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As reflexões que seguem não pretendem em nenhum ponto dar uma análise filosófica precisa e esgotar o pensamento próprio da cotidianidade. Tampouco pretendem oferecer uma história – nem que somente fosse filosófica – de como se separam deste solo comum os reflexos científicos e estéticos da realidade. A dificuldade principal que notamos aqui é a falta de investigações prévias. Até o presente, a teoria do conhecimento muito pouco se preocupou do pensamento vulgar cotidiano. É essencial à atitude de toda epistemologia burguesa, e, sobretudo da idealista, o remeter, de um lado, todas as questões genéticas do conhecimento à antropologia, etc., e o não estudar, por outro lado, mais do que os problemas das formas mais desenvolvidas e puras do conhecimento científico. Isto até tal ponto que as ciências não naturais, não “exatas” – como as históricas, por exemplo – não foram submetidas senão tardiamente a uma análise epistemológica; e isso ocorreu então, por regra geral, de um modo que, em consequência de sua tendência irracionalista, mais confundiu do que iluminou. As investigações sobre a particularidade do estético que se ocuparam do reflexo estético da realidade – coisa nada frequente – não foram pelo geral mais além de uma abstrata acentuação da diversidade existente entre a vida estética e a ciência. Em questões como estas o pensamento metafísico põe ao conhecimento obstáculos insuperáveis. Pois seu “Sim ou Não” nega o conhecimento de passagens fluidas, as quais, entretanto, nos apresentam como problemas a resolver, tanto no curso da vida prática quanto no estudo dos períodos de gênese histórico-social da arte. O caráter metafísico da oposição, também rígida, entre os problemas genéticos e de vigência ou validade é outro obstáculo a mais nesse sentido. Somente o materialismo dialético e histórico se encontrará em situação de elaborar um método histórico-sistemático para a investigação desses problemas.
O posicionamento metodológico geral está sobre esta base completamente claro. No que segue se tenta mostrar a capacidade de iluminar esse posicionamento. Destaquemos agora simplesmente, antecipando-nos ao próprio trabalho, o ponto de vista mais geral: os reflexos científico e estético da realidade objetiva são formas de reflexo que se constituíram e se diferenciaram, cada vez mais refinadamente, no curso da evolução histórica, e que têm na vida real seu fundamento e consumação última. Sua particularidade se constitui precisamente na direção que exige o cumprimento, cada vez mais preciso e completo, de sua função social. Por isso na pureza - surgida relativamente tarde – em que repousa sua generalidade científica ou estética, constituem os dois polos do reflexo universal da realidade objetiva; o fecundo ponto médio entre esses dois polos é o reflexo da própria realidade da vida cotidiana. Essa tripartição das relações do homem com o mundo externo, que aqui somente indicamos e mais tarde desenvolveremos, foi muito claramente reconhecida por Pavlov: “Até o aparecimento do Homo Sapiens, os animais tiveram comunicação com seu mundo circundante apenas as impressões imediatas dos diversos agentes que atuavam sobre os distintos receptores dos animais e cujos estímulos se dirigiam às correspondentes células do sistema nervoso central. Estas impressões são para os animais os únicos sinais dos objetos do mundo externo. Com a origem do homem se produzem, desenvolvem-se e se aperfeiçoam sinais extraordinários de segunda ordem, isto é, daqueles primeiros sinais em forma de palavras ditas, ouvidas e visíveis. Este predomínio dos novos sinais não foi possível senão pela enorme importância das palavras mesmo estas não eram e não são mais que os sinais segundos da realidade (...). Porém, ainda sem aprofundar mais neste tema importante e amplo, há que observar que, em consequência do segundo sistema de sinais e graças à persistência das velhas formas de vida, a massa de homens se divide em um tipo artístico, outro pensador e um tipo médio. Este último enfaixa o trabalho dos sistemas na medida necessária. Esta divisão pode se reconhecer a propósito de indivíduos humanos e inclusive em nações inteiras”(2).
