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Primeira Edição: MANDEL, Ernest. Marx, the present crisis and the future of labour. Socialist Register, Londres, v. 22, p. 436-454, jan. 1985.
Tradução: Henrique S. M. Darlim a partir da versão disponível em https://www.marxists.org/archive/mandel/1985/xx/future.html
HTML: Fernando Araújo.
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Por muitos anos a tese política de que a emancipação humana não pode mais depender do ‘proletariado’, a classe do trabalho assalariado, tem sido cada vez mais alicerçada em argumentos econômicos. Alguns pontuam que o trabalho assalariado está decaindo rapidamente de sua posição como setor principal da população ativa, através de automação, robotização, desemprego em massa, crescimento de pequenas firmas de negócios independentes etc (Gorz, Dahrendorf, Daniel Bell, Hobsbawm).(1) Outros afirmam que não há futuro para a humanidade (e, portanto, para a emancipação humana) enquanto a tecnologia industrial ‘clássica’ e daí o trabalho assalariado ‘clássico’ se mantiverem em seu presente nível, já que tal situação levaria à completa destruição da balança ecológica (Ilitch, Bahro, Gorz).(2) A crise atual não é vista, então, como uma típica crise de superprodução e superacumulação. É vista como uma mudança fundamental na estrutura da economia capitalista internacional, com uma alteração fundamental a longo prazo no peso, na coesão e na dinâmica do trabalho assalariado, às custas dessa classe, como uma ‘crise do sistema industrial’. Essa hipótese pode ser verificada empiricamente? Se não, qual o significado e as potenciais consequências, a longo prazo, do crescimento do desemprego estrutural, o qual, por si só, é um fenômeno inegável? Se sim, qual a explicação do suposto ‘declínio da classe trabalhadora’ como um fenômeno objetivo? Quais são suas potenciais consequências econômicas?
Empiricamente, a tendência básica verificável estatisticamente é o crescimento do trabalho assalariado a nível mundial, em todos os continentes, e não seu relativo ou absoluto declínio. Ao olhar para as estatísticas da OIT, é possível visualizar isso imediatamente. Quando digo tendência básica, me refiro, claro, não às variações trimestrais ou semestrais, mas às médias de cinco ou dez anos. Mesmo desde o início da atual depressão econômica, a partir de 1968 ou de 1973, essa permanece sendo a tendência predominante e sua verificação contém uma série de precisões conceituais:
Isso significa, entre outras coisas, que o trabalho assalariado na agricultura (e.g., Índia) e nas assim chamadas ‘indústrias de serviço’ é trabalho assalariado na mesma proporção que a mineração ou a indústria de manufatura o são. Com esses critérios, a evidência estatística de que estamos ainda testemunhando crescimento e não declínio do ‘proletariado mundial’ é inegável. O número total de assalariados, descontando os agricultores, no mundo hoje em dia é algo em torno de 700 ou 800 milhões, quantia nunca atingida no passado; incluindo os agricultores, esse número chega a 1 bilhão. Isso se confirma até mesmo nos países imperialistas, a partir dos seguintes dados:
Mudanças no emprego anual civil de assalariados (média anual 1973-1980) | |
Noruega | +2,5% |
Portugal | +2,5% |
Estados Unidos | +2,2% |
Austrália | +1,1% |
Itália | +1,1% |
Dinamarca | +0,8% |
Japão | +0,8% |
Áustria | +0,3% |
França | +0,2% |
Bélgica | +0,0% |
Reino Unido | -0,1% |
Alemanha Ocidental | -0,2% |
(OIT, Le Travail dans le Monde, Genebra, 1984) |
Aqui se mantém o problema do declínio do trabalho assalariado empregado nas maiores fábricas capitalistas, i.e., da relativa desconcentração do trabalho acompanhando maior concentração e centralização do capital. Essa tem sido a tendência, desde o início da atual crise, nos países imperialistas; não nos países semi-industrializados e não numa escala global, em que a concentração de trabalho continua seu avanço. Se nas metrópoles isso não passa dum fenômeno conjuntural, como o declínio relativo dos assim chamados ramos industriais ‘antigos’ antes do aparecimento de plantas de larga escala nos ‘novos’ ramos, ou se isso se tornou uma tendência de longo prazo, ainda não sabemos. Nós teremos que esperar pelo menos até os anos 1990 para delinear conclusões definitivas sobre o assunto.
O impacto a curto e a médio prazo da automação ou robotização integral nos níveis de emprego total (o número de assalariados empregados) tem sido praticamente nulo até o início da década de 1970 (levando em conta trocas de emprego entre os ramos, que são certamente muito reais), permanecendo modesto nos dias de hoje e para o futuro visível. Estudos recentes da OCDE preveem que entre agora [1985] e os anos 1990, a robotização terá cortado algo em torno de 4% a 8% de todos os empregos existentes no Ocidente (e entre 2% e 5% dos empregos existentes em escala mundial).(3) Esses estudos não informam, porém, quantos novos empregos serão criados nos ramos industriais produzindo robôs e máquinas automatizadas, e as previsões variam radicalmente entre os ‘otimistas’ e os ‘pessimistas’ nesse sentido. Mesmo se seguirmos as previsões mais pessimistas, segundo as quais o número de novos empregos criados nessas indústrias será desprezível, o número de trabalhadores empregados ainda constituirá a maioria esmagadora da população ativa até o fim do século (entre 80% e 90% da população ocidental, da Europa Oriental e da URSS).
Então não há base para falar em ‘declínio do proletariado’ num sentido objetivo da palavra.(4)
Isso não significa, por sua vez, que se deve subestimar o potencial perigoso do desemprego em massa duradouro, que, basicamente, possui duas causas nos países capitalistas:
Ademais, temos que levar em consideração os efeitos precisos da robotização em ramos específicos da indústria que foram fundamentais para a organização e para a força da classe trabalhadora e do movimento dos trabalhadores, e.g., a indústria automobilística nos Estados Unidos e na Europa Ocidental.(5) Aqui os prospectos são ameaçadores e deveriam ser entendidos antes que seja tarde demais (como tem sido infelizmente o caso nas indústrias de aço e na construção naval).
