trabalho e do paludismo endémico nos vales da Costa. O peão serrano dificilmente escapa ao paludismo, o que o obriga a regressar à sua terra muitas vezes tuberculoso e incurável. Ainda que, nestas terras, a agricultura esteja industrializada (trabalha-se a terra com métodos e máquinas modernas e tratam-se os produtos em engenhos ou em centrais bem equipadas),o seu ambiente não é o do capitalismo nem o do regime assalariado da indústria urbana. As plantações conservam o espirito e as práticas feudais no tratamento dos seus trabalhadores. Não lhes reconhecem os direitos que a legislação laboral estabelece. Na plantação não há outra lei que não a do proprietário ou a do administrador. Durante o período colonial estas plantações foram trabalhadas por escravos Negros. Abolida a escravidão vieram os coolíes chineses. E o plantador clássico não perdeu os seus hábitos de negreiro nem de senhor feudal.
Na Montaña ou na floresta a agricultura é ainda muito incipiente. Usa-se o mesmo sistema de “recrutadores” de trabalhadores da serra e, em certa medida, usam-se os serviços das tribos selvagens familiarizadas com os brancos. Mas a Montaña tem, no que se refere ao regime de trabalho, uma tradição muito mais sombria. Na exploração da borracha, quando este produto tinha um preço alto, aplicaram-se os mais bárbaros e criminosos procedimentos esclavagistas. Os crimes de Putumayo,(10) sensacionalmente denunciados pela imprensa estrangeira, constituem a página mais negra da história dos “borracheiros”. Alega-se que muito se exagerou e fantasiou no estrangeiro em torno destes crimes mas, e apesar de ter havido na origem do escândalo uma tentativa de chantagem, a verdade está perfeitamente documentada por investigações e testemunhos de funcionários da justiça peruana, como o Juíz Valcárcel e o procurador Paredes que comprovaram os métodos esclavagistas e sanguinários dos capatazes da casa Araos. E, não faz ainda três anos, um funcionário exemplar, o doutor Chuquihuanca Ayulo, grande defensor da raça indígena – ele mesmo indígena – foi exonerado das suas funções de procurador do departamento da Madre de Dios em consequência da sua denúncia dos métodos esclavagistas da empresa mais poderosa dessa região.
Esta descrição resumida das condições socioeconómicas da população indígena do Peru, estabelece que ao lado de um reduzido número de assalariados mineiros e de um salariato agrícola ainda incipiente existe um regime de servidão e que nas longínquas regiões da Montaña se submete, frequentemente, os indígenas a um sistema esclavagista.
Quando se fala da atitude do índio face aos seus exploradores subscreve-se geralmente a impressão que envilecido, deprimido, o índio é incapaz de qualquer luta ou de qualquer resistência. A longa história das insurreições e motins indígenas e das subsequentes repressões e massacres basta por si só para desmentir essa impressão. A maioria dos casos de sublevação dos índios teve origem em casos de violência que os forçou à revolta contra as autoridades ou fazendeiros; mas outros casos não tiveram esse caracter de motim localizado. As rebeliões seguiram-se a agitação menos casuística e propagaram-se a uma região mais ou menos extensa. Para as reprimir as autoridades tiveram de apelar a forças consideráveis e promover verdadeiras matanças. Milhares de índios rebeldes semearam o pavor entre os “gamonais” de várias províncias. Uma das sublevações, que nos últimos tempos assumiu proporções extraordinárias, foi chefiada pelo major do exército Teodomiro Gutiérrez,(11) serrano mestiço, de forte percentagem de sangue índio, que se fazia chamar Rumi Maqui(12) e que se apresentava como redentor da sua raça. O major Gutiérrez tinha sido enviado pelo Governo Billinghurst(13) para o departamento de Puno, onde o gamonalismo estremava a sua rapina, para fazer uma investigação sobre as denúncias dos indígenas e informar o governo. Gutiérrez entrou então em contacto próximo com os índios. Depois do governo Billinghurst ter sido derrubado, Gutiérrez concluiu que todas as possibilidades de obter alterações por meios legais tinham desaparecido e lançou-se na revolta. Seguiram-no vários milhares de índios mas, como sempre, desarmados e indefesos perante as tropas ficaram condenados à dispersão e à morte. A esta sublevação seguiram-se as de La Mar e de Huancané(14) em 1923 e outras de menor dimensão, todas reprimidas de forma sangrenta.
Em 1921, sob os auspícios governamentais, reuniu-se um congresso indígena em que participaram delegações de vários grupos e comunidades. O objetivo desse congresso era formular as reivindicações da raça indígena. Os delegados pronunciaram, em quéchua, enérgicas acusações contra os “gamonais”, as autoridades e os padres. Constitui-se o Comité Pró-direito Indígena Tahuantinsuyo. Realizaram-se depois congressos anuais até 1924, ano em que o governo perseguiu os revolucionários indígenas, intimidou as delegações e desvirtuou o espírito e o objetivo destas assembleias. O congresso de 1923 em que se votaram conclusões inquietantes para o gamonalismo como as que pediam a separação da Igreja do Estado e a abolição da lei do recrutamento rodoviário, tinha revelado o perigo destas conferências, em que dois grupos de comunidades indígenas de diversas regiões entravam em contacto e coordenavam a sua ação. Nesse mesmo ano constitui-se a Federação Regional Indígena Operária. Federação que pretendia aplicar à organização dos índios os princípios e métodos do anarco-sindicalismo e que estava, por isso, destinada a não passar de um ensaio; mas que representava apesar disso uma orientação revolucionária da vanguarda indígena. Desterrados dois dos líderes índios deste movimento, intimidados outros, a Federação Regional Indígena Operária ficou reduzida apenas ao nome. E em 1927 o governo dissolveu o próprio Comité Pró-direito Indígena Tahuantinsuyo, com o pretexto de que os seus dirigentes eram uns meros exploradores da raça cuja defesa se autoatribuíam. Este Comité que nunca tinha tido mais importância do que a que lhe advinha da participação nos congressos indígenas era composto por elementos que careciam de valor ideológico ou pessoal, e que não poucas vezes tinham feito juras de adesão à política governamental, considerando-a pró-indigenista. Contudo, para alguns “gamonais” eram apenas um instrumento de agitação, um resíduo dos congressos indígenas. O governo, por outro lado, orientava a sua política no sentido de associar as declarações pró-indigenistas e as promessas de repartição de terras, etc., a uma ação resoluta contra toda a agitação dos índios, levada a cabo por grupos revolucionários ou suscetíveis de influência revolucionária.
A penetração de ideias socialistas, a expressão de reivindicações revolucionárias, entre os indígenas continuou apesar dessas vicissitudes. Em 1927 constituiu-se em Cuzco um grupo de ação pró-indígena chamado “Grupo Ressurgimento”. Era composto por alguns intelectuais e artistas em conjunto com alguns operários cusquenhos. Este grupo publicou um manifesto que denunciava os crimes do gamonalismo (Veja-se Amauta(15) Nº 6). Pouco depois da constituição do grupo um dos seus principais dirigentes o doutor Luis E. Valcárce(16) foi preso em Arequipa. A sua prisão não durou mais que uns dias mas, entretanto, o Grupo Ressurgimento foi dissolvido pelas autoridades de Cuzco.
O problema indígena identifica-se com o problema da terra. A ignorância, o atraso e a miséria dos indígenas não são, repetimos, senão consequência da sua servidão. O latifúndio feudal mantém a exploração e dominação absoluta das classes proprietárias sobre as massas indígenas. A luta dos indígenas contra os gamonais tem-se estribado invariavelmente na defesa das suas terras contra a absorção e a expropriação. Existe, por isso, uma profunda e instintiva reivindicação indígena: a reivindicação da terra. Dar um carácter organizado, sistemático, definido a esta reivindicação é a tarefa que temos o dever de realizar.
As “comunidades” que demonstraram, sob as mais duras condições de opressão, uma resistência e persistência realmente assombrosa, representam no Peru um fator natural a favor da socialização da terra. O índio tem hábitos de cooperação arraigados: mesmo quando da propriedade comunitária se passa à apropriação individual, não só na Serra mas também na Costa onde uma maior mestiçagem atua contra os costumes indígenas, a cooperação mantém-se; os trabalhos pesados fazem-se em comum. A “comunidade” pode transformar-se em cooperativa com um esforço mínimo. Na Serra, a adjudicação das terras dos latifúndios às “comunidades” é a solução por que reclama o problema agrário. Na Costa, onde a grande propriedade é também omnipotente, mas onde a propriedade comunitária desapareceu, tende-se inevitavelmente para a individualização da propriedade do solo. Os “yanaconas”,(17) uma espécie de rendeiros duplamente explorados devem ser ajudados na sua luta contra os proprietários. A reivindicação natural destes “yanaconas” é a da terra em que trabalham. Nas fazendas exploradas diretamente pelos proprietários através do sistema de peonagem, recrutada parcialmente na Serra, e às quais falta vinculo com o solo os termos da luta são diferentes. As reivindicações por que há que trabalhar são: liberdade de organização, supressão do “engache”, aumento dos salários, jornada de oito horas, cumprimento das leis de proteção do trabalho. Só quando o peão da plantação tiver conquistado estas coisas, estará na via da sua emancipação definitiva.
É muito difícil à propaganda sindical penetrar nas plantações. Na Costa, como na Serra, cada plantação é um feudo. Não é tolerada nenhuma associação que não aceite o patronato e a tutela dos proprietários e da administração; e neste caso só se encontram associações desportivas ou de recreio. Mas com o aumento do tráfego automobilístico abre-se pouco a pouco uma brecha nas barreiras que fechavam a plantação a qualquer tipo de propaganda. Daí a importância que a organização e mobilização ativa dos operários dos transportes tem no desenvolvimento do movimento de classe no Peru.
Quando as massas de peões das plantações souberem que contam com a solidariedade fraternal dos sindicatos e compreenderem o valor destes, facilmente despertará nelas a vontade de lutar que hoje lhes falta mas de que já deram provas mais do que uma vez. Os núcleos de aderentes ao trabalho sindical que se forem gradualmente formando nas plantações terão a função de explicar às massas os seus direitos, de defender os seus interesses, de os representar de facto em qualquer reclamação e de aproveitar a primeira oportunidade para dar forma à sua organização no quadro em que as circunstâncias o permitam.
Para a progressiva educação ideológica das massas indígenas, a vanguarda operária dispõe dos elementos militantes de raça indígena que, nas minas ou nos centros urbanos, particularmente nestes últimos, entram em contacto com o movimento sindical e político. Assimilam os seus princípios e capacitam-se para ter um papel importante na emancipação da sua raça. É frequente que os operários procedentes do meio indígena, regressem temporariamente ou definitivamente ao seu meio de origem. A língua permite-lhes cumprir eficazmente a missão de instrutores dos seus irmãos de raça e de classe. Os camponeses índios não entenderão verdadeiramente senão a indivíduos do seu seio que lhes falem na sua língua. Do branco e do mestiço desconfiarão sempre; e o branco e o mestiço, por seu lado, muito dificilmente se imporão o árduo trabalho de chegar ao meio indígena e de lhe levar a propaganda de classe.
Os métodos da autoeducação, a leitura regular dos órgãos do movimento sindical e revolucionário da América Latina, dos seus opúsculos, a correspondência com os seus companheiros dos centros urbanos, serão os meios para que estes elementos cumpram com êxito a sua missão educadora.
A coordenação das comunidades indígenas por regiões, o apoio aos que sofrem perseguições da justiça ou da polícia (os gamonais processam por delitos comuns os indígenas que lhes resistem ou a quem querem expropriar) a defesa da propriedade comunitária, a organização de pequenas bibliotecas e centros de estudos, são atividades que os aderentes indígenas do nosso movimento devem ter sempre como atividade principal e dirigente, com o duplo objetivo de dar diretivas sérias à orientação e educação de classe dos indígenas e de evitar a influência de elementos desorientadores (anarquistas, demagogos, reformistas).