Assim, pois, a pureza do reflexo científico e estético se diferencia, de um lado, gritantemente das complicadas formas mistas da cotidianidade, e por outro lado, vê sempre como se dissolvem essas fronteiras, porque as diferenciadas formas de reflexo nascem das necessidades da vida diária, têm que dar resposta a seus problemas e, ao voltar-se a misturar muitos resultados de ambas com as formas de manifestação da vida cotidiana, tornam esta mais ampla, mais diferenciada, mais rica, mais profunda, etc., levando-a constantemente a níveis superiores de desenvolvimento. Sequer se podem imaginar uma real gênese histórico-sistemática do reflexo científico o do artístico sem o esclarecimento dessas interações. Por isso é imprescindível, para captar filosoficamente os problemas que aqui se posicionam , nunca perder de vista em nossas considerações a dupla interação com o pensamento da vida cotidiana nem a particularidade específica e em seu desenvolvimento das duas formas diferenciadas.
Mas o estudo filosófico do reflexo tem um pressuposto também insuspeitável e que é preciso esclarecer, em suas linhas básicas e mais gerais pelo menos antes de poder empreender uma discussão de seus problemas específicos. Se quisermos estudar o reflexo na vida cotidiana, na ciência e na arte, interessando-nos por suas diferenças, temos que recordar sempre claramente que as três formas refletem a mesma realidade. No idealismo subjetivo nasce a ideia de que as diversas espécies da ordenação humana do reflexo se referem a outras tantas realidades autônomas mas produzidas pelo sujeito, as quais não têm entre si contato algum. Simmel exprimiu isto de modo mais penetrante e coerente ao falar por exemplo da religião: “A vida religiosa torna a criar o mundo, a existência inteira em um determinado tom, de tal modo que, por sua pura ideia, não pode cruzar-se com as imagens do mundo construídas com outras categorias, nem podem contradizer-se com elas”(3). O materialismo dialético considera, ao contrário, a unidade material do mundo como um fato indiscutível. Todo reflexo o é, portanto, dessa realidade única e unitária. Mas disso não se segue – como não seja para o materialismo mecanicista – que toda refiguração dessa realidade tenha de ser simples fotocopia da mesma. (Trataremos mais detalhadamente este problema. Aqui deve bastar a observação de que os reflexos reais surgem na interação do homem com o mundo externo, sem que a seleção, a ordenação, etc., que isso carrega tenha de ser forçosamente uma ilusão ou deformação subjetiva, mesmo que sem dúvida o seja em alguns casos). Quando, por exemplo, na vida cotidiana, o homem fecha os olhos para perceber melhor determinados matizes audíveis do mundo circundante, essa eliminação de uma parte da realidade a refletir pode permitir-lhe captar o fenômeno que naquele momento lhe interessa dominar mais exata, plenamente e com essa aproximação que aquela que pode conseguir sem esse prescindir do mundo visível. A partir dessas manipulações quase instintivas discorre um caminho muito tortuoso que leva até o reflexo no trabalho, ao experimento, etc., e até a ciência e a arte. Mais tarde estudaremos com detalhe as diferenças e até oposições que assim se produzem no reflexo da realidade. O que é preciso reter aqui resolutamente, para começar, é que sempre se trata de refletir a mesma realidade objetiva, e que esta unidade do objeto último é forma das diferenças e das oposições.