As consequências do crescimento do desemprego estrutural de longo prazo (no Ocidente: de 10 milhões em 1970 a 35 milhões atualmente e 40 milhões nos meados da década de 1980) são uma fragmentação progressiva da classe trabalhadora e o perigo da desmoralização, já visível em certos setores da juventude proletária (e.g., as juventudes negra e hispanofalante nos EUA e em certas regiões da Grã Bretanha)(6), a qual nunca trabalhou depois de deixar a escola e está sob risco de não encontrar emprego.
Socialistas japoneses(7) tentaram estudar os efeitos das novas tecnologias especialmente na indústria automobilística. Acentuando os aspectos qualitativos das mudanças (perda de habilidades, aumento de acidentes, surgimento de novas camadas de trabalhadores e de habilidades etc), os autores encontraram uma redução de cerca de 10% dos trabalhadores do chão de fábrica na planta automobilística mais ‘robotizada’ do Japão, a planta da Nissan na cidade de Murayama, entre setembro de 1974 e janeiro de 1982. Contudo, a redução foi acompanhada de pequenos aumentos na quantidade de colarinhos-brancos. Até mesmo os ‘sindicatos reformistas’ parecem preocupados com isso, não obstante o ‘emprego vitalício’ ainda ser a regra no Japão (Japan Economic Journal, 21 de fevereiro de 1984).
A única resposta séria ao crescimento do desemprego estrutural massivo durante a atual depressão é uma redução internacional radical da semana de trabalho sem cortes no pagamento semanal: a introdução imediata da semana de 35 horas. Isso significa a distribuição da carga de trabalho existente entre todo o proletariado, sem perda de ganhos (12% do desemprego poderia ser suprimido se todo trabalhador trabalhasse semanalmente 12% a menos), com contratação adicional compulsória e a reunificação das classes trabalhadoras destruídas pelo desemprego e pelo medo do desemprego. Esse deveria ser o objetivo estratégico central a curto prazo de todo o movimento internacional dos trabalhadores, a fim de prevenir que a correlação de forças entre o capital e o trabalho mude gravemente às custas do trabalho. A perspectiva de longo prazo é a semana de trabalho de 30 horas.
Todas as considerações sobre ‘competitividade nacional’ e ‘lucratividade empresarial’ devem ser abandonadas a favor dessa prioridade social absoluta. É possível provar com facilidade que duma perspectiva global e internacional — não da perspectiva duma única empresa — essa é também a solução mais racional economicamente; mas, claro, a ‘racionalidade’ capitalista é baseada na visão da empresa individual, i.e., uma racionalidade parcial, que leva a mais e mais irracionalidade no geral. Os riscos políticos desastrosos do desemprego massivo, tanto nacional quanto internacionalmente, não precisam ser acentuados. Marx foi inequivocamente claro em ambas as questões: os efeitos benéficos duma redução radical da semana de trabalho sem redução de pagamento; e a necessidade da solidariedade internacional do trabalho substituir a solidariedade ‘nacional’ (ou regional, local, setorial, até mesmo dentro da empresa) entre trabalhadores e capitalistas.
É suficiente citar o discurso de Marx (Inauguraladresse) à Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional):
A experiência passada mostra até que ponto negligenciar os vínculos fraternais que deveriam unir os trabalhadores de diferentes países, inspirando-os a permanecer juntos em seus esforços emancipatórios é sempre punida pela falha conjunta em suas tentativas desconexas (Marx-Engels-Werke, vol. 16, pp. 12-13, tradução minha — E.M.).
E em seu relatório quadrimestral das atividades do Conselho Geral da AIT, Marx escreveu:
Mesmo a organização nacional facilmente falha, como resultado da falta de organização para além das fronteiras nacionais, já que todos os países competem no mercado mundial e se influenciam mutuamente. Somente uma união internacional da classe trabalhadora pode garantir sua vitória final (MEW, vol. 16, p. 322, tradução minha — E.M.).
De maneira ainda mais categórica, Marx declarou nas Instruções para os Delegados do Conselho Geral Provisório da Primeira Internacional, no seu congresso de 1867 em Genebra:
Nós afirmamos que a limitação do dia de trabalho é uma precondição, sem a qual todas as outras ações de progresso e emancipação deverão falhar (MEW, vol. 16, p. 192, tradução minha — E.M.).(8)
O embate entre as forças que vão em direção ao desemprego estrutural duradouro, por um lado, e à redução radical da semana de trabalho, por outro lado, estão intimamente relacionadas às duas forças motrizes da sociedade burguesa: por um lado, o impulso do capital em elevar a produção do mais-valor relativo, i.e, o desenvolvimento das forças produtivas ‘objetivas’ (objetivadas, materializadas), maquinário, sistemas de máquinas, sistemas semiautomatizados, automação integral, robôs; por outro, a contrapressão da luta de classes entre capital e trabalho assalariado. Uma das maiores conquistas analíticas de Marx consiste precisamente em indicar a inter-relação dialética (não mecânica, como era a de Malthus, Ricardo e Lassalle) entre as duas.
O aumento da mecanização exerce um efeito contraditório no trabalho. Reduz as habilidades, suprime o emprego, diminui os salários através do aumento do exército industrial de reserva, efeitos que podem ser balanceados parcialmente pela intensificação da acumulação de capital (‘crescimento econômico’), migração internacional do trabalho etc. Mas, equivalentemente, o aumento da mecanização da produção tende a aumentar o esforço do trabalho (físico e/ou mental) e, portanto, realiza uma pressão objetiva em direção à redução da semana de trabalho. Esse segundo efeito tem sido negligenciado pelos militantes da classe trabalhadora, incluindo socialistas e marxistas. É, porém, bastante enfatizado por Marx.(9)
O capital, entretanto, não vai garantir a indispensável redução da semana de trabalho por pura bondade ou gentileza; isso só será feito após um intenso embate entre o capital e o trabalho.