No Peru a organização e a educação do proletariado mineiro é como a do proletariado agrícola uma das questões que se colocam imediatamente. Os centros mineiros, o principal dos quais (La Oroya) está em vias de se converter na mais importante central de lucros da América Latina, constituem pontos onde pode ser difundida com vantagem a propaganda de classe. Para além de representarem em si mesmos importantes concentrações proletárias com as condições associadas ao salariato, aproximam os trabalhadores manuais indígenas dos operários industriais, dos trabalhadores vindos das cidades que levam para estes centros o seu espírito e os seus princípios de classe. Os indígenas das minas, continuam em boa parte a ser camponeses, de modo que um aderente que se ganhe entre eles é também um elemento ganho entre a classe camponesa.
O trabalho, em todos os seus aspetos, será difícil, mas o seu progresso dependerá da capacidade dos elementos que o realizem e da sua avaliação precisa e concreta das condições objetivas da situação indígena. O problema não é racial mas sim social e económico; mas a raça tem o seu papel na forma de o abordar. Por exemplo, só militantes saídos do meio indígena podem, pela mentalidade e pelo idioma, conseguir um ascendente eficaz e imediato sobre os seus companheiros.
Uma consciência revolucionária indígena demorará provavelmente a formar-se, mas uma vez que o índio faça sua a ideia socialista servi-la-á com uma disciplina, uma tenacidade e uma força, que poucos proletários de outros meios poderão ultrapassar.
O realismo de uma política revolucionária segura e precisa na avaliação e utilização dos factos sobre os quais atuar nos países em que a população indígena ou negra tem proporções importantes e um papel relevante, pode e deve converter o fator raça num fator revolucionário. É imprescindível dar ao movimento do proletariado indígena ou negro, agrícola ou industrial, um caracter claro de luta de classes. Há que dar às populações indígenas ou negras escravizadas – disse um companheiro do Brasil – a certeza que só um governo de operários e camponeses de todas as raças que habitam o território os emancipará verdadeiramente já que somente este poderá suprimir o regime dos latifúndios e o regime industrial capitalista e liberta-los definitivamente da opressão imperialista”.
O problema das raças não é comum a todos os países da América Latina nem apresenta em todos os que o sofrem as mesmas proporções e características …
Enquanto em países tem importância reduzida ou uma localização regional que fazem com que não influa de forma apreciável no processo socioeconómico, noutros o problema racial coloca-se de forma determinante.
Vejamos a distribuição geográfica e as principais características dos três grandes grupos raciais na América Latina.
Os índios incas ocupam um vasto território que se estende por vários Estados quase sem descontinuidade formando conglomerados bastante compactos.
Estes índios são na sua maioria serranos, ocupam principalmente regiões andinas da “serra” ou das grandes mesetas, estendendo-se na serra do Peru, do Equador, do Norte do Chile, da Bolívia, e alguns territórios do Norte da Argentina.
A sua economia está predominantemente ligada à terra, que cultivam desde tempos imemoriais.
Vivem em clima frio e são prolíficos; as intensas destruições da época colonial e a extensa miscigenação reduziram enormemente o seu número mas não puderam impedir que se voltasse a produzir um considerável aumento da sua população, aumento que continua atualmente apesar da exploração a que estão submetidos.
Falam idiomas próprios, ricos e matizados, afins entre si, sendo os principais o Quechua e o Aimara.
A sua civilização teve épocas de esplendor notáveis. Hoje em dia dela conservam resíduos importantes de aptidões pictóricas, plásticas e musicais.
Estes índios, principalmente no Peru e na Bolívia, onde constituem 60 a 70% da população e no Equador e no Chile, onde também formam massas importantes, estão na base da produção e da exploração capitalista e, portanto, dão lugar a um problema de fundamental importância.
No Peru, Equador e Chile e em parte da Bolívia, onde estão ligados à agricultura e à pecuária as suas reivindicações são essencialmente de caracter agrário.
Na Bolívia e em algumas regiões serranas do Peru, onde são principalmente explorados nas minas, têm direito à conquista das reivindicações proletárias.
Em todos os países deste grupo a questão da raça interliga-se com o fator classe de tal maneira que uma política revolucionária não pode deixar de a ter em conta. O índio Quechua e Aimara vê o seu opressor no “misti”, no branco. E no mestiço unicamente a consciência de classe é capaz de destruir o hábito de desprezo e da repugnância pelo índio. Não é raro encontrar entre os próprios elementos urbanos que se proclamam de revolucionários o preconceito sobre a inferioridade do índio e resistência ao reconhecimento de que esse preconceito é uma simples herança ou contágio mental do meio ambiente.
A barreira da língua impõe-se entre as massas camponesas índias e os núcleos operários revolucionários de raça branca ou mestiça. O soldado é, geralmente, índio. Parte da confiança que a classe exploradora tem no exército, como seu sustentáculo na luta social, advém de que o soldado índio quando utilizado contra as multidões mestiças e urbanas ser pouco sensível ao apelo à solidariedade de classe.
Mas, através de propagandistas índios, a doutrina socialista, pela natureza das suas reivindicações, arraigar-se-á rapidamente entre as massas indígenas.
Um escritor burguês pseudopacifista Luis Guilaine,(18) que considera o estrato índio da América Latina como as massas das quais nascerá o impulso que poderá derrubar o imperialismo ianque acrescenta: “A propaganda bolchevista, presente em toda a parte, já os atingiu em maior ou menor grau, e eles são influenciáveis por esta propaganda por uma propensão atávica já que o princípio comunista foi a base principal da organização social do império dos Incas” (L’Amérique Latine et l’imperialisme americain, pag. 206, Paris, 1928). A miopia intelectual que caracteriza os nacionalistas franceses, quando tratam de impor o seu próprio imperialismo ao imperialismo norte-americano, parece dissipar-se até lhes permitir ver um facto tão evidente. Será possível não reconhecermos nós o papel que os fatores raciais índios vão representar na próxima etapa revolucionária na América Latina?
O que tem faltado até agora é a preparação sistemática de propagandistas índios. O índio alfabeto, a quem a cidade corrompe, converte-se normalmente num auxiliar dos exploradores da sua raça. Mas na cidade, no ambiente operário revolucionário, o índio começa já a assimilar a ideia revolucionária, a apropriar-se dela, a entender o seu valor como instrumento de emancipação dessa raça oprimida. Oprimida pela mesma classe que explora na fábrica o operário, no qual descobre o seu irmão de classe.
Os índios do Grupo Azteca ocupam grande parte do México e da Guatemala onde constituem a grande maioria da população. A sua evolução histórica e a sua alta civilização são bastante conhecidas. A sua economia e as suas características, bem como a sua importância social e o seu papel atual, são semelhantes aos dos índios incas. A sua importância em sentido “puramente racial” é negada pelo delegado do México o qual afirma “não existir um problema índio no México (salvo no Estado de Yucatão) mas existe sim luta de classes”.
Estes indígenas, que recebem frequentemente o nome de “selvagens”, são muito diferentes dos que referimos antes.
Estão distribuídos quase exclusivamente pelas regiões florestais e fluviais de clima quente do continente, particularmente em alguns Estados da América Central como a Colômbia (Chibchas)(19) e Venezuela (Muyscas),(20) nas Guianas e na região amazónica do Peru chamada “Montaña” (Campa)(21) e do Brasil e Paraguai (Guarani)(22) e ainda na Argentina e Paraguai (Charrúas).(23)
A sua dispersão em pequenos grupos nas imensas regiões selvagens e o seu nomadismo ligado às necessidades da caça e da pesca, quase desconhecendo a agricultura, são características claramente opostas às dos índios incas.
A sua antiga civilização provavelmente só atingiu um nível muito baixo. Os seus numerosos idiomas e dialetos, geralmente pobres em conceitos abstratos, a sua tendência à destruição numérica da raça, também são características opostas às dos índios incas.
A sua identificação em relação à população em geral é de reduzida importância, os seus contactos com a “civilização” e o seu papel na estrutura económica de cada país muito escassa quando mesmo inexistente. Nos locais onde a colonização ibérica não os destruiu diretamente, a raça em estado puro sofreu reduções decisivas por obra de uma intensa mestiçagem, como sucedeu especialmente na Colômbia onde se contam 2% de indígenas puros e 98% de mestiços; como sucedeu no Brasil onde os indígenas da selva constituem pouco mais de 1% em contraste com 60% de “mamelucos”(24) ou mestiços.
No Brasil a questão índia atual e a sua importância foi avaliada e exposta da seguinte forma pelo delegado desse país: “No Brasil o índio não suportou a escravatura a que os colonizadores o quiseram submeter e não se adaptou ao trabalho agrícola. Tinham sempre vivido da caça e da pesca. As suas noções de agricultura eram muito reduzidas. Era-lhe impossível fixar-se num só ponto da terra de um dia para o outro, já que o nomadismo fora até então o traço predominante do seu caracter. Os chefes das “bandeiras” compreenderam isso e passaram a atacar de preferência as “reduções” dos jesuítas, que integravam os índios mansos, aclimatados até certo ponto ao trabalho nas minas e da agricultura sob a influência de métodos diferentes como a sugestão religiosa. Mas as lutas eram muito encarniçadas e a travessia dos “sertões” com os índios recrutados à tarefa resultava dificílima e penosa o que acarretava quase sempre o desperdício da maior parte da carga humana transportada pelos “bandeirantes”. Os que chegavam vivos ao Litoral caiam em pouco tempo sob o peso dos árduos trabalhos a que os sujeitavam. Os que escapavam das garras do conquistador, entravam nas florestas distantes.
“Não existem cálculos exatos ou sequer aproximados, dignos de fé, sobre a população indígena do Brasil, na altura dos descobrimentos. Contudo, pode afirmar-se sem medo de errar que pelo menos dois terços da população indígena desapareceu no período de então até hoje, seja por cruzamento com os brancos, ou seja pelas matanças de nativos levadas a cabo pelos colonizadores no seu afã de conquistar escravos e de abrir caminho para as minas do interior. De acordo com uma apreciação otimista do General Cãndido Roldón, Chefe dos Serviços de Proteção dos Índios, existem atualmente no país cerca de 500.000 índios das florestas. Estes vivem em tribos pouco numerosas inteiramente segregados da civilização e penetram cada vez mais na floresta à medida que os latifundiários vão estendendo os seus domínios às terras ocupadas por eles”.
“Existe uma instituição oficial que protege teoricamente os indígenas. Mas é em vão que se procure encontrar na sua sede qualquer relatório sobre os trabalhos concretos realizados pelo dito Instituto. Esta instituição não publicou até hoje qualquer relatório concreto sobre as suas atividades”.
“No Brasil, os poucos milhares de índios que conservam os seus costumes e tradições, vivem afastados do proletariado urbano, sendo atualmente impossível o seu contacto com a vanguarda proletária e, consequentemente, a sua incorporação no movimento revolucionário das massas proletárias”.
Creio que para muitos países da América Latina que têm escassos grupos de índios das florestas tropicais o problema se apresenta, aproximadamente, da mesma forma do que no Brasil.
Para os países em que os índios das florestas tropicais constituem uma percentagem mais elevada da população e, sobretudo, estão inseridos no processo da economia nacional, geralmente na agricultura, como é o caso do Paraguai e das Guianas, o problema apresenta os mesmos aspetos que vimos relativamente aos índios aztecas ou incas no México, no Peru e noutros países ou regiões do mesmo grupo, aspetos já referidos sobre a sua identidade e traços especiais.
Para além das duas raças indígenas encontramos na América Latina, e em percentagens notáveis, a raça Negra.
Os países onde predominam são Cuba, o grupo antilhano e o Brasil.
Enquanto a maioria dos índios está, em geral, ligada à agricultura os negros trabalham preferencialmente nas indústrias. Em qualquer caso estão na base da pirâmide do sistema de produção e de exploração.
O Negro importado pelos colonizadores não tem apego à terra como o índio e quase não possui tradições próprias, falta-lhe uma língua própria falando o espanhol, o português, o francês ou o inglês.
Em Cuba, os Negros constituem uma percentagem muito elevada da população, como também acontece nos países antilhanos e estão frequentemente distribuídos por todas as classes sociais e integram igualmente, se bem que em pequeno número, as classes exploradoras; esta situação observa-se mais acentuadamente no Haiti e em Santo Domingo cujas burguesias são quase exclusivamente negras especialmente no Haiti.