Se sobre esta base contemplamos agora as interações da vida cotidiana com a ciência e a arte, comprovaremos que o reconhecimento, por mais claro que seja, dos problemas que se posicionam a seu respeito não significa ainda, pelo contrário, que tais problemas possam ser hoje concretamente resolvidos. Seja isto dito sobretudo à respeito da história da paulatina, desigual e contraditórias diferenciação das três espécies de reflexo. Sem dúvida podemos identificar intelectualmente e de um modo geral sua originária, caótica mistura no estádio inicial da humanidade primitiva, na medida em que o conhecemos. Por outro lado, na história escrita da humanidade já contemplamos uma diferenciação desenvolvida progressivamente; mesmo também, como veremos contraditoriamente. Também estará fora de discussão a continuidade histórica entre esses pontos extremos. Mas nosso conhecimento atual acerca desse processo não basta para reconhecê-lo de um modo concreto. Esta deficiência não se deve somente ao desconhecimento dos fatos histórico, como também, através de muito profundos vínculos, a obscuridade dos problemas básicos filosóficos, de princípio. Para romper esse círculo mágico da ignorância temos, pois, de lançar-nos valorosamente ao esclarecimento filosófico de tipos básicos e das etapas decisivas do processo de diferenciação, mas sem perder nunca a consciência que nosso conhecimento é fragmentário. Por filosófico que seja nosso método sempre deve conceber os princípios da visão social. Marx descreveu e determinou com clareza o método de uma tal aproximação a épocas muito remotas e frequentemente esquecidas pelo que faz à história das formações e categorias econômicas. Lemos nele: “A sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida e múltipla da produção. As categorias que expressam seu comportamento, a compreensão de sua articulação, fornecem por isso uma compreensão da articulação e das relações de produção de todas formações sociais desaparecidas e com cujos elementos e restos se construiu ela própria acarretando ainda relíquias em parte não superadas e desenvolvendo até plenos significados o que naquelas outras sociedades eram simples tentativas, etc. Há na anatomia do homem a chave para compreender a do macaco. Por outro lado, as tentativas que apontam espécies superiores nos animais inferiores não podem entender-se mais que quando se conhece já o superior. Assim a economia burguesa oferece a chave para a compreensão da antiga, etc. Mas não no sentido dos economistas que embotam todas as diferenças históricas e veem em todas as formações sociais a própria economia burguesa”(4). Também em nosso terreno é a anatomia do homem a chave da do macaco. Certamente, que dado o nível atual de nossa compreensão e nossos conhecimentos, se poderia conseguir apenas uma iluminação aproximada das tendências mais importantes e dos pontos nodais decisivos. Mas tão pouco é necessário mais para as finalidades de nossas investigações atuais. Esperemos que delas partam incitações a posteriores estudos que, sem dúvida, poderiam corrigir, muito do aqui exposto.
Acrescentaremos o seguinte pelo que diz respeito ao método geral: nossas investigações limitam-se ao homem. Já a importância do segundo sistema de sinalização pavloviano, a linguagem, exige uma clara delimitação metodológica a respeito do mundo animal no qual não se apresentam os mencionados sinais. Sem dúvida, será sempre uma tarefa importante a de estudar com detalhe a origem e o desdobramento dos reflexos condicionados no mundo animal, pois já com eles começa certa elaboração da realidade objetiva imediatamente refletida, a qual alcança nos animais superiores certo grau de diferenciação. Mas um estudo detalhado desse ciclo problemático cai fora do âmbito de nosso presente trabalho. Somente ocasionalmente voltaremos a referirmos a ele, com a simples finalidade de predicar delimitações precisas em alguns casos concretos, ou com a de esclarecer algumas zonas de passagem.
Não há dúvida que as afirmações de Pavlov devem entender-se e interpretar-se sempre à luz do materialismo dialético. Pois por fundamental que seja seu segundo sistema de sinalização – a linguagem – para a delimitação de homem e animal, o certo é que exige seu real sentido e sua generosa fecundidade quando, com Engels faz(5), se dá o peso adequado ao nascimento simultâneo e a inseparabilidade factual de trabalho e linguagem. Que o homem tenha “algo a dizer” que não passe dos limites do animal se deve diretamente ao trabalho e é um fato que se ultrapassa – direta ou indiretamente, e, em fases já tardias, através, frequentemente, de muitas mediações – em ligação com o desenvolvimento do trabalho. Por isso não nos referiremos muito, nem sequer polemicamente, aos esforços de Darwin por descobrir as categorias de arte na vida animal e por deduzir delas suas manifestações humanas. Cremos que o trabalho (e, com ele, a linguagem e seu mundo conceitual) cria aqui uma fissura tão larga e profunda que a herança animal, às vezes sem dúvida presente, não tem peso decisivo; de qualquer modo, é certo que não pode ser útil para esclarecer os fenômenos inteiramente novos. Com isto, como teremos ocasião de mostrar mais à frente não se quer negar de modo algum o fato de uma tal herança animal. Antes, pelo contrário, pensamos que as tendências, presentes na biologia e na antropologia recentes, a estabelecer uma diferença absoluta entre o homem e o animal, ignoram totalmente muitos fatos importantes. Mas, de qualquer maneira, não utilizaremos resultados, da antropologia senão para fins muito precisamente delimitados, para cujo adequado conhecimento tem precisamente , uma relevância decisiva a inseparabilidade de trabalho e linguagem, ou seja, o que separa o homem do animal.