Revoltas trabalhistas — como entendidas por Marx —, por sua vez, só podem ser (temporariamente) bem-sucedidas sob correlações de forças relativamente favoráveis, criadas pelos efeitos do emprego e da organização do trabalho na fase que antecede a depressão econômica e o pico de desemprego. E, especificamente ao fim dos anos 1970 e início dos 1980, o proletariado internacional (especialmente o europeu ocidental) entrou no crescente confronto com o capital acerca do problema da ‘austeridade vs. o encurtamento da semana de trabalho sem redução de pagamento ou de auxílios sociais’, com um acréscimo significante de força numérica, organizacional e militante acumulada durante os anos 1950, 1960 e início dos 1970, i.e., durante o período do ‘boom’ do pós-guerra. É por essa razão que a resistência da classe trabalhadora contra a ofensiva da austeridade irá crescer, espalhando-se, tornando-se periodicamente explosiva e tendendo a se generalizar nacional e internacionalmente. A mesma razão pela qual a classe capitalista não achará fácil implementar sua própria ‘solução’ histórica para a depressão atual: precisamente porque a força orgânica da classe trabalhadora (do trabalho assalariado) é gigantesca desde o princípio, desde a primeira fase dessa depressão, o resultado dessa ofensiva intensificada do capital contra o trabalho é cercado de incerteza. A probabilidade que o proletariado sofra uma derrota esmagadora como na Alemanha em 1933, na Espanha em 1939 ou na França em 1940, em qualquer um dos maiores países capitalistas num futuro próximo é limitada.
Isso não significa que uma solução proletária-socialista da crise esteja certa ou já seja visível no horizonte. O principal obstáculo para tal crise é subjetivo e não objetivo: o nível de consciência do trabalho assalariado e a capacidade de sua liderança são, ainda, absolutamente inadequados; o que expressa, contudo, que pelo menos a possibilidade objetiva duma solução da classe trabalhadora socialista para a crise da humanidade permanece conosco. O resto depende dos socialistas, de sua atenção à gravidade e aos riscos contidos na crise (a sobrevivência física da humanidade agora está em jogo); à impossibilidade de resolvê-la dentro da estrutura da economia de mercado generalizada, i.e., da ‘produção do valor de troca’, i.e., do capitalismo; à necessidade de desenvolver um programa de ação anticapitalista, começando pelas preocupações e carências reais e existentes dos trabalhadores reais e existentes, em todas as suas variedades; à necessidade de transformar essa poderosa força num aríete para fazer tremer as fortalezas do capital; à necessidade de se organizar para derrubar o capitalismo.
Agora, num exercício hipotético, pensemos que tudo isso será refutado empiricamente nas futuras décadas; que tanto por razões econômicas (robotização) quanto políticas, que dizem que subestimamos, o trabalho assalariado decrescerá consideravelmente entre agora e o fim do século XX; que, portanto, o proletariado já terá iniciado seu declínio objetivamente (tanto em número quanto em coesão interna) e que sua capacidade objetiva de transformação social, num sentido socialista, também diminuirá num ritmo mais ou menos constante. Nesse caso, não se deve dizer ‘adeus’ somente para o proletariado. Deve-se dizer também:
Uma das teses básicas de Marx — contra a qual nenhuma evidência pode se opor, baseando-se nas experiências dos últimos cem anos — é de que somente a classe do trabalho assalariado adquire, pelo sua posição na produção capitalista e na sociedade burguesa, estas ‘qualidades positivas’, i.e., a capacidade de auto-organização massiva, solidariedade e cooperação: precondições para uma solução socialista das crises humanas. Tais qualidades não criam automaticamente o papel de emancipação revolucionária do proletariado; elas levam somente ao potencial social dessa natureza. Contudo, nenhuma outra classe ou camada social possui potencial semelhante, nem camponeses terceiro-mundistas, nem intelectuais revolucionários e certamente nem tecnocratas e funcionários. Outras classes e camadas sociais possuem um grande potencial revolucionário anticapitalista (anti-imperialista) ‘negativo’, e.g., o campesinato nos países subdesenvolvidos; mas a História tem provado constantemente que não possuem o potencial ‘positivo’, dirigido à organização socialista consciente. Por outro lado, se uma substituição massiva do trabalho ‘vivo’ pelo ‘morto’ (robôs) levar ao declínio absoluto do trabalho assalariado, não é somente o futuro do proletariado e do socialismo que está ameaçado. É a própria sobrevivência da economia capitalista de mercado que se torna cada vez mais impossível. Isso se expressa claramente, até de jeito um tanto simplificado, pelo clássico diálogo entre um gerente de fábrica e um militante sindical:
“O que será de seu poder sindical quando todos os trabalhadores forem substituídos por robôs?”
“O que será de seus lucros, nesse caso? Seus lucros se efetivam através da venda de seus bens; infelizmente, robôs não os compram.”
Marx previu tal desenvolvimento há mais de 125 anos, em seus Grundrisse (fato que confirma acidentalmente o argumento que fiz inúmeras vezes: longe de ser um ‘economista do século XIX’, Marx era um visionário que detectou tendências que só viriam a existir ao fim do século XX). Ele escreve:
Com o desenvolvimento da grande indústria, a criação da riqueza real vem a depender menos do tempo de trabalho e da quantidade de trabalho empregada do que do poder dos agentes em movimento durante o tempo de trabalho, cuja ‘poderosa eficiência’ é, por sua vez, desproporcional ao tempo de trabalho direto gasto em sua produção, porque depende primeiramente do estado geral da ciência e do progresso tecnológico, ou da aplicação dessa ciência à produção… O trabalho não parece mais fazer tanta parte do processo produtivo; em vez disso, o ser humano relaciona-se ao próprio processo de produção mais como vigilante ou regulador. (Grundrisse, Pelican Marx Library, pp. 704-5)
E novamente:
O roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual tem base a riqueza atual, aparenta ter um fundamento miserável em face dessa nova forma, criada pela própria indústria de larga escala. Assim que o trabalho em sua forma direta cessa de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho cessa — e deve cessar — de ser sua medida; portanto, o valor de troca [deve cessar de ser a medida] do valor de uso. O mais-trabalho da massa deixa de ser a condição para o desenvolvimento da riqueza geral, bem como o não-trabalho da minoria, para o desenvolvimento das capacidades gerais da cabeça humana. Com isso, a produção baseada no valor de troca colapsa… (ibid, p. 705)
Obviamente, tal desenvolvimento não pode se desdobrar integralmente sob o capitalismo, porque precisamente sob ele o crescimento econômico, o investimento, o desenvolvimento de maquinário (incluindo robôs) permanecem subordinados à acumulação de capital, i.e., à produção e à realização do mais-valor, i.e., aos lucros de empresas individuais: os lucros esperados e os lucros reais. Como já indiquei em Capitalismo Tardio, há mais de dez anos(10), a automação integral, o desenvolvimento do robotismo numa grande escala, é impossível sob o capitalismo: pois significaria o desaparecimento da produção de mercadorias, da economia de mercado, do dinheiro, do capital e dos lucros — sob uma economia socializada o robotismo seria um excelente instrumento de emancipação humana; tornaria possível a redução da semana de trabalho para um mínimo de 10 horas.(11) Garantiria a homens e mulheres o ócio necessário à autoadministração da economia e da sociedade, ao desenvolvimento duma rica individualidade social a todos, ao desaparecimento da divisão social do trabalho entre administradores e administrados, ao definhamento do Estado e da coerção entre seres humanos.