No Brasil, o Negro puro é relativamente escasso, mas os negros-mulatos, que constituem uns 30% da população, são numerosos em todo o litoral e encontram-se especialmente concentrados em algumas regiões como o Pará. Os mulatos “claros” também são muito numerosos. Como aqui o refere o companheiro delegado do Brasil:
“Grande parte da população do litoral brasileiro é composta por mulatos; o tipo de negro puro é hoje muito raro, O cruzamento é cada vez mais intenso produzindo tipos cada vez mais claros desde que não chegam ao país desde há cerca de meio século imigrantes negros”.
“O preconceito contra o Negro assume proporções reduzidas. No seio do proletariado este preconceito não existe. Na burguesia e em certas camadas da pequena burguesia mal se deixa entender. Traduz-se no facto de que nessas esferas se veja com simpatia a influência do índio nos costumes do país e com certa má vontade a influência do negro. Contudo, tal atitude não provém de um verdadeiro ódio racial como nos Estados Unidos mas sim do facto de que no estrangeiro se referem ao país chamando-lhe, com uma evidente intensão pejorativa, “país de negros”. Tal vem excitar a vaidade patriótica do pequeno burguês que protesta esforçando-se por demonstrar o contrário. Mas é comum ver esse mesmo pequeno burguês exaltar o valor dos seus ascendentes africanos nas festas nacionais”.
“Deve-se acrescentar que há inúmeros negros e mulatos ocupando cargos de relevo no seio da burguesia nacional”.
“Deduz-se de tudo isto que, com rigor, não se pode falar da existência no Brasil do preconceito de cor. É claro que o Partido deve combate-lo em todas as circunstâncias em que surja. Mas é necessária uma ação permanente e sistemática já que raramente se manifesta”.
“A situação dos negros no Brasil não é de natureza a exigir que o nosso Partido organize campanhas de reivindicação específicas para os negros com palavras de ordem especiais”.
Em geral nos países em que existem grandes massas de negros a sua situação é um fator económico e social importante. No seu papel de explorados, nunca estão afastados antes se encontram ao lado dos explorados de outras cores. Para todos se colocam as reivindicações próprias da sua classe.
Existem na América Latina mais de 100 milhões de habitantes, a maioria da população é constituída por índios e negros. Mas há mais: qual é a sua categoria social e económica? Os indígenas e negros estão na sua grande maioria incluídos na classe de operários e camponeses explorados e formam a quase totalidade destas classes.
Esta última circunstância seria suficiente para colocar em plena luz toda a importância, como fator revolucionário, das raças na América Latina. Mas existem outras particularidades que se impõem relativamente às nossas considerações.
As referidas raças encontram-se presentes em toda a América Latina, constituindo uma imensa camada com o seu duplo carácter: racial e de explorados. Esta camada estende-se por toda a América Latina sem ter em conta as fronteiras artificiais mantidas pelas burguesias nacionais e pelos imperialistas.
Os negros que são afins entre si pela raça, os índios que são afins entre si pela raça, pela cultura, pelo idioma, pelo comum apego à terra; os negros e os índios que têm em comum e por igual o serem objeto da exploração mais intensa, constituem por estas múltiplas razões massas imensas que, unidas aos proletários e camponeses mestiços e brancos explorados, terão naturalmente a necessidade de se insurgir revolucionariamente contra as suas exíguas burguesias e contra o imperialismo monstruosamente parasitário para os apear, cimentando a consciência de classe e estabelecendo na América Latina o governo dos operários e camponeses.
Para o imperialismo ianque e inglês o valor económico destas terras seria muito menor se para além das suas riquezas naturais não possuíssem uma população indígena atrasada e miserável a que, com o apoio da burguesia nacional, é possível explorar de forma extrema. A história da indústria açucareira peruana, atualmente em crise, demonstra que a sua competitividade repousou, antes de tudo, na mão-de-obra barata, isto é na miséria dos trabalhadores manuais. Tecnicamente esta indústria nunca esteve, em nenhuma época, em condições de competir no mercado mundial com a de outros países. A distância relativamente aos mercados de consumo, agrava-a com elevados fretes de exportação. Mas estas desvantagens eram largamente compensadas pelo baixo valor da mão-de-obra. O trabalho das massas camponesas escravizadas, alojadas em repugnantes “rancherias”, privadas de toda a liberdade e dos seus direitos, submetidas a uma jornada de trabalho esmagadora, colocava os açucareiros peruanos em condições de competir com os que, noutros países, cultivavam melhor as suas terras ou estavam protegidos por tarifas protecionistas ou estavam mais vantajosamente situados do ponto de vista geográfica. O capitalismo estrangeiro serve-se da classe feudal para para explorar a seu proveito estas massas camponesas, mas, por vezes, a incapacidade destes latifundiários, herdeiros dos preconceitos, soberba e arbitrariedade medievais, em assegurar as funções de gestão de empresas capitalistas é tal que os imperialistas se vêm obrigados a tomar nas suas próprias mãos a administração de latifúndios e centrais. Isto ocorre particularmente na indústria açucareira do vale de Chicama que está quase completamente monopolizada por uma empresa inglesa e por uma empresa alemã.
Partindo do conceito de “inferioridade” da raça para levar a cabo uma intensa exploração os poderes coloniais procuraram uma série de pretextos jurídicos e religiosos para legitimar a sua atitude.
Bem conhecida é a tese do Papa Alexandre VI que, como representante de Deus na terra, dividiu entre os reis católicos de Portugal e Espanha os territórios da América Latina com a condição de que se erigissem em tutores da raça indígena. Os indígenas, na sua qualidade de “pagãos” não podiam gozar dos mesmo direitos que os leais súbditos das majestades católicas. Por outro lado não era possível aprovar de “direito”, a fórmula anticristã da escravatura. Surgiu então a fórmula hipócrita da tutelagem com uma das suas expressões económicas, entre as quais a mais representativa foi a da “encomenda”. Os espanhóis mais aptos foram escolhidos como “ecomendadores” de vastos territórios com grandes populações índias. A sua missão era dupla. Na ordem espiritual deviam converter por todos os meios os índios à fé cristã. Os meios de persuasão eram-lhes concedidos sempre que necessário sob a forma de doutrinadores. Na ordem temporal a tarefa era, contudo, mais simples; cada “encomenda” devia enviar à coroa um tributo sem prejuízo de que o “encomendador” tirasse também para si o montante que julgasse suficiente. Mais à frente veremos as características específicas das “encomendas” e o processo pelo qual constituíram um método legal de expropriação das terras dos indígenas, criando os fundamentos da propriedade semifeudal colonial que subsiste até à atualidade.
Neste processo é necessário sublinhar um fator importante de subjugação das populações aborígenes ao poderio económico e político dos invasores. A raça invasora que surgiu protegida por armaduras quase invulneráveis, maravilhosamente montada em animais desconhecidos, os cavalos, submeteu rapidamente o imenso império Inca e as numerosas tribos como as dos índios recolectores brasileiros, uruguaios, paraguaios. Tinha, logicamente, um grande ascendente para impor os seus deuses e o seu culto sobre as ruinas dos tempos incas, sobre os vencidos mitos da religião do sol e do fetichismo antropomórfico dos restantes índios.
Os invasores não negligenciaram o desprestígio que as armas tinham dado à cruz e agiram rapidamente no sentido de acorrentar as consciências ao mesmo tempo que escravizavam os corpos. Isto facilitava enormemente a submissão económica que era o objetivo principal dos súbditos católicos. Neste processo é interessante notar os resultados obtidos pelos invasores. Onde o domínio foi cego e brutal não conseguiu senão dizimar os aborígenes de forma alarmante para a produção, baixando o rendimento desta ao ponto de exigir a importação da raça negra africana especialmente para o trabalho nas minas. Mas a raça africana mostrou-se inapta para esse trabalho. Onde a penetração foi levada a cabo de forma mais sagaz e promovida pela decidida proteção da coroa, procurava apoderar-se das consciências. As congregações religiosas conseguiram estabelecer plantações florescentes até no coração das selvas, onde o índio não deixava de ser explorado em benefício dos invasores e a produção e os lucros aumentavam cada vez mais. O exemplo histórico das colonias jesuítas no Brasil e no Paraguai, bem como as colonias que outras congregações religiosas estabeleceram no Peru, são bem demonstrativos dessa realidade. Hoje em dia a influência religiosa não deixa de ser um fator importante na submissão dos índios às “autoridades” civis e religiosas com a diferença que a desonestidade destas, depois de ter elevado ao máximo o roubo descarado, as punições corporais e os comércios mais vergonhosos, começa a dar lugar ao sentimento de repulsa para com o padre, ainda mais do que contra o juiz, sentimento que se torna cada vez mais evidente e que explodiu, mais do que uma vez, em revoltas sangrentas.
Um setor dos padres, aliado às burguesias nacionais, continua a empregar as suas armas, baseadas no fanatismo religioso que séculos de propaganda conseguiram arreigar no espírito simples dos índios. Só uma consciência de classe, só o “mito” revolucionário com o seu profundo enraizamento económico, e não uma infecunda propaganda anticlerical, conseguirão substituir os mitos artificiais impostos pela “civilização” dos invasores e mantidos pelas classes burguesas herdeiras do poder colonial.
Por sua vez o imperialismo na América Latina inicia uma tentativa para também nesta área dar uma base sólida e mais ampla ao seu nefasto poder. As missões metodistas e anglicanas, os centros desportivos moralizadores da Y.M.C.A. têm conseguido penetrar até nas serras do Peru e da Bolívia mas com um êxito absolutamente reduzido e sem grande possibilidade de estender a sua ação. Um inimigo encarniçado que esta penetração encontra pela frente é o mesmo padre da aldeia que vê diminuir perigosamente a sua influência religiosa e com ela os seus rendimentos pecuniários.
Houve casos em que o cura aldeão conseguiu obter o apoio das autoridades civis e desterrar definitivamente a missão protestante “anticatólica”.
Outros aspetos ligados à questão Social dos explorados foram empregues pelo colonialismo e continuados por um largo setor da burguesia e do imperialismo. O desprezo estupido para com o índio e o negro foi inoculado, por todos os meios, pelo branco no mestiço. Não é raro encontrar essa atitude mesmo em mestiços cuja origem índia é demasiado evidente e cuja percentagem de sangue branco é difícil de reconhecer. Esse desprezo que se fomentou dentro da própria classe trabalhadora cresce consideravelmente à medida que o mestiço ocupa cargos mais elevados relativamente às camadas mais baixas do proletariado explorado, sem que, no entanto, diminua a funda barreira que o separa do patrão branco.
Com iguais fins a feudalidade e a burguesia alimentaram entre os negros um sentimento de animosidade para com os índios, facilitado, como já o dissemos, pelo papel que passou a desempenhar o negro nos países de escassa população índia; de artesão, de doméstico, de vigilante, sempre com os patrões, gozando de certa familiaridade que lhe conferia o “direito” de desprezar tudo o que o seu patrão despreza.
Outra ocasião que os exploradores nunca desaproveitaram é a de criar rivalidades entre grupos de uma mesma raça. O imperialismo americano dá-nos um duríssimo exemplo desta tática, na rivalidade que conseguiu criar entre os negros residentes em Cuba e os que aí chegam periodicamente para trabalhar vindos do Haiti e da Jamaica impelidos pelas duras condições do seu país de origem
Tão pouco alguns setores intelectuais identificados com a burguesia deixaram de procurar armas para denegrir os índios chegando ao ponto de negar os aspetos mais salientes do seu processo histórico.
