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Marx descreveu exatamente em O Capital o processo do feiticismo da mercadoria, o qual nasce das necessárias tendências evolutivas e das estruturas sociais por elas produzidas: “O misteriosos da forma mercadoria consiste, pois simplesmente em que devolve especularmente aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres de coisas dos próprios produtos do trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas, e, portanto, também uma relação social entre objetos, dotada de existência própria fora dos mesmos homens. Por este quid pro quo [algo por algo – ndt] os produtos do trabalho se convertem em mercadorias, em coisa sensíveis suprassensíveis ou sociais (...) O que aqui toma para aos homens a fantasmagórica forma de uma relação entre coisa é simplesmente sua determinada relação social entre eles”.(1) O decisivo para nossos fins é que o conhecimento desfeitizador de algo que, em sua aparência imediata, é de coisa, o transforma no que é em si, em uma relação entre homens. O movimento aqui consumado e que repõe ao fato verdadeiro em seus direitos é, pois, duplo: em primeiro lugar, é o desmascaramento de uma aparência errônea, a qual, mesmo de origem social necessária, deforma a verdadeira essência da realidade, em alguns caos, em consequência do grande desenvolvimento da economia, em outros em consequência do atraso. Em segundo lugar, a retificação é ao mesmo tempo a salvação do papel dos homens na história. A aparência de que falamos superou a importância do homem: “Seu próprio movimento social tem para eles a forma de movimento de coisas sob cujo controlo se encontram, ao invés de controlá-las”.(2) A verdade converte as coisa aparentemente existentes e dominantes em relações entre os homens, os quais – em determinados casos – poderiam ser capazes de controlá-las e dominá-las; porém, inclusive quando isso não é possível, o “destino” aparentemente nascido da natureza das coisas se apresenta finalmente como produto da própria evolução da humanidade, ou seja, deste ponto de vista, como destino autoproduzido dos homens. Os dois momentos deste movimento espiritual no reflexo da realidade são da mesma importância para o conhecimento científico; e se algum deles pode almejar, como geral e fundamental, a certa supremacia, será em todo caso o primeiro.
A situação que se produz para a arte é algo diversa. O primeiro momento conserva sem dúvida seu caráter fundamental, pois, sem certa compreensão deste fato básico todas as consequências ficariam soltas no ar. Porém no reflexo estético é o segundo momento que exige o significado decisivo. Pois o centro do movimento reprodutor no reflexo da realidade é sempre a captação do homem, tanto na sociedade como na natureza. Este movimento pode se limitar a simples figuração da realidade; mas inclusive neste caso limitado, o Que e o Como da figuração conteriam já uma tomada de posição; esta tomada de posição pode se converter, como é natural, em uma aberta tomada de partido, e assim ocorre muito frequentemente, sobretudo nas grandes obras. M. Arnold tem razão quando diz que a poesia é no fundo uma “crítica da vida”.(3)
Esta crítica tem diversos conteúdos e modos de expressão segundo a arte que se trate, o período, a nação e a classe. Se for procurado apresar o mais universal dela, se tem essa reivindicação de direitos do homem. Deste ponto de vista, a descoberta de Mar tem uma importância enorme para a teoria da arte. Quase todo artista importante dos séculos XIX e XX se deparou de um modo ou de outro com esse problema; isso ocorreu, certamente (coisa também característica da relação entre a teoria e a arte), quase sempre sem conhecer a primeira orientação de Marx, a desmascaradora, e sem recorrer de comum a segunda apenas espontaneamente, em suas consequências humanas. Isso nada tem de surpreender, a arte continua nisso o curso normal da vida. Marx escreveu, inclusive, sobre o conhecimento científico deste fenômeno: “A reflexão sobre as formas da vida humana, portanto, também a análise científicas das mesmas, empreende em geral um caminho inverso daquele da evolução verdadeira. Começa post festum [depois – ndt] e, por conseguinte, com resultados já prontos do processo evolutivo”.(4)
Balzac e Tolstoi (este último pelo que faz a certos âmbitos vitais) se contam entre os poucos cuja obra está totalmente penetrada por esta tendência. A luta pela integridade do homem, contra toda presença e forma de manifestação de sua deformação, constitui o conteúdo essencial de sua obra – como daquela de outros artistas importantes, desde já. Somente quando se chega a uma capitulação diante ao feiticismo – como ocorre em setores importantes da arte burguesa tardia do período imperialista – a arte tem de renunciar a seu conteúdo capital, a essa luta pela integridade do homem, à crítica da vida do ponto desse ponto de vista. A tomada de posição em relação ao feiticismo – reconhecido ou não este enquanto tal – se constitui em fronteira entre a prática progressista e a reacionária. É característico que T. S. Elot se sinta movido a escrever a propósito da passagem de Arnold sobre a poesia que acabamos de citar: “Se é tratada a vida como totalidade (...) de cima abaixo, pode se chamar ainda crítica algo que sejamos capazes de dizer sobre esse espantoso mistério por excelência?”