Então, a variedade mais provável sob o capitalismo é precisamente a longa duração da depressão corrente, somente acrescida do desenvolvimento da automação parcial e da robotização marginal(12); ambas acompanhadas de sobrecapacidade (também da superprodução de mercadorias) e desemprego de larga escala, além de pressão para extrair maiores quantidades de mais-valor da semana de trabalho e dos trabalhadores, que tendem a estagnar e decrescer lentamente em número, i.e., crescente pressão dirigida à superexploração da classe trabalhadora (diminuição de salários reais e da seguridade social), para enfraquecer ou destruir o movimento livre dos trabalhadores a fim de minar as liberdades democráticas e os direitos humanos.
Em seus Grundrisse, Marx não anteviu somente a tendência básica da tecnologia capitalista em se dirigir à progressiva expulsão do trabalho humano do processo produtivo; anteviu, além disso, as contradições básicas que essa tendência originaria, sob o capitalismo:
Numa sociedade de classes, a apropriação do excedente social por uma minoria significa a capacidade de estender o ócio somente para uma minoria. Portanto, a reprodução em escalas cada vez maiores da divisão da sociedade entre quem administra e acumula conhecimento e quem produz, sem muito ou sem nenhum conhecimento.(14) Numa sociedade sem classes, a apropriação e o controle, por todos (por todos os produtores associados), do excedente social da produção significaria a redução radical do tempo de trabalho (do trabalho necessário) para todos, a extensão radical do ócio para todos e, por conseguinte, o desaparecimento da divisão da sociedade entre administradores e produtores, entre aqueles que têm acesso ao conhecimento e aqueles que são excluídos do acesso ao conhecimento. Numa notável passagem dos Grundrisse, relacionada à citada acima, Marx escreve:
A criação duma grande quantidade de tempo descartável, além do tempo de trabalho necessário, para a sociedade e cada um de seus membros (i.e., espaço para o desenvolvimento das forças produtivas integrais do indivíduo, portanto, de tais forças para a sociedade também), essa criação de tempo-de-não-trabalho, aparece no estágio do capital, bem como nos estágios antecedentes, como tempo-de-não-trabalho, tempo livre, para poucos… Porém, sua tendência sempre, por um lado, de criar tempo descartável; por outro, de convertê-lo em mais-trabalho. Se há sucesso no primeiro, então ocorre produção excedente; o trabalho necessário é interrompido, porque nenhum mais-trabalho pode ser efetivado pelo capital. Quanto mais se desenvolve essa contradição, mais evidente transparece o fato de que o crescimento das forças de produção não pode mais ser conciliado à apropriação do trabalho alheio, mas que a massa de trabalhadores deve, ela mesma, apropriar-se de seu mais-trabalho. Assim que isso ocorre — e o tempo descartável cessa sua existência antitética —, por um lado, o tempo de trabalho necessário será medido pelas necessidades do indivíduo social; por outro lado, o desenvolvimento do poderio da produção social crescerá tão rapidamente que, mesmo a produção sendo agora calculada para a riqueza de todos, o tempo descartável crescerá para todos; já que a real riqueza é o poder produtivo, em seu estado mais desenvolvido, de todos os indivíduos (ibid, p. 708).
E Marx indica como, sob o capitalismo, a ciência, o resultado do trabalho social geral, i.e., o conhecimento social geral, divorcia-se sistematicamente do trabalho; como — uma antecipação notável do ‘robotismo’ capitalista — a ciência, no capitalismo, torna-se oposta ao trabalho (MEGA, 11, 3.6, p. 2164).
Como o capitalismo tenta superar essa nova e crescente contradição, resultado da redução da quantidade absoluta de tempo de trabalho humano necessário para produzir uma crescente massa de mercadorias, passíveis de venda sob as presentes condições (i.e., burguesas) de produção e distribuição? Sua solução é uma sociedade dual, a qual divide o proletariado atual em dois grupos antagonistas:
Formas de transição do processo de produção capitalista ‘normal’ são o trabalho informal, o trabalho precário, o trabalho de meio-período etc, atingindo especialmente mulheres, jovens, trabalhadores imigrantes etc.
Emprego de meio-período em 1979 como % do emprego total | Do qual, o trabalho feminino representa | |
Alemanha Ocidental | 11,4% | 91,5% |
Bélgica | 6,0% | 89,3% |
Dinamarca | 22,7% | 86,9% |
EUA | 17,8% | 66,0% |
França | 8,2% | 82,0% |
Itália | 5,3% | 61,4% |
Holanda | 11,2% | 82,5% |
Reino Unido | 16,4% | 92,8% |
(OIT: Le Travail dans le Monde, op. cit.) |
Qual é raciocínio capitalista dessa sociedade dual? É um gigantesco atraso histórico do relógio num problema crucial: salários indiretos (socializados).
Através de significativa luta histórica, a classe trabalhadora da Europa Ocidental, da Austrália e do Canadá (em menor grau, dos EUA e do Japão também) conquistou, do capital, o cimento básico da solidariedade de classe: o salário deve cobrir não apenas os custos de reprodução do trabalho vivo empregado, mas sim os custos de reprodução do proletariado em sua totalidade, ao menos em escala nacional, i.e., incluem-se os custos de reprodução dos desempregados, dos enfermos, dos idosos, homens e mulheres incapazes de trabalhar bem como seus filhos. É esse o significado histórico da seguridade social, que é parte da folha de pagamento (sua parte socializada ou pelo menos a parte dos salários que ‘transita’ pelas mãos da instituição de seguridade social).