Não faltou quem se dedicasse a escrever trabalhos pseudo-históricos, para procurar demonstrar que não se pode falar em estruturas comunitárias entre os índios incas. Esta gente, logo desmentida de forma conclusiva pela grande maioria de análogos setores burgueses, pretendia fechar os olhos à existência de milhares de comunidades no Peru, Bolívia, Chile e em que continuam a viver milhões de índios mesmo despois de derrubada a ordem pública no interior da qual estavam enquadradas, depois de três séculos de colonialismo, depois de um século de exploração feudal burguesa e eclesiástica. A tarefa de pulverizar essas teses absurdas, preenchida pela própria crítica burguesa, será tomada a cargo pela nascente crítica marxista, de cujos estudos históricos que já temos sinais luminosos na América Latina, sobre este problema.
Mais à frente detalharei as principais características que teve e tem o coletivismo primitivo nos índios incas.
Mas é meu dever assinalar aqui, que uma das tarefas mais urgentes dos nossos Partidos, é a revisão imediata de todos os dados históricos acumulados até hoje pela crítica feudal e burguesa, elaborados em seu próprio proveito pelos departamentos de estatística dos estados capitalistas, e oferecidos à nossa consideração em toda a sua deformação e que impedem o conhecimento exato dos valores populacionais das raças aborígenes primitivas.
Só o conhecimento da realidade concreta, obtido do trabalho e da análise de todos os Partidos Comunistas, pode dar-nos uma base sólida para estabelecer as condições do existente, permitindo traçar as diretivas de acordo com a realidade. A nossa investigação de carácter histórico é útil, mas acima de tudo devemos controlar o seu estado atual e sentimental, sondar a orientação do seu pensamento coletivo, avaliar as suas forças de expansão e de resistência; tudo isto, sabemo-lo, é condicionado pelos antecedentes históricos por um lado mas, principalmente, pelas suas condições económicas atuais. Estas são as coisas que devemos conhecer em todos os seus detalhes. A vida do índio, as condições da sua exploração, as possibilidades de luta da sua parte, os meios mais práticos de penetração da vanguarda do proletariado entre eles, a forma mais correta para que eles possam construir a sua própria organização, são aqui os pontos fundamentais cujo conhecimento devemos perseguir para desempenhar corretamente o papel histórico que cada Partido deve desenvolver.
A luta de classes, realidade primordial que os nossos partidos reconhecem, reveste-se indubitavelmente de características especiais quando a imensa maioria dos explorados é constituída por uma raça e os exploradores pertencem quase exclusivamente a outra.
Tentei mostrar alguns dos problemas essencialmente raciais que o capitalismo e o imperialismo agudizam e, também, algumas das debilidades devidas ao atraso cultural das raças, que o capitalismo explora em seu exclusivo benefício.
Quando sobre os ombros de uma classe produtora pesa a mais dura exploração económica e a isso se soma o desprezo e o ódio de que é vitima enquanto raça, nada mais falta do que um entendimento simples e claro da situação para que esta massa se levante como um só homem e derrube todas as formas de exploração.
Antes de examinar o estado económico e social das populações indígenas e de que forma existe a instituição mais característica da sua civilização, as “comunidades”, creio útil traçar um breve esboço da sua formação e do seu desenvolvimento histórico e tratar de investigar as causas da sua subsistência e persistência no interior e contra estruturas socioeconómicas antagónicas.
Antes do Império Inca, com a sua vasta organização, existiu entre as populações aborígenes que ocupavam um território imenso, um regime de comunismo agrário.
Depois das tribos passarem do nomadismo para o sedentarismo, dando origem à agricultura, constituiu-se um regime de propriedade e de usufruto coletivo da terra organizado por grupos que constituíram as primeiras “comunidades”, estabelecendo-se o costume da repartição da terra segundo as necessidades da lavoura.
O Império Inca dos quéchuas, ao formar-se e estender-se progressivamente, quer por intermedio da guerra quer por anexações pacíficas, encontrou em toda a parte essa ordem económica pré-existente.
O poder económico e político do Estado no império Inca residia no Inca, pois o seu regime de governo era centralizado. Todas as riquezas, como as minas, as terras, o gado, pertenciam-lhe. A propriedade privada era desconhecida. As terras dividiam-se em três partes: uma para o Sol, outra para o Inca e outra para o Povo. Todas as terras eram cultivadas pelo Povo. Em primeiro lugar cultivavam-se as terras do Sol. A seguir a dos velhos, viúvas e órfãos e dos soldados que estavam no serviço ativo. Depois o Povo cultivava as suas próprias terras e tinha obrigação de ajudar os vizinhos.
Só depois de tudo isto se cultivavam as terras do Inca. Esta forma de repartir as terras aplicava-se a todo o tipo de outras riquezas como o gado, as minas, etc.. É preciso advertir que o estado Inca não conhecia o dinheiro. Uma disposição muito sábia determinava que todo o deficit de contribuições para o Inca se devia cobrir com o que estivesse guardado no celeiro do Sol. A economia do governo produzia excedentes. Estes excedentes eram guardados em armazéns, que em períodos de escassez se destinavam aos indivíduos caídos na miséria por doença ou outras desgraças. Desta forma uma grande parte das rendas do Inca retornavam, por uma ou outra via, para as mãos do Povo. As terras eram repartidas em lotes entregues anualmente a cada família: a cada membro da família, de ambos os sexos, era atribuída uma porção igual. Ninguém podia vender as suas terras nem aumentar as suas posses. Quando alguém morria as terras regressavam à posse do Inca. A repartição fazia-se todos os anos, para mostrar claramente ao povo que as terras pertenciam unicamente ao Inca, que as podia entregar ao povo da forma prevista.
Há quem sustente que, em algumas regiões, antes do império se iam manifestando durante as repartições periódicas, a uma tendência para persistir na atribuição dos mesmos lotes de terreno sempre à mesma família, tendência cuja propagação foi impedida pela autoridade teocrática do Inca, mas que voltou a aparecer durante o Império chegando a dar lugar até à divisão das terras pelos filhos quando se dava a morte do pai embora isto não significasse propriedade privada (na medida em que lhe falta a liberdade testamenteira e possibilidade de alienação), mas apenas propriedade familiar, gérmen da propriedade individual: este era o ponto, segundo alguns historiadores equatorianos, a que haviam chegado alguns índios desse território na época da conquista.
Além disso, alguns autores pretendem que em paralelo com a tendência para a propriedade individual, se assistia a um feudalismo nascente que teria sido caracterizado pelo poder dos chefes militares, curacas(25) ou régulos, caciques, etc., que não faziam parte da comunidade, possuíam a terra em propriedade familiar e que só a autoridade do Inca impedia a transformação desta em propriedade individual.
Também se quis ver na “guerra de sucessão entre Huáscar e Atahualpa, o anúncio de grandes guerras e conflitos: a luta e oposição entre a monarquia e a nobreza”.
Algumas destas observações, nomeadamente as referentes ao feudalismo, que também foram reproduzidas sobre o México, tendem a traçar um quadro da evolução histórica latino-americana muito análogo ao mesmo período da história europeia e asiática. Por outro lado também afirmam que a evolução natural do coletivismo indígena teria conduzido, através de dois grandes fenómenos simultâneos – a transformação da propriedade coletiva em propriedade familiar e desta em propriedade individual e a formação do feudalismo – a instituições análogas aos burgos e municípios não fora a influência do Império teocrático que impediu esse livre desenvolvimento ao contrário do que aconteceu na Europa. A conquista teria precipitado e acelerado a cristalização do feudalismo, assumido pelos espanhóis, e da propriedade privada, que coexistia nas comunidades e nas famílias mas de forma residual.
É evidentemente sugestiva toda esta série de hipóteses; há factos que parecem confirmá-las. Mas como podemos estender a todas as comunidades incas todas estas conclusões? Como podemos explicar a persistência das comunidades no interior do violento processo de conquista, da formação das reduções e das alterações vastas e profundas efetuadas pelas “composições”? Que momento mais propício tiveram estas comunidades para evoluir no sentido indicado do que na altura dos decretos das novas repúblicas todos dirigidos à criação da propriedade privada? Verdadeiramente não creio que se possa afirmar que o caracter do coletivismo primitivo seja o de evoluir para a propriedade privada quando as comunidades têm sido, por todo o lado, sistematicamente atacadas e fragmentadas por mais de um século de exploração burguesa republicana e subsistem em tão grande número e erguem o seu corpo vigoroso e sempre jovem nos alvores de uma nova etapa coletivista.
Mas voltemos a seguir o desenvolvimento das comunidades que formavam o substrato da coletividade inca nos finais do século XV.
Quebra-se a harmonia económica e política do Império. O regime colonial que se estabeleceu então desorganizou e aniquilou a economia agrária inca substituindo-a por uma de maior desempenho. Sob uma aristocracia indígena os nativos formavam uma nação de 10 milhões de homens, com um estado eficiente e orgânico, cujo raio de ação abrangia todos os aspetos da sua soberania. Sob o regime colonial os nativos reduziram-se a uma anárquica e dispersa massa de 1 milhão de homens caídos na servidão e no “feudalismo”. A ambição dos conquistadores, e sobretudo a da coroa, pelo metal precioso, enviou para o mortífero trabalho nas minas grandes massas habituadas ao trabalho na agricultura e que, em três séculos, as reduziu rapidamente a uma décima parte.
Durante este período as comunidades indígenas sofreram uma modificação: o governo que antes pertencia ao Inca foi confiado a indivíduos pertencentes a cada “ayllu”.(26) As “Leis Índias” defendiam a propriedade indígena e reconheciam a sua organização comunista. Apesar disso estabeleceram-se as “encomendas”, as mitas(27) e o ponguaje.(28) Os encomendeiros que receberam terras, índios, etc., com a obrigação de os instruir converteram-se com o tempo em grandes proprietários semifeudais.
O advento da República não transformou substancialmente a economia do país. Produz-se uma simples mudança de classe: ao governo de cortesãos da nobreza espanhola sucedeu o governo dos latifundiários, encomendeiros e profissionais crioulos. A aristocracia mestiça toma o poder, sem nenhum conceito económico, sem nenhuma visão política. Para os quatro milhões de índios o movimento de emancipação da metrópole passa desapercebido. O seu estado de servidão persiste desde a conquista até aos nossos dias não obstante as leis aprovadas “para os proteger”. Leis que nunca poderão ser aplicadas enquanto a subsistir a estrutura económica feudo-latifundiária de subsistência no nosso mecanismo social.
A nova classe governante, ávida e sedenta de riquezas, concentra-se em alargar os latifúndios à custa das terras pertencentes às comunidades índias indo ao extremo de as fazer desaparecer em alguns departamentos. Tendo-lhes sido arrebatada a terra que possuíam em comum todas as famílias dos ayllus foram obrigadas a arranjar trabalho quer como yanaconazgo (rendeiros) quer como peões dos próprios latifundiários que os tinham expropriado violentamente.
Do antigo ayllu não restam senão um ou outro traço fisionómico, étnico, costumes, práticas religiosas e sociais que, com algumas pequenas variações, se encontram num sem número de comunidades que anteriormente constituíram o pequeno reino, o “curacazgo”.(29) Mas se desta organização, que entre nós foi a instituição política intermédia entre o ayllu e o império, desapareceram todos os elementos coercivos e de solidariedade, o ayllu, a comunidade, por seu lado, em algumas zonas pouco desenvolvidas conservou a sua idiossincrasia natural, o seu carater de instituição quase familiar, em cujo seio continuaram a subsistir depois da Conquista os seus principais fatores constituintes.
As comunidades repousam sobre a base da propriedade comum das terras em que vivem, cultivam e conservam, por pactos e laços de consanguinidade que unem entre si as diversas famílias que formam o ayllu. As terras de cultivo e de pasto pertencentes à comunidade constituem o património da referida comunidade. Nela vivem, do seu cultivo se mantêm, e os contínuos cuidados que os seus membros põem para que não lhes seja arrebatada pelos seus poderosos vizinhos ou por outras comunidades, servem-lhes de incentivo suficiente para estar sempre organizados, constituindo um só corpo. Ainda hoje, as terras comunitárias pertencem a todo o ayllu, ou seja ao conjunto das famílias que formam a comunidade. Algumas estão repartidas e outras são consideradas como bem de raiz comum cuja administração é efetuada pelos agentes da comunidade. Cada família possui um pedaço de terra que cultiva, mas que não pode alienar porque não lhe pertence: é da comunidade.