Ao empreender agora uma breve análise do pensamento da vida cotidiana temos que indicar, além da mencionada escassez de trabalhos anteriores, as seguintes dificuldades temáticas que sem dúvida alguma são causa, parcial ao menos, de que a cotidianidade, apesar de ser um campo de suma importância por açambarcar a maior parte da vida humana, haja sido tão pouco estudada filosoficamente. A dificuldade principal reside em que a vida cotidiana não conhece objetivações tão cerradas como a ciência e a arte. Isto não significa que careça totalmente de objetivações. A vida humana, seu pensamento, seu sentimento, sua prática e sua reflexão, são inimagináveis sem objetivação. Mas, prescindindo inclusive de que todas as objetivações autênticas tem um papel de importância na vida cotidiana, ocorre além disso que as formas básicas da vida humana específica, o trabalho e a linguagem, têm essencialmente em muitos aspectos o caráter de objetivações. O trabalho não pode se produzir senão como ato teleológico:” Suponhamos o trabalho de uma forma que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha realiza operações que se parecem com a de um tecelão, e uma abelha pode deixar envergonhado, pela construção de suas células, a mais de um arquiteto humano. Porém o que distingue desde o início o pior arquiteto da melhor abelha é que o primeiro construiu a célula na sua cabeça antes de moldá-la na cera. Ao final do processo de trabalho se produz um resultado que já existia ao início do mesmo na representação do trabalhador, ou seja, idealmente. O trabalhador não opera apenas uma transformação formal do natural; atua além de seus fins no natural, fim que ele conhece, que determina o tipo e o modo de seu fazer, como uma lei, e ao qual tem que submeter sua vontade”(6).
Estudemos, pois, sobre essa base, os momentos do trabalho que o determinam como fator fundamental da vida cotidiana e de seu pensamento, ou seja, do reflexo da realidade objetiva na cotidianidade. Marx indica antes de tudo que se trata de um processo histórico no qual se produzem transformações qualitativas, tanto objetiva quanto subjetivamente. Mais à frente teremos várias ocasiões de estudar o significado concreto das mesmas. Agora o mais importante é notar que Marx, em umas breves sugestões, distingue três períodos essenciais. O primeiro se caracteriza “pelas primeiras formas do trabalho, animais e instintivas”, como estádio prévio ao desenvolvimento que já o superou quando alcança o nível , ainda pouco articulado, da circulação das mercadorias. O terceiro é a variedade da economia mercantil desenvolvida pelo capitalismo, variedade que mais adiante teremos de estudar com detalhes e na qual a irrupção da ciência aplicada ao trabalho produz transformações decisivas. Nesta fase o trabalho deixa de determinar-se primariamente pelas forças somáticas e intelectuais do trabalhador. (Período do trabalho com máquinas, crescente determinação do trabalho pelas ciências). Entre esses dois período tem lugar o desenvolvimento do trabalho a um nível menos complicado que o terceiro e profundamente vinculado às capacidades pessoais dos homens (período do artesanato, da proximidade entre arte e artesanato), o nível que é pressuposto histórico do terceiro período.