Por meio de pressão a favor duma sociedade dual, o capital do trabalho de meio-período, do trabalho casual, do ‘escapar da corrida dos ratos’ etc agora quer reduzir sua folha de pagamentos a salários pagos só diretamente, que tenderão a decrescer, como resultado dum exército industrial de reserva inflacionado. Na verdade, ele já é bem sucedido nesse objetivo, pela massa de trabalhadores ‘precários’ e ‘casuais’ que geralmente não desfrutam dos benefícios da seguridade social; o capital quer fazer o mesmo, ter os mesmos ganhos, em relação aos desempregados. Noutras palavras: a ‘sociedade dual’ no capitalismo é nada mais do que um dos mecanismos principais para aumentar a taxa de mais-valor, a taxa de exploração da classe trabalhadora e a massa e a taxa dos lucros. Qualquer justificativa sofisticada para auxiliar esse objetivo do capital (seja o ‘terceiro-mundismo’, ‘ecologismo’, ‘a realização imediata do comunismo’, o desejo de ‘dissolver o padrão dos consumidores capitalistas’ etc) é, no melhor dos casos, uma capitulação mistificada ante a ideologia burguesa e os propósitos econômicos do capital; nos piores casos, uma ajuda direta à ofensiva capitalista contra a classe trabalhadora.
Advogar a disseminação do trabalho não-remunerado, até para ‘propósitos socialmente úteis’, quando há um número gigantesco de desempregados, não é para construir ‘células comunistas’ dentro do capitalismo; é para ajudar os capitalistas na divisão da classe trabalhadora através duma nova alta no desemprego, para ajuda-los a aumentar seus lucros.
É mais do que isso, pois coloca novas e formidáveis pedras no caminho do potencial realmente emancipatório das novas tecnologias e do ‘robotismo’, ao passo que tende a perpetuar, de modo elitista, a subdivisão social entre aqueles que se apropriam dos frutos da ciência e da civilização — que só ocorrem na base da satisfação das necessidades materiais fundamentais — e aqueles condenados (incluindo aqueles que se autocondenam, por meio do ascetismo) a gastar mais e mais tempo como ‘bestas de carga’, citando novamente a fórmula eloquente de Marx.
O dilema real, a escolha histórica básica que encara a humanidade atualmente, é o seguinte: ou uma redução radical do tempo de trabalho para todos — iniciando pelo meio-dia de trabalho ou pela meia semana de trabalho — ou a perpetuação da divisão social entre produtores e administradores: a redução radical do tempo de trabalho para todos — a qual era a grandiosa visão emancipatória de Marx — é indispensável tanto para a apropriação do conhecimento e da ciência por todos quanto para a autoadministração de todos (i.e., um regime de produtores associados). Sem tal redução, ambos são uma utopia. Não é possível adquirir conhecimento científico nem administrar sua própria fábrica, vizinhança ou ‘Estado’ (coletividade) quando é necessário trabalhar penosamente numa fábrica ou num escritório por 8 horas diárias, 5 ou 6 dias na semana. Dizer o contrário é mentir para si mesmo ou para outrem.
O potencial emancipatório do robotismo consiste em tornar o socialismo, o comunismo, muito mais fácil, por tornar possível para todos uma semana de trabalho de 20, 15 ou 10 horas. Mas qualquer passo na direção da sociedade dual, mesmo com as melhores intenções, vai na direção diametralmente oposta.
Deixaremos de lado a seguinte questão: se o trabalho reduzido a 20 ou 15 horas semanais é ainda trabalho no sentido clássico da palavra.(15) Também deixaremos de lado até que ponto o desenvolvimento individual, citando Marx novamente, é um desenvolvimento no qual as atividades ‘produtivas’ permanecem separadas daquelas de natureza cultural, criativa, científica, artística, esportiva, puramente recreacional. Nestas, o famoso droit a la paresse [direito à preguiça] de Lafargue se efetiva. A felicidade humana certamente não depende da atividade árdua permanente, embora uma quantidade mínima de atividade e mobilidade, física e mental, parece ser uma precondição absoluta para o crescimento saudável, incluindo o crescimento da mente.
Mas independentemente de qualquer consideração dessa natureza — o futuro do trabalho no sentido secular do termo —, uma conclusão aparenta ser inescapável: o que acontecerá com o trabalho humano e com a humanidade não é pré-determinado mecanicamente pela tecnologia ou pela ciência, nem por suas tendências correntes e os óbvios perigos que elas contêm. Em última análise, é determinado pela estrutura social na qual se desenvolve. E aqui a diferença entre um desenvolvimento na estrutura do capitalismo — competição, economia de mercado — dum lado, e socialismo — i.e., propriedade e solidariedade coletivas através do governo dos produtores associados, através do domínio de todos os produtores de suas condições de trabalho, como resultado da redução radical do tempo de trabalho (produtivo) — é absolutamente básica.
Os empregadores (e o Estado burguês) podem igualmente ser ajudados em seu objetivo estratégico de introduzir a sociedade dual pela atitude obviamente ambígua frente o trabalho assalariado, frente o trabalho sob o capitalismo e o trabalho na fábrica moderna em geral.
É verdade que os trabalhadores são forçados, no capitalismo, a aderirem ao emprego integral para receber um salário (direto e indireto) integral. A alternativa, novamente no capitalismo, é o declínio agudo de seus padrões de vida, i.e., empobrecimento e degradação morais e materiais.
Da mesma forma, porém, os trabalhadores estão claramente cientes do caráter crescente de degradação da organização do trabalho e do esforço produtivo capitalistas, especialmente nas condições de extrema fragmentação do trabalho (taylorismo). Precisamente quando seus padrões de vida aumentam, como ocorreu no período de 1950 a 1970, as necessidades de ‘satisfação do trabalho’ e de lazer (aumento da saúde, da cultura, da autoatividade) tomam nova dimensão. Fato extremamente evidente através e posteriormente da explosão do Maio de 1968.(16) Essa percepção ainda existe — e empregadores bem como o Estado burguês conscientemente tentam utilizá-la para fazer a sociedade dual parecer algo diferente do que ela é verdadeiramente: uma tentativa de fazer a própria classe trabalhadora pagar o fardo do desemprego, elevando enormemente, assim, a massa e a taxa de lucros.
Como o protesto demagógico, segundo o qual os trabalhadores (por que não os capitalistas?) deveriam compartilhar sua renda com os desempregados, e como o mito de que ‘salários excessivos e pagamentos da seguridade social’ são os reais responsáveis pela crise, toda a conversa sobre o ‘trabalho sem sentido que deveria ser extinto’ é, hoje em dia, nada mais do que uma arma ideológica dos capitalistas em sua luta de classe contra o trabalho assalariado, a fim de diminuir a participação dos trabalhadores na renda nacional.