Em geral, existem duas classes de terras: umas que se cultivam em comum para algum “santo” ou comunidade e as que são cultivadas por cada família separadamente.
Mas o espírito coletivista do indígena não se revela apenas através das comunidades. O costume secular da "Minka" subsiste nos territórios do Peru, da Bolívia, do Equador e do Chile - mesmo que não pertença a uma comunidade o trabalho que um pequeno agricultor não possa realizar por falta de ajudantes, por doença ou por outro motivo semelhante, é realizado graças à cooperação e auxílio dos pequenos agricultores vizinhos, que por seu lado recebem uma parte do produto da colheita, quando a quantidade desta o consente, ou recebem outro auxílio manual em época subsequente.
Este espírito de cooperação que existe fora das comunidades manifesta-se de forma especial na Bolívia onde os pequenos agricultores pobres estabelecem acordos mútuos para lavrar em comum o conjunto das suas terras e para repartir entre si o produto obtido. Outra forma de cooperação que também se observa na Bolívia é o que se realiza entre o índio pequeno proprietário rural dos arredores de uma cidade que apenas possui a sua terra e outro índio que vive na cidade como pequeno artesão ou assalariado relativamente bem remunerado; este último não dispõe de tempo, mas pode de uma forma ou de outra conseguir as sementes ou os instrumentos de lavoura que o primeiro não tem; então o primeiro entra com a terra e o seu trabalho pessoal e na época da colheita repartem o produto obtido na proporção acordada de antemão.
Esta e outras formas de cooperação extra comunitárias a par com a existência de numerosas comunidades (no Perú existem cerca de 1.500 comunidades com 30 milhões de hectares e cultivadas por cerca de 1.500.000 de comuneiros; na Bolívia um número aproximado de comunidades mas com menos comuneiros, tendo sido muitos deles arrancados das terras para trabalhar nas minas), comunidades que em algumas regiões obtêm uma produtividade agrícola superior à dos latifúndios, atestam a vivacidade do coletivismo primitivo inca, capaz de amanhã multiplicar a suas forças aplicadas ao latifúndio e com os meios de cultivo necessários.
O VI Congresso da IC(30) assinalou uma vez mais a possibilidade de os povos de economia rudimentar passarem diretamente para a organização económica coletiva, sem sofrer a longa evolução por que passaram outros povos. Nós cremos que entre as populações “atrasadas”, nenhuma como a comunidade inca, reúne condições tão favoráveis a que o comunismo agrário primitivo, subsistente em estruturas concretas e num profundo espírito coletivista, se transforme, sob a hegemonia da classe proletária, numa das bases mais sólidas da sociedade coletivista preconizada pelo comunismo marxista.
Para as populações “inca” ou “azteca” que vivem em grandes massas nos países que assinalei atrás e que constituem parte integrante e basilar da economia das respetivas nações, o papel económico e as condições sociais em todos os seus aspetos são iguais aos que existem no Perú.
Contudo, têm cabimento algumas observações específicas sobre cada país, na medida em que existem diferenças específicas próprias de cada um deles.
Na Bolívia, em que a percentagem de população índia é semelhante a do Peru, o índio sofre não só a mesma exploração mas também o mesmo desprezo da parte do branco e do mestiço (quase não existem negros na Bolívia – são 0,2% - para se solidarizarem neste desprezo com os brancos). Esta situação provoca, tal como no Peru, o mesmo sentimento da parte do índio em relação a todos os que não sejam da sua raça e à desconfiança em relação aos brancos, mas forte ainda se lhe nota qualquer caracter “oficial” relacionado com o poder governativo ou administrativo. Mas na Bolívia há que assinalar uma característica fundamental, de ordem económica, que a distingue relativamente ao Peru. Enquanto no Peru, o número de índios mineiros não a chega a 2% do total de índios, na Bolívia essa percentagem é muito mais elevada, constituindo eles um forte proletariado índio, que não só ganhará uma mais forte consciência de classe mas que lhe permite já hoje levar a cabo uma propaganda muito mais eficiente do que a que é feita junto dos restantes índios agrícolas.
Neste capítulo no Chile também existem condições mais favoráveis do que no Peru. No Equador a massa índia é essencialmente agrícola. O mesmo acontecendo nas províncias do Norte da Argentina.
No México, contrariamente aos países mencionados acima, não existe animosidade contra o índio. A percentagem de índios puros é tão forte e sobretudo a mestiçagem tão extensa que as características raciais índias são características nacionais. Houve presidentes da República, generais e estadistas de pura cepa indígena e o índio não encontra resistências espirituais ou grosseiras que pesem sobre si vindas de outros grupos.
Na Guatemala e noutros estados centro-americanos o problema racial é, pelas mesmas razões, mais semelhante à situação do México do que às nações do grupo inca. Nesses Estados, como no México, não existe um problema indígena no sentido “racial” da palavra.
Examinemos agora as condições socioeconómica das populações índias do tipo “recolectoras”. Mais uma vez, sublinho que, o facto de que o setor “civilizado” da América Latina não possuir muitos conhecimentos a seu respeito, não justifica de forma nenhuma a nossa despreocupação com estas populações, pelo contrário, coloca-nos o dever de estudar as suas condições para formular com algum acerto as constatações objetivas que permitam desenhar uma tática adequada.
Assinalei a traços largos as regiões em que habitam e as características que, na atualidade, as diferenciam profundamente dos grupos inca e azteca.
É interessante apontar um facto. Estas raças, nalguns casos importantes, são as que mais contribuíram para a formação étnica das nações que se formaram nos seus territórios, e tendo dado lugar a uma mestiçagem intensíssima com os invasores reduziram-se a grupos muito escassos e, simultaneamente, segregados do litoral e da sua economia e cultura. Isto observa-se de forma mais vincada na Colômbia, onde representam menos de 2% contra aproximadamente 86% de mestiços, no Brasil, onde ultrapassam pouco mais de 1% contra 66% de “mamelucos”(32) (sem contar com os mulatos). Toda esta cooperação biológica valeu-lhes a absorção quase completa da sua raça e a redução dos núcleos “puros” ao estado de “selvagens”.
Noutras nações, os contatos com os invasores foram breves e violentos. A maioria dos índios recolectores retirou-se para o interior e contribuiu apenas infimamente para a mestiçagem, como aconteceu no Equador, no Peru, no Uruguai e em outros estados.
Em ambos os casos, o resultado para os grupos 'puros' foi o mesmo. Na economia e na cultura ficaram isolados, e ficaram igualmente limitados, desde os tempos da conquista, a um território cada vez menor e a cada dia mais reduzido, a um ritmo imparável até hoje, pelas mãos dos invasores ou dos próprios mestiços.
A economia desses índios, na sua maioria nómadas, está limitada à caça e à pesca. Mas há grupos de índios, os que conseguiram encontrar terras adequadas à lavoura, que se dedicam à agricultura e que sentem duramente a falta de terras, especialmente quando, nos dias de hoje, as suas terras continuam a ser-lhes expropriadas, nomeadamente as localizadas nas áreas limítrofes da “civilização” costeira.
É lógico afirmar que suas reivindicações naturais consistem em exigir a devolução de todas as terras que possam cultivar.
Outras tribos de índios, na bacia do rio Amazonas, foram alcançadas pelas garras famintas dos exploradores brancos ou mestiços e escravizadas para o trabalho de coleta de madeira ou da extração da 'borracha'. Referi, ao falar da região da Montaña no Peru, os abusos ignominiosos ali cometidos, que chegaram a ultrapassar os limites das florestas e tiveram ressonância mundial, mas que não conseguiram obter a punição dos culpados, mas bem pelo contrário, levaram à punição dos defensores dos índios.
Esses casos, de uma forma ou de outra, persistem no Peru, na Colômbia, no Brasil e nas Guianas, e chegará o dia em que o proletariado ajudará esses índios a libertar-se definitivamente do regime escravista".
Ao falar sobre a importância da raça negra no continente, apontei a sua distribuição geográfica e as suas características principais.
O papel económico do negro está geralmente ligado à indústria e, dentro dela, principalmente à indústria de processamento de produtos agrícolas. Em Cuba, a quantidade de negros assalariados na agricultura não difere muito da quantidade de assalariados na indústria.
O negro, na América Latina, não sofre o mesmo desprezo do que nos Estados Unidos, onde encontra sempre, por parte das outras raças, uma resistência em estabelecer contato com ele, o que não se traduz em disposições ou costumes de segregação limitadores, sob este conceito, da sua liberdade. Também não encontra enraizado o preconceito de inferioridade ou incapacidade para certas ocupações, pois a constatação quotidiana demonstra que o negro pode desempenhar muito bem todas as funções sociais, desde que não seja impedido de se preparar para elas. No Brasil, o preconceito em relação ao negro quase não existe, devido ao fato de os mestiços atingirem cerca de 40 por cento da população.
Da constatação do seu papel económico e das suas condições sociais, decorre o fato de que, na América Latina, em geral, o problema negro não assume um aspeto racial acentuado.
O seu papel económico de produtor, ao lado do trabalhador mestiço e branco, faz com que a eles se assemelhe na exploração que sofre e na luta que trava pela sua emancipação da opressão capitalista.
Embora os mestiços e mulatos não constituam uma raça propriamente dita, acredito que integram o problema étnico, devido às diferenças raciais que os separam dos negros, dos índios e dos brancos.
A mestiçagem, no sentido amplo da palavra, apresenta aspetos diferentes em cada país. Em países como a Colômbia, ocorreu entre duas raças, a branca e a indígena, resultando na quase extinção desta última e levando à formação de uma mestiçagem intensa e extensa (cerca de 85 por cento da população).
Em outros países, como o Brasil, também houve uma mestiçagem intensa entre os invasores e os aborígenes, o que levou quase à extinção da raça indígena "pura". No entanto, um terceiro fator também interveio, a raça negra importada. É extremamente difícil classificar os mestiços no Brasil em três categorias, como tem sido tentado: índios-brancos, negros-brancos e índios-negros. A verdade é que esses tipos se têm fundido repetidamente, dando origem a uma variedade de tipos raciais que vão desde o negro puro, passando pelo mulato e mameluco até ao branco.
No entanto, os negros e os brancos puros encontram-se em nítida minoria em relação à população de mulatos e "mamelucos", que os superam numericamente, e entre os quais é possível estabelecer uma diferença clara.
No Peru, a miscigenação entre duas raças também inclui uma escala de indivíduos bastante rica em tipos mestiços. No Chile, Argentina e Uruguai, a miscigenação é muito menos acentuada.
A população mestiça e mulata na América Latina está distribuída em todas as camadas sociais, deixando, no entanto, sempre, a raça branca com a predominância dentro da classe exploradora.
Após o índio e o negro, o mestiço ocupa uma posição bastante importante dentro da classe proletária. Não possui reivindicações sociais próprias, exceto a de libertar-se do desprezo que o branco lança sobre ele. As suas reivindicações económicas confundem-se com as da classe a que pertence.
Nas nações em que constituem a quase totalidade da população, a sua existência como proletariado e campesinato numeroso reserva-lhes um papel importante na luta revolucionária.
A luta que os indígenas têm travado, desde os dias da conquista, contra os invasores teve várias fases ligadas às suas condições económicas, aos sistemas de exploração e à força política dos poderes opressores. Houve períodos de trégua e momentos de intensificação violenta.
Os indígenas mexicanos, maias, toltecas, yaquis, etc., sempre se destacaram por seu espírito combativo e constituíram elementos de insegurança para todos os governos que os oprimiam ou os negligenciavam. Todos conhecem o papel muito importante que desempenharam na revolução mexicana, conseguindo, com a vitória desta, obter, embora de forma limitada, algumas terras e a satisfação de algumas das suas reivindicações específicas. Hoje em dia, mesmo sem desfrutarem das possibilidades de expansão que lhes são devidas, com importantes aspirações insatisfeitas, constituem um fator revolucionário considerável.
No Peru, de acordo com uma estatística de 1920, 98% das revoltas indígenas ocorreram por motivos relacionados com a posse da terra.