Os três períodos tem em comum o traço essencial do trabalho especificamente humano, o princípio teleológico: que o resultado do processo do trabalho “já existia ao princípio do mesmo na representação do trabalhador, ou seja, idealmente”. A possibilidade deste tipo de ação pressupõe certo grau de reflexo correto da realidade objetiva na consciência do homem. Pois sua essência, como diz Hegel, que reconheceu claramente esta estrutura do trabalho e que se remete também Marx em suas considerações, consiste em que “faz que a natureza se desgaste contra si mesma, a contempla serenamente e governa assim com pouco esforço o todo”(7). É claro que esta atividade de governar os processos naturais – inclusive ao nível mais primitivo – pressupõe o reflexo aproximadamente correto dos mesmos, inclusive quando as exigências generalizadoras deste reflexo são falsas. Pareto descreveu acertadamente esta ligação da correção do detalhe com a fantasmagoria do geral: “Pode-se dizer que as combinações realmente eficazes, como a consequência do fogo com sílex, empurram aos homens a crer na eficácia das combinações puramente imaginativas”(8).
Porém se tais resultados do reflexo da realidade são próprios da vida cotidiana e de seu pensamento, então é claro que o problema das objetivações – isto é, de seu escasso desenvolvimento – nesta esfera da vida não se deve entender senão muito elasticamente, dialeticamente, se não queremos violentar as tendências básicas estruturais e evolutivas. Não há dúvida que no trabalho se produz determinada espécie de objetivação (como na linguagem, que constitui também um momento fundamental da vida cotidiana). E não somente no produto do trabalho, a propósito do qual não haveria discussão alguma, mas também no processo do trabalho. Como a acumulação das experiências cotidianas, o hábito, o exercício, etc., fazem que se repitam e se desenvolvam determinados movimentos em cada processo do trabalho, assim como sua seriação quantitativa e qualitativa, sua interpenetração, e seu completar-se e reforçar-se, et., o processo exige necessariamente para o homem que o realiza o caráter de certa objetivação. Porém esta, diferente da fixidez, muito mais enérgica, das formações produzidas pela arte ou a ciência, é de uma natureza muito mais mutável e fluida. Pois, por mais enérgica que seja a ação dos princípios conservadores e estabilizadores do processo do trabalho da vida cotidiana (especialmente em seus estados iniciais), influencia exemplificada prototipicamente pela força das tradições na agricultura ou no artesanato pré-capitalista, o fato é que cada processo concreto de trabalho existe ao menos a possibilidade abstrata de afastar-se das tradições presentes, tentar algo novo ou atuar, em certas condições, sobre o velho para o modificar.
Visto muito universalmente, isso não carrega nenhuma diferença essencial em relação à prática dos cientistas. Para começo, também estes vivem sua própria cotidianidade no senso da vida cotidiana dos homens. Por isso seu comportamento individual em relação à objetivação de sua atividade própria não tem por quê diferenciar-se qualitativamente, por princípio, de suas demais atividades não profissionais, especialmente em fases de divisão social do trabalho ainda pouco desenvolvida. Porém se contemplarmos, não simplesmente do ponto de vista do sujeito ativo, como também do objeto, podemos registrar já importantes diferenças qualitativas. Estas residem não já na alterabilidade dos resultados – pois os resultados da ciência se alteram com o enriquecimento e aprofundamento do processo reflexo da realidade, como os do trabalho - ; o decisivo é antes o grau de abstração, de afastamento em relação à prática imediata da vida cotidiana, com a que desde logo, ficam em todo caso vinculados uns e outros tanto em seus pressupostos quanto em suas consequências. Porém a ligação referida é para a ciência sempre um vínculo mediado, com maior ou menor complicação e afastamento, enquanto que para o trabalho, mesmo quando seja uma aplicação de conhecimento científicos muito complicados, trata-se de uma ligação de caráter predominantemente imediato. Quanto mais imediatas sejam essas relações – o que significa também que a intenção da atividade se orienta para um caso particular da vida (como é sempre no caso do trabalho) - , tanto mais débil, mais cambiante e menos fixada é a objetivação . Dito mais precisamente: quanto mais robustas sejam as possibilidades de sua fixação – que em algum caso pode ser, entretanto, sumamente rígida – não proceda da essência da coisidade objetiva, mas de um fundamento subjetivo, frequentemente, sem dúvida, psicológico-social (tradição, hábitos, etc.). Isto significa que os resultados da ciência permanecem fixados como formações independentes do homem com muito maior energia que os do trabalho. Este desenvolvimento se manifesta no fato de que uma formação é corrigida e substituída por outra sem perder sua objetividade antes fixada. E isto até se acentua na prática das ciências sublinhando geralmente as modificações praticadas. Nos produtos do trabalho essas variações podem, por outro lado, produzir-se inclusive como fenômenos individuais; que frequentemente se deem a conhecer explicitamente – como ocorre no capitalismo – pode ter finalidades de mercado. O capitalismo tende em geral a aproximar o trabalho e seu resultado à estrutura da ciência.