Temos igualmente que enfatizar que a visão atual, da tecnologia ‘suja’, destruidora da natureza ou diretamente ameaçadora à vida como resultado inevitável da lógica interna da ciência natural, tem de ser rejeitada como obscurantista, a-histórica e, em última análise, uma apologia ao capitalismo.
Sob o capitalismo, a tecnologia se desenvolve estruturada pela contabilidade dos custos e do dinheiro, além da projeção de lucros para a firma individual. Portanto, custos sociais gerais, custos humanos e ecológicos, são descontados, não somente por serem ‘externalizados’ (i.e., firmas individuais não pagam por eles), mas também por aparecerem, em geral, muito posteriormente aos lucros permitidos pela nova tecnologia num período de curto ou médio prazo.
Exemplos de tais escolhas tecnológicas, lucrativas a partir do ponto de vista da firma individual, mas socialmente irresponsáveis a longo prazo, são o motor de combustão interna dos veículos e os detergentes e sabonetes. Escolhas estavam envolvidas em ambos os casos.
Essas não foram, de modo algum, as únicas tecnologias existentes em suas épocas.(17) Pelo contrário: muitas alternativas se apresentavam. As escolhas não foram motivadas por preferências puramente ‘científicas’ ou ‘técnicas’; foram, na verdade, motivadas pelas preferências de lucro de ramos específicos das indústrias, ou, melhor ainda, as principais firmas desses ramos, i.e., provenientes das relações de poder dentro da classe capitalista. Nenhum ‘determinismo tecnológico’ decidiu ou está decidindo o destino da humanidade. O que está em jogo é o determinismo socioeconômico, em que interesses materiais das classes sociais ou de suas frações se afirmam, desde que tais classes ou frações de classes possuam efetivamente poder para impor sua vontade (guiada pelos seus interesses) sobre toda a sociedade.
Não há nada novo em entender que a tecnologia se desenvolvendo no capitalismo não é a única tecnologia possível, mas uma tecnologia específica, introduzida por razões específicas, intimamente ligadas à natureza da economia capitalista e da sociedade burguesa. Karl Marx tinha plena ciência disso, escrevendo n’O Capital, vol. 1:
Na agricultura moderna, como na indústria urbana, o aumento na produtividade e na mobilidade do trabalho é comprada ao custo da destruição e da debilitação da própria força de trabalho. Ademais, todo o progresso no capitalismo é um progresso na arte não só de roubar do trabalhador, mas de roubar da terra; todo o progresso no incremento da fertilidade do solo, num período de tempo, é um progresso direcionado à ruína de suas fontes mais duradouras. Quanto mais um país fundamenta seu desenvolvimento na indústria de larga escala, caso dos Estados Unidos, mais rapidamente se dá o processo de destruição. A produção capitalista, portanto, só desenvolve suas técnicas e o grau de combinação do processo social da produção através do prejuízo simultâneo das fontes originais de toda a riqueza — o solo e o trabalhador (Capital, vol. 1, edição da Pelican Library, p. 638).
Marx também enfatizou que a tendência de aplicar tecnologias especificamente capitalistas — i.e., somente tecnologias que conduzem um aumento na produção do mais-valor — implica que novas técnicas teriam de ser não só meios para a redução do valor da força de trabalho, para o barateamento de bens de consumo, para a economia do capital constante (maquinário, matéria-prima e energia mais baratos). Poderiam ser, além disso, meios para danificar ou reduzir a capacidade de resistência do trabalho na fábrica, no ramo industrial ou na sociedade:
Mas o maquinário não age apenas como um competidor superior ao trabalhador, sempre na missão de torná-lo supérfluo. É uma força inimiga e o capital proclama tal fato deliberadamente, fazendo uso dele. É a arma mais poderosa na supressão de greves, as revoltas periódicas dos trabalhadoras contra a autocracia do capital […] Seria possível escrever toda uma história das invenções criadas desde 1830 com o propósito de fornecer ao capital armas contra a revoltas trabalhistas (ibid., pp. 562-563).
A introdução de máquinas-ferramentas controladas numericamente após a grande onda de greves de 1946 nos EUA é uma confirmação notável dessa regra.(18) Na verdade, quando o balanço patrimonial é feito ‘após os fatos’, hoje em dia menos de 1% das máquinas-ferramentas utilizadas nas indústrias estadunidenses são controladas numericamente; mas a escala proporcionada pela sua produção inicial foi suficiente para destruir a força sindical onde eram produzidas as máquinas-ferramentas.
Uma função semelhante está sendo exercida atualmente pelo medo criado no interior do movimento sindical e da classe trabalhadora a respeito da ‘supressão do trabalho através de robôs’. A realidade ainda está muito longe de qualquer coisa do tipo, como indicado pela seguinte tabela:
Número de robôs a cada 20.000 assalariados na indústria manufatureira, 1981 | |||
1978 | 1980 | 1981 | |
Suécia | 13,2 | 18,7 | 29,9 |
Japão | 4,2 | 8,3 | 13,0 |
Alemanha Ocidental | 0,9 | 2,3 | 4,6 |
EUA | 2,1 | 3,1 | 4,0 |
França | 0,2 | 1,1 | 1,9 |
Grã-Bretanha | 0,2 | 0,6 | 1,2 |
(L’Observateur de l’OECD, n.123, julho de 1983) |
E para citar a Electronics Week de 01 de janeiro de 1985:
Mesmo se o uso de robôs aumentasse como previsto […] em 1990, isso ainda afetaria somente alguns décimos de 1% de todos os empregados nos países industrializados, estimam fontes da indústria.
É necessário responder esse medo por meio da familiarização dos trabalhadores com computadores, exigindo que escolas frequentadas pelos filhos da classe trabalhadora tenham computadores à disposição, sem nenhum custo a mais. Neste ano, estima-se que até 5 milhões de computadores para uso pessoal serão vendidos nos EUA. A competição é feroz e preços consequentemente cairão. Sindicatos e outras organizações da classe trabalhadora deveriam se atentar a isso, para que trabalhadores e empregados aprendam a dominar esses escravos mecânicos, dotados ou não de ‘inteligência artificial’. Com isso, o medo recuará e a classe trabalhadora verá as novas máquinas assim como passou a ver as antigas: como instrumentos de trabalho, capazes de serem transformados de instrumentos do despotismo em instrumentos de emancipação, tão logo os trabalhadores tornem-se coletivamente seus mestres.