Passarei a abordar a história do movimento indígena contra o "gamonalismo" ou feudalismo no Peru, o que pode dar uma ideia bastante aproximada da luta que travam na Bolívia, no Equador e em outros países.
Quando se fala sobre a atitude do indígena perante os seus exploradores, geralmente subscreve-se a impressão de que o índio, degradado e oprimido, é incapaz de qualquer luta, de qualquer resistência. A longa história de insurreições e revoltas indígenas, e os subsequentes massacres e repressões, é suficiente para desmentir essa impressão. Na maioria dos casos, as revoltas indígenas têm sua origem em alguma violência que os impulsionou incidentalmente à revolta contra uma autoridade ou contra um fazendeiro; porém, noutros casos, têm um caráter de motim local. A rebelião seguiu-se a uma agitação menos incidental e espalhou-se por uma extensa região. Para a reprimir, foi necessário recorrer a forças consideráveis e a verdadeiras matanças. Milhares de indígenas rebeldes espalharam o terror entre os gamonales de várias províncias. Uma das revoltas que, recentemente, assumiu proporções extraordinárias foi a liderada pelo Major do Exército Teodomiro Gutiérrez, mestiço serrano, com forte percentual de sangue indígena, que se autodenominava Rumi Maqui e se apresentava como um redentor de sua raça. O Major Gutiérrez havia sido enviado pelo governo de Billinghurst para investigar as denúncias indígenas e informar o governo no departamento de Puno, onde o gamonalismo estava no auge dos seus saques e das cobranças de tributos, Gutiérrez entrou então em contato íntimo com os indígenas. Depois da queda do governo de Billinghurst percebeu que todas as possibilidades de satisfação das reivindicações índias por vias legais tinham desaparecido e lançou a revolta. Vários milhares de indígenas seguiram-no, mas, como sempre, desarmados e indefesos perante as tropas, ficaram condenados à dispersão ou à morte. A essa revolta seguiram-se as de La Mar e Huancané em 1923 e outras menores, todas violentamente reprimidas.
Em 1921, com o auspício governamental, realizou-se um congresso indígena, no qual participaram delegações de várias comunidades. O objetivo desse congresso era formular as reivindicações da raça indígena. Os delegados pronunciavam em quéchua acusações enérgicas contra os gamonales, as autoridades e os padres. Formou-se um comité chamado "Pró-Direito Indígena Tahuantinsuyo". Realizou-se um congresso anual até 1924, altura em que o governo perseguiu os elementos revolucionários indígenas, intimidou as delegações e desvirtuou o espírito e o propósito da assembleia. No Congresso de 1923 foram aprovadas conclusões inquietantes para o gamonalismo, como as que pediam a separação entre a Igreja e o Estado e a revogação da lei de recrutamento para trabalho obrigatório na rede viária. Estes Congressos, nas quais os grupos das comunidades indígenas de diversas regiões entravam em contato entre si e coordenavam as suas ações, revelaram-se um perigo para o gamonalismo, Nesse mesmo ano,1923, foi constituída a Confederação Regional Indígena, que pretendia aplicar à organização dos índios os princípios e métodos do anarco-sindicalismo e que, por isso, estava condenada a ser apenas um ensaio, mas que apresentava, de qualquer modo, uma franca orientação revolucionária da vanguarda indígena. Com dois líderes indígenas desterrados desse movimento e outros intimidados, a Federação Operária Indígena ficou logo reduzida apenas a um nome. E em 1927, com o pretexto de que seus dirigentes eram meros exploradores da raça cuja defesa reivindicavam, o governo dissolveu o próprio Comitê Pró-Direito Indígena Tahuantinsuyo. Esse Comitê, composto por elementos sem valor ideológico ou pessoal,e que nunca teve maior importância do que a associada à sua participação nos congressos indígenas, fizera em muitas ocasiões declarações de apoio à política governamental, considerando-a pró-indígena. No entanto, para alguns gamonales, era, mesmo assim, um instrumento de agitação, um resíduo dos congressos indígenas. O governo, por sua vez, orientava sua política no sentido de associar às declarações pró-indígenas, às promessas de distribuição de terras, etc., uma ação resoluta contra toda agitação dos indígenas por grupos revolucionários ou suscetíveis de influência revolucionária.
A penetração de ideais socialistas, a expressão de reivindicações revolucionárias entre os indígenas, continuaram apesar dessas vicissitudes.
Em 1927, foi constituído em Cusco um grupo de ação pró-indígena chamado "Grupo Ressurgimento". Era composto por alguns intelectuais e artistas, juntamente com alguns trabalhadores cusquenhos. Esse grupo publicou um manifesto que denunciava os crimes do gamonalismo. Pouco depois da sua constituição, um de seus principais líderes, o doutor Luis E. Valcárcel, foi preso em Arequipa. Sua prisão durou apenas alguns dias, mas, nesse meio tempo, o grupo Ressurgimento foi definitivamente dissolvido pelas autoridades de Cusco.
As lutas realizadas pelos negros na América Latina nunca tiveram, nem poderão ter, um caráter de luta nacional. E nas suas reivindicações, raramente houve alguma de caráter puramente racial.
As suas lutas no Brasil, em Cuba e nas Antilhas foram conduzidas para acabar com as punições corporais, para melhorar as condições de vida e para melhorar os salários. Recentemente, também levaram a cabo lutas para defender seus direitos de organização.
Nas regiões do Brasil onde o Fordismo abandonou sua máscara filantrópica para, mais uma vez, revelar, embora de forma diferente, o seu caráter de feroz explorador, os proletários negros lutam em conjunto com os outros proletários para se defenderem contra a opressão brutal que nivela os trabalhadores de diferentes cores sob o seu jugo esclavagista.
Em todos os países, os negros têm que lutar pelas suas reivindicações de caráter proletário com mais força do que contra os preconceitos e abusos de que são vítimas por serem negros.
É esse o caráter que se destaca, a cada dia com mais precisão, da luta levada a cabo pelos trabalhadores negros contra a opressão capitalista e imperialista.
O relatório anterior procurou elencar, de forma genérica, os aspetos fundamentais do "problema das raças" na América Latina, a importância que as raças têm na demografia e na produção, bem como as principais características raciais. Também abordou as condições económicas e sociais em que se encontram as populações de raça indígena ou negra, traçando o seu desenvolvimento histórico e económico, bem como as suas relações com o imperialismo. Além disso, mencionou os mestiços ou mulatos e o nível político alcançado por essas raças nas lutas que travaram, assim como as reivindicações que procuraram acalçar ao longo do tempo.
Com todos esses elementos, embora resumidamente e de forma incompleta, é possível tentar encontrar as soluções que o problema das raças requer e, consequentemente, estabelecer as tarefas que incumbem aos Partidos Comunistas da América Latina.
Este problema apresenta um aspeto social inegável, visto que a grande maioria da classe produtora é composta por índios ou negros. Por outro lado, esse caráter está bastante deturpado no que diz respeito à raça negra. Ela perdeu contato com a sua civilização tradicional e com a sua língua, adotando integralmente a civilização e a língua dos exploradores. Essa raça também não possui raízes históricas profundas na terra em que vive, pois foi importada da África. No caso da raça indígena, o caráter social mantém, em maior medida, a sua fisionomia devido à tradição ligada à terra, à sobrevivência de uma parte importante da sua estrutura social e da sua civilização, à preservação da língua e de muitos costumes e tradições, embora não da religião.
O aspeto puramente racial do problema, no que se refere a ambas raças, também está fortemente diminuído pela proporção do mestiçamento e pela presença dessas mesmas camadas mestiças e até mesmo de elementos brancos, juntamente com elementos indígenas e negros, na classe proletária, na classe dos camponeses pobres, i.e. nas classes que se encontram na base do sistema de produção e que são as mais exploradas.
Apontei todos os casos em que o índio e o negro que passam a desempenhar uma função mais privilegiada na produção perdem completamente o contato com sua raça, tendendo, cada vez mais, a assumir uma função exploradora; destaquei todos os casos em que o índio, sem elevar o seu nível económico, apenas por ter sido forçado a deixar sua terra (por ter sido expulso ou por serviço militar) e ter entrado em contato com a civilização branca, fica desconectado para sempre de sua própria raça, lutando para apagar todos os traços que a ela o ligam, e tende a confundir-se com o branco ou com o mestiço; primeiro nos hábitos e costumes e, posteriormente, se possível, na exploração de seus irmãos de raça.
Todos os fatores mencionados, se não eliminam por completo o caráter "racial" do problema da situação da maioria dos negros ou indígenas oprimidos, mostram-nos que atualmente o aspeto principal da questão é "económico e social" e tende a ser cada dia mais assim, na classe essencialmente explorada por elementos de todas as raças. As lutas desenvolvidas pelos indígenas e negros confirmam este ponto de vista.
Chegados a este ponto das constatações, coloca-se com toda clareza o caráter fundamentalmente económico e social do problema das raças na América Latina e o dever que todos os Partidos Comunistas têm de impedir os desvios interessados que as burguesias pretendem imprimir à solução desse problema, orientando-o num sentido exclusivamente racial, assim como têm o dever de acentuar o caráter económico e social das lutas das massas indígenas ou negras exploradas, destruindo os preconceitos raciais, fornecendo a essas mesmas massas uma clara consciência de classe, orientando-as para suas reivindicações concretas e revolucionárias, afastando-as de soluções utópicas e evidenciando sua identidade, com os proletários mestiços e brancos, como elementos de uma mesma classe produtora e explorada.
Assim, fica novamente esclarecido o pensamento revolucionário face às campanhas pela pretendida política atual dos indígenas e negros.
A III Internacional combateu, no que diz respeito à raça negra, essas campanhas que visavam a formação do "sionismo negro" na América Latina.
Da mesma forma, a constituição da raça indígena em estado autónomo não levaria, no momento atual, à ditadura do proletariado indígena, muito menos à formação de um estado indígena sem classes, como alguém afirmou pretensiosamente, mas sim à constituição de um Estado indígena burguês com todas as contradições internas e externas dos Estados burgueses.
Apenas o movimento revolucionário de classe das massas indígenas exploradas poderá permitir-lhes dar um sentido real à libertação da exploração da sua raça, favorecendo as possibilidades da sua autodeterminação política.
O problema indígena, na maioria dos casos, identifica-se com o problema da terra. A ignorância, o atraso e a miséria dos indígenas não são senão a consequência de sua servidão. O latifúndio feudal mantém a exploração e a dominação absoluta das massas indígenas pela classe proprietária. A luta dos índios contra os senhores de terra tem sido, invariavelmente, a defesa de suas terras contra a absorção e a expropriação. Existe, portanto, uma reivindicação indígena instintiva e profunda: a reivindicação da terra. Dar um caráter organizado, sistemático e definido a essa reivindicação é a tarefa em que a propaganda política e o movimento sindical têm o dever de cooperar ativamente.
As "comunidades", que sob a opressão mais dura demonstraram condições de resistência e persistência realmente surpreendentes, representam um fator natural de socialização da terra. O indígena possui arraigados hábitos de cooperação. Mesmo quando a propriedade comunitária se transforma em propriedade individual, não apenas na serra, mas também na costa, onde uma maior miscigenação atua contra os costumes indígenas, a cooperação persiste, e as tarefas pesadas são feitas em comum. A "comunidade" pode transformar-se em cooperativa com pouco esforço. A adjudicação das terras dos latifúndios às "comunidades", na serra, é a solução que reclama o problema agrícola. Na costa, onde a grande propriedade é também omnipotente, mas onde a propriedade comunitária desapareceu, tende-se inevitavelmente à individualização da propriedade do solo. Os "yanaconas", uma espécie de rendeiros duramente explorados, devem ser ajudados na sua luta contra os proprietários. A reivindicação natural desses "yanaconas" é a terra que trabalham. Nas fazendas diretamente exploradas por seus proprietários, por meio de trabalho à jorna, recrutados em parte na serra, e que nesta parte não têm vínculo com a terra, os termos da luta são diferentes. As reivindicações pelas quais é preciso lutar são: liberdade de organização, supressão do "enganche", aumento de salários, jornada de oito horas, cumprimento das leis de proteção do trabalho. Somente quando o trabalhador à jorna da fazenda tiver conquistado essas coisas, estará no caminho de sua emancipação definitiva.