.(5) O problema central dessa capitulação consiste em que se caia imóvel diante da imediação das formas de vida enfeitiçadas, e inclusive quando se torna evidente sua desumanidade, não se move para a essência para descobrir as ligações verdadeiras, senão que aceita sem resistência, como verdade última, a superfície enfeitiçada. As formas subjetivas de reação desse comportamento podem ser de extraordinária diversidade; mas, para o problema que aqui nos ocupa é de secundária importância que elas se expressem no niilismo, ou no cinismo, ou o desespero, a angústia, a mistificação, o gozo de si próprio, etc. O que importa é se no caso dado a direção do movimento das tentativas de refletir a realidade é uma orientação desfeitizadora ou é, pelo contrário, uma tendência pseudoartística a eternizar o enfeitiçado da sociedade.(6)
Já essa aplicação ao reflexo estético mostra que a descoberta de Marx do feiticismo tem importância universal. Essa descoberta revelou em detalhe a universalidade do feiticismo da mercadoria também para todas as formas de manifestação da sociedade capitalista. Não nos é necessário dedicar aqui muita atenção a essa ampla aplicação do conceito de feitiço, nem ao fato de que Marx delimite com precisão o âmbito de validade histórico-social do feiticismo da mercadoria e mostre ao mesmo tempo com clareza, por exemplo, o caráter não enfeitiçado da exploração feudal. Apesar disso seria errôneo – diante todo do ponto de vista de nossas investigações – limitar o fenômeno geral da enfeitização da economia do intercâmbio capitalista de mercadorias. Embora em O Capital Marx não estude mais do que este ponto – em toda universalidade, certamente –, ele próprio dá indicações inequívocas de que se trata de uma particularidade do reflexo da realidade social, cuja aparição ideológica e econômica no capitalismo não nega sua eficácia na totalidade da história humana. Deste ponto de vista é muito interessante o fato de que Marx, precisamente no capítulo sobre o feiticismo, fale de parentesco dessa deformação da realidade e as representações religiosas. Depois de comprovar o vínculo de suas etapas primitivas com um condicionamento “por um baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho e uma situação analogamente limitada dos homens no processo de produção de sua vida material, e, portanto, também de suas relações recíprocas e com a natureza”,(7) Marx oferece uma análise da totalidade desses modos de comportamento e dos pressupostos sociais de sua agonia. Com isto assume Marx, de um ponto de vista fundando na natureza da coisa, ideologias primitivas (pré-capitalistas) e ideologias capitalistas desenvolvidas, apesar de toda sua diversidade, como fenômenos coerentes, em uma síntese unitária do devir e perecer históricos.
Por isso acreditamos proceder no sentido do método de Marx ao elaborar no que segue sínteses análogas em relação de importante complexos de categorias da concepção do mundo alentada pelos homens, como problemas de sua feitização e desenfeitização, aludindo sobretudo às tendências espontâneas, poucas vezes conscientes, do reflexo estético da realidade: se trata de dissolver feitiços ou complexos enfeitiçados que aparecem no curso da evolução da humanidade e atuam tanto na prática da cotidianidade quanto na ciência e a filosofia, de devolver às relações objetivas o lugar que lhes corresponda na estampa cósmica dos homens, e de restabelecer assim a importância do homem, deprimida por aquelas deformações. Assim se obtém para nossas presentes considerações um conceito de feiticismo mais amplo: o enfeitiçamento consiste em que – por motivos histórico-sociais diversos em cada caso –, se ponham objetividades independentes nas representações gerais, objetividades que nem em si nem em relação aos homens o são realmente. Como é natural, não nos interessa aqui a totalidade desse complexo; tomá-lo totalmente significaria abranger grandes setores da história da ciência, da filosofia, o pensamento cotidiano, e faria explodir o marco dessas investigações. Aqui nos colocaremos uma tarefa muito mais modesta: tentaremos mostrar que a arte autêntica tem por sua essência uma tendência desfeitizadora – no sentido antes mencionado –, à que não se pode renunciar sob pena de se autodissolver. Não nos interessa mais do que mostrar essa tendência capital, e nos basta com que apareçam o fato e o modo de eficácia de sua validade estética em alguns complexos essenciais que determinam decisivamente a relação do homem com seu mundo circundante.
Notas de rodapé:
(1) MARX, O capital, cit., p. 38 e s. (retornar ao texto)
(2) IBID, p. 41. (retornar ao texto)
(3) M. Arnold, Essays in Criticism [ Ensaios de Crítica – ndt], Londres, 1905, p. 143. (retornar ao texto)
(4) MARX – Kapital, I, p. 42. (retornar ao texto)
(5) T. S. Eliot – The Use of Poetry [O Uso da Poesia – ndt], cit., p. 111. (retornar ao texto)
(6) Cf. sobre o duplo sentido da imediação neste contexto, minha troca de correspondência com Anna Seghers em Problemas do Realismo, cit. p. 250 ss, assim como os dois primeiros capítulos de meu livro Contra o realismo mal compreendido, Hamburgo, 1958. (retornar ao texto)
(7) MARX, Kapital, I, cit., p. 46. (retornar ao texto)