Sociedades pós-capitalistas, como a URSS, geralmente emprestam a tecnologia capitalista e sofrem além do normal, devido às consequências da administração e do monopólio de poder burocráticos, i.e., a ausência de opinião pública livre e crítica. Entretanto, num regime autogerenciado de produtores associados, sob uma democracia socialista com pluralidade de partidos políticos, nenhuma dessas constrições agiriam. Não há razão para pensar que tais produtores seriam tolos o suficiente para se envenenarem e envenenarem seu ambiente, desde que conheçam os riscos (quando são desconhecidos os riscos, deve-se isso não ao excesso de conhecimento científico, mas à sua ausência!). Não há razão para pensar que eles não conseguiriam utilizar o maquinário, incluindo robôs, como ferramentas para a redução ou a supressão de todo trabalho humano mecânico, carente de criatividade, penoso, tedioso, i.e., desperdiçado; como instrumentos para tornar possível a reunificação da produção, da administração, do conhecimento, da atividade criativa e do pleno aproveitamento da vida, após terem se transformado para tal propósito.
Permanece uma questão não respondida, uma questão não apanhada pelos marxistas até o momento, justamente por não ter sido manifestada antes perante a humanidade; mas, depois de habitar por décadas o reino da ficção científica e da futurologia, agora ela tem sido trazida à fronteira do materialmente imaginável, como resultado dum enorme salto adiante nas ciências aplicadas e na tecnologia da última década: o trabalho humano poderia construir máquinas que conseguissem escapar do controle da humanidade, tornando-se completamente autônomas, i.e., máquinas inteligentes, com potencial para se rebelar contra seu criador original? Após certo ponto, os robôs começariam a construir robôs sem instruções humanas (sem serem programados)? Ou até mesmo construir robôs inconcebíveis à humanidade e vastamente superiores a ela do ponto de vista da inteligência?
No abstrato, tal possibilidade é certamente concebível. Contudo, é preciso circunscrever de maneira mais específica a estrutura material presente e futura do problema antes de dar início à histeria ou ao sentimento de ruína, no que se refere ao domínio humano sobre as máquinas.
Para construir uma máquina ‘perfeita’ de xadrez, capaz de prever todas as combinações possíveis (10120), seria necessário um número de combinações que excederia o número de átomos no universo. Para um computador atual calcular todos os números com 39.751 dígitos a fim de descobrir um possível número primo, levaria mais tempo do que a idade do universo. Com a ajuda dos mesmos computadores, entretanto, a inteligência humana, em setembro de 1983, descobriu um número primo com 39.751 dígitos (que se estenderia por sessenta metros, se fosse impresso) em Chippewa Falls, Wisconsin, EUA.(19)
Além disso, existem 15 bilhões de células nervosas e 15 trilhões de sinapses no cérebro humano — em somente um cérebro humano —, um número que os computadores atuais não conseguem alcançar e nem conseguirão no futuro previsto.
Então os dias nos quais seríamos controlados, subjugados, dominados, por nossos amigos e escravos robóticos ainda estão muito distantes. E cada vez mais distantes, desde que a humanidade, i.e., o trabalho humano, comande sua produção e determine seu poder de cálculo. Se necessário, a humanidade pode decidir por limitar ou interromper o desenvolvimento desse poder, ou mesmo por interromper a produção de computadores robotizados e de robôs computadorizados. Eles são ferramentas humanas, subordinadas a propósitos humanos específicos. A humanidade pode evitar a criação de aprendizes de feiticeiros, se ganhar controle integral de suas ferramentas e produtos.
E aqui estamos no coração do assunto: a estrutura e as leis motrizes da sociedade humana e da economia. É disso que se trata realmente o problema e não do potencial indefinido das ferramentas de cálculo mecânicas.
Se a humanidade se tornar mestre de sua sociedade, da sua organização social do trabalho, dos objetivos e propósitos do trabalho, i.e., mestre de seu próprio destino, então não há perigo dela ser escravizada por computadores pensantes. Isso, porém, pressupõe a abolição da propriedade privada, da economia de mercado, da competição e do ‘egoísmo sagrado’ como principal incentivo ao trabalho social. Pressupõe uma organização do trabalho baseada na cooperação e na solidariedade dirigida ao bem-comum, i.e., socialismo autogerido. Se não alcançarmos tal domínio, as ameaças serão inumeráveis: aniquilação nucelar; sufocaremos em nossos próprios excrementos, i.e., destruição ecológica; pobreza massiva e declínio da liberdade; fome universal. A possível escravização sob as máquinas seria somente uma das ameaças — e provavelmente não seria nem a pior delas.
O que é, portanto, o núcleo racional desse medo irracional é o fato de que as mudanças na consciência humana, necessárias para trazer à vida um mundo socialista, podem se tornar mais dificultosas, por causa dos efeitos a curto prazo das novas técnicas de comunicação sobre o pensar e o sentir humanos, justamente por estarem subordinadas aos objetivos particulares de grupos sociais privilegiados (as classes ou os estratos dominantes). A substituição do livro escrito pelo videocassete; o extremo afunilamento de escolhas entre conjuntos de ideias conflituosos; o declínio do pensamento crítico e da pesquisa livre da tirania de lucros imediatos; o declínio do pensamento teórico, sintético e imaginativo a favor do pragmatismo e do utilitarismo míope (geralmente combinados com uma generosa camada de misticismo e irracionalismo a respeito de temas mais amplos): há o perigo real de que o robô e o computador reformem nosso modo de pensar(20), mas não por culpa desses pobres escravos mecânicos e sim pela culpa das forças sociais possuidoras do interesse social imediato na obtenção desses efeitos desastrosos.
Igualmente, cérebros humanos auxiliados por computadores podem oprimir, reprimir, explorar e escravizar outros seres humanos — as classes sociais oprimidas e exploradas em primeiro lugar! — mais facilmente do que poderiam se não possuíssem computadores. Isso não se deve à ‘maldade’ do computador ou das ciências aplicadas, mas à maldade dum certo tipo de sociedade, que cria a tentação e os incentivos para tais tipos de comportamento e empreendimento.(21)
Contra esses perigos devemos nos mobilizar: não sob o slogan ‘abaixo a ciência e seu potencial perigoso’ ou ‘destrua o computador’, mas sob ‘deixe a humanidade se tornar mestre de seu destino técnico e social, mestre de sua economia e de todos os produtos de seu trabalho manual e intelectual’. Isso é ainda possível hoje e é mais necessário hoje do que já foi antes.