É muito difícil que a propaganda sindical ou política penetre nas fazendas. Cada fazenda é, na costa, um feudo. Não é tolerada nenhuma associação que não aceite o patronato e a tutela dos proprietários e da administração, e, portanto, apenas encontramos associações desportivas ou recreativas. Mas, com o aumento do tráfego rodoviário, aos poucos, abre-se uma brecha nas barreiras que antes fechavam as fazendas a toda e qualquer propaganda. Daí a importância que a organização e a mobilização ativa dos trabalhadores dos transportes tem no desenvolvimento da mobilização de classe.
Quando os trabalhadores à jorna ou diaristas das fazendas souberem que contam com a solidariedade fraternal dos sindicatos e compreenderem o valor destes, facilmente despertará neles a vontade de luta que hoje lhes falta. Os núcleos de adeptos do trabalho sindical que se constituem, gradualmente, nas fazendas, terão a função de esclarecimento em qualquer reivindicação e de aproveitar a primeira oportunidade para dar forma à sua organização, dentro do que as circunstâncias permitam.
Para a progressiva educação ideológica das massas indígenas, a vanguarda operária dispõe daqueles elementos militantes da raça indígena que nas minas ou nos centros urbanos, especialmente nestes últimos, entram em contato com o movimento sindical, assimilam os seus princípios e se capacitam para desempenhar um papel na emancipação de sua raça. É frequente que trabalhadores provenientes do meio indígena a ele retornem temporária ou definitivamente. O idioma permite que cumpram eficazmente a missão de instrutores dos seus irmãos de raça e de classe. Os índios camponeses só entenderão verdadeiramente aqueles que falam na sua própria língua. Do branco e do mestiço, eles desconfiarão sempre; e o branco e o mestiço, por sua vez, terão muita dificuldade em desempenhar a árdua tarefa de ir para o meio indígena e de levar até ele a propaganda de classe.
Os métodos de autoeducação, a leitura regular dos órgãos do movimento sindical e revolucionário da América Latina, de seus opúsculos, etc., a correspondência com os companheiros militantes, serão os meios pelos quais esses elementos preencherão com êxito sua missão educadora.
A coordenação das comunidades indígenas por regiões, o socorro aos que sofrem perseguições da justiça ou da polícia (os gamonales processam por crimes comuns os indígenas que resistem ou a quem querem despojar das suas terras), a defesa da propriedade comunitária, a organização de pequenas bibliotecas e centros de estudos são atividades em que os adeptos indígenas do movimento sindical devem sempre ter uma atuação principal e dirigente, com o duplo objetivo de fornecer à orientação e à educação de classe dos indígenas diretrizes sérias e evitar a influência de elementos desorientadores (anarquistas, etc.).
No Peru, na Bolívia, a organização e a educação do proletariado mineiro são uma das questões que se colocam no imediato. Os centros mineiros constituem pontos onde a propaganda sindical pode fazer sentir vantajosamente a sua ascendência. Além de representarem importantes concentrações proletárias em si mesmos, com as condições conexas ao salariado, aproximam os trabalhadores manuais indígenas dos trabalhadores industriais, dos trabalhadores provenientes das cidades, que levam para esses centros o seu espírito e princípios de classe. Os indígenas das minas continuam, em grande medida, a ser camponeses; assim, o adepto que se conquistar entre eles é um elemento ganho na classe camponesa.
A publicação de jornais para os camponeses indígenas e de jornais para os mineiros é uma das necessidades da propaganda sindical em ambos os setores. Embora a raça indígena seja, na sua grande maioria, analfabeta esses jornais, através dos indígenas alfabetizados, exerceriam uma influência crescente sobre o proletariado das minas e do campo.
O trabalho, em todos os seus aspetos, será difícil, mas o seu progresso dependerá fundamentalmente da capacidade dos elementos que o realizam e da sua apreciação precisa e concreta das condições objetivas da questão indígena. O problema não é racial, mas sim social e económico; mas a raça tem o seu papel nele e na forma de o enfrentar. Por exemplo, apenas militantes oriundos do meio indígena podem, pela mentalidade e pela língua, obter uma ascendência eficaz e imediata sobre os seus companheiros.
Uma consciência revolucionária indígena pode demorar a formar-se, mas uma vez que o índio tenha adotado a ideia socialista, servi-la-á com uma disciplina, uma tenacidade e uma força que poucos proletários de outros meios poderão superar.
Da mesma forma, pode afirmar–se que à medida que o proletariado negro adquirir consciência de classe, através da luta sustentada para alcançar as suas reivindicações naturais de classe explorada, realizando-as através da ação revolucionária em união com o proletariado de outras raças, nessa mesma medida os trabalhadores negros se vão libertando efetivamente dos fatores que os oprimem como raça 'inferior'.
Encarado deste modo o problema e apresentada assim a sua solução, acredito que as raças na América Latina terão um papel extremamente importante no movimento revolucionário que, liderado pelo proletariado, chegará a estabelecer em toda a América Latina o governo operário e camponês, cooperando com o proletariado russo na obra de emancipação do proletariado da opressão burguesa mundial.
Com base nessas conclusões, acredito que se podem e devem apresentar da seguinte forma, ou de forma similar elaborada pelo Congresso, as reivindicações dos trabalhadores indígenas ou negros explorados:
I.- Luta pela terra para quem a trabalha, expropriada sem indenização.
a) Latifúndios de tipo primitivo: fragmentação e ocupação pelas comunidades vizinhas e pelos peões agrícolas que as cultivam, possivelmente organizados de forma comunitária ou coletiva.
b) Latifúndios de tipo industrializado: ocupação pelos trabalhadores agrícolas que os trabalham, organizados de forma coletiva.
c) Os pequenos proprietários que cultivam suas terras permanecerão em posse das mesmas.
II.- Formação de organismos específicos:
Sindicatos, ligas camponesas, blocos operários e camponeses, conexão entre eles, superando os preconceitos raciais, com as organizações urbanas.
Luta do proletariado e dos camponeses indígenas ou negros pelas mesmas reivindicações que constituem o objetivo de seus irmãos de classe pertencentes a outras raças.
Armamento dos trabalhadores e camponeses para conquistar e defender suas reivindicações.
III.- Revogação de leis onerosas para o indígena ou para o negro: sistemas feudais esclavagistas, trabalho forçado para a construção de estradas, recrutamento militar, etc.
Apenas a luta dos indígenas, proletários e camponeses, em estreita aliança com o proletariado mestiço e branco contra o regime feudal e capitalista, pode permitir o livre desenvolvimento das características raciais indígenas (especialmente das instituições de tendências coletivistas) e poderá criar a ligação entre os indígenas de diferentes países, para lá das fronteiras atuais que dividem antigas entidades raciais, conduzindo-os à autonomia política de sua raça.
Notas de rodapé:
(1) “O problema das raças na América Latina” inclui duas partes claramente diferenciáveis: a primeira “Abordagem da Questão” (passagem entre as páginas 21 e 46 desta edição) inteiramente escrita por José Carlos Mariátegui; e a segunda que começa em “II. A importância do problema racial” e vai até ao fim da tese (páginas16 a 61) para cuja redação, sobre o esquema inicial de Mariátegui, o doutor Hugo Pesca contribui com a maior parte do texto.
A tese, como um todo, foi apresentada e discutida na Primeira Conferência Comunista Latino-Americana realizada em Buenos Aires em junho de 1929, e reproduzida no livro "O Movimento Revolucionário Latino-Americano". Atas da Primeira Conferência Comunista Latino-Americana (páginas 263 a 291), editado pela Revista "La Correspondencia Sudamericana" de Buenos Aires, publicação oficial do Secretariado Sudamericano da Internacional Comunista. Esta apresentação conjunta da tese reproduz apenas um texto da primeira parte (I. Abordagem da questão) e intercala na segunda parte (II. Importância do problema racial) os dois terços restantes, incorporados nas seções escritas por Hugo Pesca, que por sua vez incluiu alguns parágrafos de trabalhos relacionados trazidos por delegados de outros países para a Conferência. Para manter a unidade geral da segunda parte, conservámos nessa compilação esta forma de apresentação, que repete parcialmente a primeira parte no contexto reestruturado por Hugo Pesca (exceto pelo capítulo V. Situação económico-social da população indígena do Peru, que reproduz textualmente a respetiva secção da Primeira Parte, conforme indicado no local apropriado e, por isso, foi omitido).
A primeira parte da tese, que trata quase exclusivamente do problema indígena peruano, foi apresentada na íntegra no Congresso Constituinte da Confederação Sindical Latino-Americana realizado em Montevidéu em maio de 1929 e reproduzida no livro "Sob a Bandeira da C.S.L.A." (Imprenta La Linotipo, Montevidéu; 1929, páginas 117 a 159) com o título "O Problema Indígena". Esta mesma primeira parte foi reproduzida na AMAUTA, Nº 25 (Julho-Agosto de 1929) com o título "O Problema Indígena" na seção "Panorama Móvel". Dessa última fonte, tomamos a primeira parte (I. Abordagem da questão), considerando que é a única revisada pelo autor. A segunda parte (a partir do II. Importância do problema racial) da mencionada versão da Primeira Conferência Comunista Latino-Americana. Ricardo Martínez de la Torre, na sua importante revisão documental contida nos 4 volumes de "Apuntes para la Interpretación Marxista de Historia Social del Perú" (Empresa Editora Peruana, Lima, 1947-1919), reproduz a tese completa no Capítulo Oitavo do Tomo II ("Como organizamos el partido", páginas 434 a 466); e a primeira parte em "La Confederación General de Trabajadores del Perú" (Tomos III, páginas 16 a 29).
A tese sobre "O problema das raças na América Latina" foi discutida na sessão de 8 de junho. O doutor Hugo Pesce, em nome do grupo socialista peruano e representante pessoal de José Carlos Mariátegui, abriu a reunião com as seguintes palavras: "Companheiros: É a primeira vez que um Congresso Internacional dos Partidos Comunistas dedica sua atenção de forma tão ampla e específica ao problema racial na América Latina.
A tarefa do nosso congresso, no que se refere a este ponto, consiste em estudar objetivamente a realidade e abordar, conforme os métodos marxistas, os problemas que ela encerra, para podermos chegar a uma solução revolucionária através de uma tática clara e eficiente, estabelecida para este caso particular de acordo com a linha geral da Internacional Comunista.
Os elementos que nos permitem conhecer a realidade em todos os aspetos da questão racial são principalmente de ordem histórica e estatística. Ambos foram insuficientemente estudados e dolosamente adulterados pela crítica burguesa de todas as épocas e pelo criminoso desinteresse dos governos capitalistas.
Só nos últimos anos, testemunhamos o surgimento de estudos diligentes e imparciais destinados a revelar autenticamente os elementos que constituem entre nós o problema racial. Apenas agora começaram a surgir trabalhos sérios de crítica marxista que realizam um estudo minucioso da realidade desses países, analisando o seu processo económico, político, histórico, étnico, prescindindo de moldes escolásticos e académicos, e colocando os problemas atuais em relação com a realidade fundamental da luta de classes. Mas esse trabalho acabou de começar e refere-se apenas a alguns países. Para a maioria dos países da América Latina, os companheiros delegados dos respetivos Partidos depararam-se com material insuficiente ou falsificado: assim, se explica por que as contribuições informativas para esta Conferência inevitavelmente mostraram um conteúdo escasso e, em alguns casos, uma orientação confusa em relação ao problema das raças.
Este relatório, destinado a fornecer material e orientação para a discussão no Congresso, foi elaborado utilizando as contribuições dos companheiros de todas as delegações; acredito, portanto, que refletirá em diferentes medidas as aquisições e as deficiências assinaladas, proporcionalmente ao grau de sua relevância em cada país da América Latina. Nota dos Editores. (retornar ao texto)
(2) Nota do tradutor – gamonal é um cacique branco, normalmente um latifundiário, que domina uma aldeia uma zona rural. Age como um senhor feudal. (retornar ao texto)
(3) Nota do tradutor - Termo pejorativo e ofensivo usado pelos patrões anglo-saxónicos para designar os trabalhadores imigrantes asiáticos (chineses, indianos ou de outras nacionalidades), usualmente trabalhadores não qualificados que recebiam baixos-salários. (retornar ao texto)
(4) Nota do tradutor – bebida fermentada de cereais. A chicha de jora é uma espécie de cerveja feita à base de arroz. Durante o Império Inca era a bebida mais popular assim se tendo mantido mesmo depois da queda deste. (retornar ao texto)
(5) Nota do tradutor: as mitas coloniais foram um brutal e iniquo sistema de trabalho forçado imposto aos índios pelas autoridades espanholas em muitas zonas da América Latina. Este sistema implicava a concentração dos trabalhadores em locais de trabalho escolhidos pelos ocupantes. (retornar ao texto)
(6) Nota do tradutor: empresa de capitais norte-americanos, fundada em 1902, dominada pelo banco J.P. Morgan. Foi a primeira empresa estrangeira a explorar uma mina no Peru, dando origem a um movimento que levou a exploração mineira deste país para a mão de empresas estrangeiras. Foi nacionalizada em 1973. (retornar ao texto)
(7) Nota do tradutor: Morococha: Distrito na Região de Jenín no Peru. Aqui se localiza uma mina de cobre que continua em atividade. Outros produtos mineiros desta região incluem a prata, o zinco, o chumbo e o ouro. A Catástrofe deu-se dias depois de os trabalhadores terem alertado a empresa americana – Cerro de Pasco Copper Corporation – para o surgimento de infiltrações de água e lama. Apesar de alertada a direção técnica da mina não tomou qualquer medida de proteção dos trabalhadores. Este alerta dos trabalhadores intensificou-se quando uma chuva de água e lama matou o trabalhador Máximo Lopes. A empresa continuou sem tomar providências. E a 5 de Dezembro de 1928 deu-se o afundamento da Lagoa de Morococha. O afundamento inundou a mina matando dezenas de operários. Ficou demonstrado que o afundamento da lagoa foi causada por erros técnicos de traçado cometidos pela empresa americana que abriu galerias por baixo da lagoa. A empresa recusou qualquer responsabilidade no sucedido oferecendo-se apenas para pagar 50 soles à família de cada operário morto. Os feridos foram deixados à sua sorte. José Carlos Mariátegui deu enorme atenção a esta catástrofe/crime e escreveu vários textos sobre ela incluindo “As condições de trabalho nas minas”. (retornar ao texto)
(8) Nota do tradutor: Cotabambas é um distrito da região de Apurimac no Sul do Peru. Rica em matérias-primas como o chumbo, a prata, o zinco e o cobre. Continua atualmente a indústria mineira a explorar o cobre nomeadamente no complexo de Las Bambas. (retornar ao texto)
(9) Nota do tradutor: A “chancaca”, semelhante à raspadura açoriana, é um doce feito à base de mel de cana-de-açúcar. (retornar ao texto)
(10) Nota do tradutor: Crimes horríveis cometidos contra os índios do grupo Ocainas. Em Setembro de 1903, foram torturados e assassinados dezenas de índios, alguns queimados vivos, a mando dos donos da empresa Larranãga, Arana e Companhia: Benjamín Larrañaga e o seu filho Rafael. Após o assassinato dos índios, os criminosos fizeram um banquete e um baile. Este não foi, contudo, um crime isolado. No mesmo mês e na mesma região foram assassinados a golpe de machado e a tiro 30 índios dos grupos Puineses e Renicueses na plantação de “La Chorrera”. Neste assassinato em massa também esteve envolvido Rafael Larrañaga. (retornar ao texto)
(11) Nota do tradutor: Teodomiro Gutiérrez Cuevas, major do exército peruano, herói da Batalha de Miraflores na Guerra do Pacífico (1879-1884). Como político pertenceu ao Partido Constitucional e ocupou várias posições nos governos provinciais. Depois do golpe que depôs o Presidente Billinghurst exilou-se na cidade chilena de Valparaíso. Adere as ideias anarquistas e regressa ao Perú em 1914 onde adota o nome quéchua de Rumi Maqui, e declara-se General y Supremo Director de los pueblos y ejército indígenas del Estado Federal del Tahuantinsuyo lançando uma rebelião com o objetivo de restabelecer o Império Inca. A rebelião foi derrotada e Rumi Maqui preso no final de 1916. Julgado foi condenado por traição. Em 1917 escapa da cadeia e refugia-se na Bolívia. Publicou A Luta onde explica as razões da sua rebelião. (retornar ao texto)
(12) Nota do tradutor: Rumi Maqui significa em quéchua Mão de Pedra. (retornar ao texto)
(13) Nota do tradutor: Guillermo Billinghurst (1851-1915) foi Presidente do Peru no curto período entre 24 de Setembro de 1912 e 4 de fevereiro de 1914. Político progressista propondo legislação social avançada. O seu governo foi derrubado por um golpe de Estado liderado pelo Coronel Óscar Benavides. Foi obrigado a exilar-se no Chile onde morreu pouco depois em junho de 1915. (retornar ao texto)
(14) Nota de Tradutor: A sublevação deu-se após anos de queixas dos índios relativamente à exploração a que estavam sujeitos. Formou-se o Comité Central Pró Direitos dos Indígenas Tahuantinsuyo fundado em 1919. A revolta de Huancané chegou a proclamar a República de Aymara Tahuantisuyana. com capital na cidade de Huancho Lima. Na nova entidade política adotou-se o bilinguismo na educação que foi estendida a grande parte da população. No entanto a 13 de Dezembro de 1923 o governo enviou um forte contingente militar para a região que chacinou mais de 2.000 camponeses submetendo os insurretos. Entre os líderes insurretos contam-se Evaristo Corimayhua, Mariano Luque, Pedro Nina Cutipa, Melchor Cutipa, Antonio Francisco Luque, Mariano Mercedes Pacco y Rita Puma. Alguns dos heróis desta sublevação tinham sido alunos de José Carlos Mariátegui. (retornar ao texto)
(15) Nota do tradutor. Amauta é uma palavra em quéchua que significa “sábio” e era o título dado aos professores no Império Inca. Aqui refere-se a uma revista publicada pelo Partido Comunista Peruano (PCP-Unidade) sob a liderança de José Carlos Mariátegui. Hoje o PCP-Unidade refere-se, muitas vezes, ao seu fundador como Amauta José Carlos Mariátegui. Também se reivindica do legado de Mariátegui o Partido Comunista do Peru-Patria Roja. (retornar ao texto)
(16) Nota do tradutor. Luis E. Valcárce (1891-1987) foi um intelectual peruano que participou ativamente no movimento indigenista estudando o Império Inca e apoiando e divulgando a cultura andina. Dirigiu o Museu Bolivariano de Lima e depois o Museu Nacional de Arqueologia, Antropologia e História do Peru. Recebeu diversas condecorações peruanas e estrangeiras. (retornar ao texto)
(17) Nota do tradutor: os yanaconas ou yanakuna eram um grupo social no Império Inca, constituído por pessoas que mantinham um laço de servidão com o Imperador. Representavam cerca de 3% da população. Apesar de terem a sua família, a sua casa e cultivarem as terras eram obrigadas a certas tarefas e trabalhos nas terras do seu senhor. José Carlos Mariaátegui refere-se, obviamente, não aos yanaconas do Império Inca mas aos seus descendentes. (retornar ao texto)
(18) Nota do tradutor: Louis Marie Ernest Guilaine (n. 1861), jornalista francês redator principal de periódicos como “Le Brésil” e “La Gazzette du Brésil”. (retornar ao texto)
(19) Nota do tradutor: povo índio de língua chibcha que se organizava em duas confederações cada uma delas ocupando uma vasta área e liderada por um soberano. Quando os espanhois chegaram à América estima-se que seriam cerca de 8 milhões de pessoas. O colonialismo e o neocolonialismo levaram a cabo o extermínio das populações indígenas, sendo que hoje restam cerca de 15.000 índios Chibcha na Colômbia. (retornar ao texto)
(20) Nota do tradutor: muysca ou muisca é outro nome dado aos índios Chibcha. (retornar ao texto)
(21) Nota do tradutor: povo índio demominado Campa, Kampa ou Achanincas ou Axanincas que vive na região de confluência do Peru, Bolívia e Brasil. Restam hoje cerca de 100 mil pessoas deste povo a grande maioria dos quais vive no Peru. (retornar ao texto)
(22) Nota do tradutor: povo índio que ocupava uma vasta região do que é hoje a Argentina, o Brasil, a Bolívia, o Uruguai e o Paraguai. Tem uma língua próprio o guarani. Apesar da dispersão geográfica seriam cerca de 400.000 na altura em que os europeus entraram em contacto com eles. Os Jesuítas tentaram converte-los ao cristianismo católico e encerra-los no que os Jesuítas chamaram Missões ou reduções. Em 1756 as forças conjuntas de Portugal e Espanha atacaram a aliança de sete reduções guarani, das quais os Jesuítas já se tinham retirado, no que ficou conhecido por Guerra Guaranítica, no curso da qual milhares de índios choram chacinados. Os portugueses foram liderados por Freire de Andrade. Depois do assassinato do líder índio, Sepé Tiaraju, e depois da sangrenta batalha de Caiboaté os índios Guarani foram forçados a render-se. Cerca de metade da população Guarani das 7 missões foi morta pelos invasores. A língua Guarani é língua oficial em vários países entre os quais o Paraguai, a Bolívia, a Argentina e o Estado do Mato Grosso no Brasil. Estima-se que 90% da população do Paraguai fale guarani. O total da população Guarani é atualmente de cerca de 5 milhões de pessoas. (retornar ao texto)
(23) Nota do tradutor: povo índio que ocupava parte da Argentina e territórios hoje do Uruguai e do Brasil. Falavam uma língua própria entretanto extinta por ação dos colonos espanhóis e portugueses. Um povo de guerreiros que nunca se submeteu sem dar luta. Em 1831 o governo do Uruguai, chefiado por Fructuoso Rivera, levou a cabo o Massacre de Salsipuedes em que foram mortos muitos índios charruas e outros aprisionados e vendidos como escravos. Estão hoje reduzidos a menos de 200.000 pessoas. (retornar ao texto)
(24) Nota do tradutor: termo pejorativo usado no Brasil para identificar mestiços fruto de uniões entre brancos e índios. Na sua origem a palavra designava escravo. (retornar ao texto)
(25) Nota do tradutor: Curacas, em quéchua kuraq significa o mais velho, ou o filho primogénito, eram no seio do Império Inca chefes político-administrativos responsáveis por um ailu. Ailu era uma comunidade local que agregava um conjunto de família que tinham um antepassado comum e viviam no mesmo local. (retornar ao texto)
(26) Nota do tradutor: ayllu, palavra quéchua, refere-se a uma comunidade que trabalha uma terra comum a todos os seus membros. Mais tarde o ayllu converteu-se na unidade administrativa base do Império Inca. (retornar ao texto)
(27) Nota do tradutor: Mitas ou turnos era uma forma de exploração da mão-de-obra indígena que previa a concentração dos camponeses em determinadas localidades. Essas pessoas eram depois obrigadas a trabalhar para os colonos espanhóis, nomeadamente nas minas. (retornar ao texto)
(28) Nota do tradutor: Ponguaje era um tributo de caráter semifeudal imposto pelos conquistadores espanhóis e pago pelos camponeses índios. (retornar ao texto)
(29) Nota do tradutor: Curacazgo ou Reino de Cuzco foi o predecessor do grande Império Inca. (retornar ao texto)
(30) Nota do tradutor: IC são iniciais de Internacional Comunista. Este Congresso realizou-se em 1928. (retornar ao texto)
(31) Nota dos Editores. Este capítulo aparece integralmente em 1. Situação socioeconómica da população indígena do Peru (pags 34 a 39 da presente edição). (retornar ao texto)
(32) Nota do Tradutor. Mamelucos é a designação dos mestiços de branco e índio. (retornar ao texto)