Notas de rodapé:
(1) Ver, dentre outros: André Gorz, Adieux au prolétariat, Paris, 1979; Daniel Bell, The Post-Industrial Society; Ralf Dahrendorf, in Geht uns die Arbeit aus?, Bonn, 1983; Eric Hobsbawm, Labour’s ForwardMarch Halted, Londres 1980. (retornar ao texto)
(2) Joseph Huber, Die verlorene Unschuld der Ökologie, Frankfurt, 1982; Ivan Ilich, Le travail fantôme, Paris, 1981; Club of Rome, The Limits to Growth, (1972); Rudolph Bahro, From Red to Green, Londres, 1981; André Gorz, Adieux au prolétariat, Paris. (retornar ao texto)
(3) OECD, Robots industriels, Paris, 1983. (retornar ao texto)
(4) Obviamente, isso não significa que em determinados ramos da indústria (e.g., mineração de carvão) não haja um declínio absoluto no emprego mundial; ou, em outros (como a indústria têxtil, a indústria de calçados, de construção de navios, de aço) um declínio no emprego em certas regiões (EUA e Europa Ocidental) e aumento noutras (Ásia). (retornar ao texto)
(5) Ver o excelente estudo de Winfried Wolf, Volkswagen’s Robots, em Was Tun?, dezembro de 1983. (retornar ao texto)
(6) Esse fenômeno se expressa, dentre outras coisas, com o aumento do vício em drogas nos EUA, hooliganismo na Grã-Bretanha etc. (retornar ao texto)
(7) Saga Ichiro, The Development of New Technology in Japan, Bulletin of the Socialist Research Centre, Universidade de Hosei, Tóquio, novembro de 1983. (retornar ao texto)
(8) Em seu panfleto Lohn, Preis und Profit [Salário, Preço e Lucro], Marx afirmou igualmente: Em suas tentativas de reduzir o dia de trabalho às suas dimensões racionais anteriores — ou, quando não podem impor uma fixação legal para o dia de trabalho normal, contendo o excesso de trabalho através do aumento de salários, um aumento não apenas proporcional ao mais-tempo efetivado, mas em maior proporção —, os trabalhadores cumprem somente um dever para si e para os seus; eles só estabelecem limites às usurpações tirânicas do capital. O tempo é o espaço para o desenvolvimento humano. Um homem sem tempo livre ou que, por toda sua vida, exceto pelas meras interrupções físicas de sono, refeições e assim por diante, está absorto pelo seu trabalho para o capitalista, é menos que uma besta de carga: ele é uma mera máquina para a produção de riqueza externa, destruído no corpo e brutalizado na mente (Marx: Value, Price and Profit, Selected Works, p. 329). (retornar ao texto)
(9) Encontra-se especialmente desenvolvido em: Karl Marx, Zur Kritik der Politischen Ökonomie [Para a Crítica da Economia Política] (Manuskript 1861-1863), em Karl Marx-Friedrich Engels Gesamtausgabe (MEGA), vol.1-6, Parte II, subparte 3 – citada como MEGAII/3/1-6 – Berlim, Dietz-Verlag, 1976-1982). Comentários desse manuscrito de Marx desconhecido até então podem ser encontrados em Der Zweite Entwurf des Kapitals, Dietz-Verlag, Berlim, 1983. (retornar ao texto)
(10) Ernest Mandel, Late Capitalism, New Left Books, Londres, 1975, p. 2077. (retornar ao texto)
(11) Um grupo francês de trabalhadores e de sindicalistas, escrevendo sob o pseudônimo de Adret, publicou um livro em 1977 com o título Travailler deux heures par jour [Trabalhar duas horas por dia] (Le Seuil, Paris), o qual teve pouquíssimo eco. Apesar disso, demonstrava a possibilidade material duma redução radical do dia de trabalho, antes mesmo do aparecimento da robotização. (retornar ao texto)
(12) Ver a esse respeito a conclusão muito reprimida duma conferência recente sobre robótica: P.H. Winston & K. Prendereast (EE.). The A.I. Business – The Commercial Use of Artificial Intelligence, MIT Press, Cambridge, Mass., Londres, 1984. (retornar ao texto)
(13) O que a maioria dos promotores da capacidade do capitalismo de regular sua crise atual esquece é o fato de que cada passo na direção da mecanização, e certamente da automação, é acompanhado por um enorme aumento na massa de bens produzidos (ver Grundrisse, op. cit., p. 325 e MEGA, II, 3.6, op. cit., p. 2164), que devem ser vendidos antes que o capital possa efetivar e apropriar o mais-valor produzido. (retornar ao texto)
(14) Aristóteles chamou atenção ao fato de que aqueles que lidam com política e ciência (i.e., aqueles que ‘administram’, ‘acumulam’, no sentido marxista da palavra) podem fazê-lo somente porque outros produzem meios para a sua sobrevivência. (retornar ao texto)
(15) Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles já havia desenvolvido uma interpretação da relação entre trabalho e lazer que se aproxima daquela contida nos Grundrisse e n’O Capital de Marx. Deve ser lembrada a etimologia de ‘lazer’: a palavra latina licere, i.e., ser livre para agir como se quer. (retornar ao texto)
(16) Ver sobre esse tema: Daniele Linhart, Crise et Travail, Temps Modernes, janeiro de 1984. (retornar ao texto)
(17) Barry Commoner, The Closing Circle, Londres, 1972, Jonathan Cape. (retornar ao texto)
(18) Ver David F. Noble, Forces of Production, Nova Iorque, 1984, Knopf. (retornar ao texto)
(19) Ver sobre o tema: Reinhard Breuer, Die Pfeile der Zeit, Munique, 1984, Meyster Verlag. (retornar ao texto)
(20) A. J. Ayer tem lidado com essa mesma questão numa resenha do livro de J. David Bolter, Turing’s Man: Western Culture in the Computer Age, University of North Carolina Press, 1983, na New York Review of Books, 1 de março de 1984. (retornar ao texto)
(21) ‘Denning Mobile Robotics Inc., Wobum, Mass., disse ter assinado um acordo para fornecer a Southern Steel Corp. até 680 robôs para o serviço de guarda prisional pelos próximos três anos. Disse, além disso, que o contrato valia algo entre 23 milhões e 30 milhões de dólares (The New York Times, 9 de janeiro de 1985). (retornar ao texto)