Como é natural, não estamos analisando aqui mais que os dois polos, sem levar em conta as numerosas formas de passagem que se produzem por causa das interações já aludidas e que mais tarde teremos de estudar cuidadosamente. Se considerarmos a totalidade das atividades humanas – todas as objetivações, não somente a ciência e a arte, mas também as instituições sociais, entendidas como depósito daquelas atividades – essas passagens se apresentam categoricamente. Porém como nossa presente investigação não se põe finalidades tão amplas e afastadas, mas que somente pretende explicitar alguns sinais importantes essenciais da vida cotidiana, em sua oposição à ciência e à arte, teremos e podemos contentar-nos em estabelecer tais contrastes. Tanto mais que o trabalho, como fonte permanente do desenvolvimento da ciência (terreno constantemente enriquecido por ele), alcança provavelmente na vida cotidiana o grau de objetivação suprema da cotidianidade. A este propósito necessário é apelar à evolução histórica do trabalho, a que aludimos no começo. Posto que, a interação com a ciência tem muito maior importância que no passado. Isto não suprime a básica particularidade do pensamento da cotidianidade, a que em seguida atenderemos; a recente recepção de elementos científicos não o transforma em comportamento realmente científico.
Estes fatos podem ser observados com maior fruto na interação entre a ciência e a indústria moderna. Historicamente é, fora de dúvida, verdade que a linha capital dessa evolução consiste em que a ciência penetre totalmente na indústria, isto é, no processo de trabalho. E pode afirmar-se com objetividade histórica – como demonstrou detalhadamente Bernal – que a teimosia de determinadas formas de investigação separadas da vida, assim como, por outro lado, a escassa inteligência, o conservadorismo, etecetera, dos industriais, impossibilitaram durante muito tempo e em numerosos casos a aplicação de resultados científicos já consolidados. Este fenômeno não nos interessa aqui do ponto de vista da história da indústria, da técnica ou da ciência, nos quais é óbvio “que os motivos ostensivos e inclusive os motivos realmente ativos do homem em sua ação histórica não são de modo algum as causas últimas dos acontecimentos históricos”(9) senão que o é a cotidianidade cujo primeiro lugar ocupam esses motivos “ostensivos”; e estes mostram o – relativamente – baixo nível das objetificações na decisão do homem à ação, o caráter fluido que tem neste campo muitas formações em si mesmas consideravelmente objetivadas, e, por último, o papel frequentemente decisivo do hábito, a tradição, etecetera, nessas decisões. O característico é que na vida subjetiva da cotidianidade tem lugar uma constante oscilação entre decisões fundadas em motivos da natureza instantânea e fugaz e decisões baseadas em fundamentos rígidos, mesmo que poucas vezes fixadas intelectualmente (tradição, costumes).
Porém o trabalho é a parte da realidade cotidiana que está mais próxima da objetivação científica. As relações, infinitamente várias e complicadas, entre os indivíduos humanos (matrimônio, amor, família, amizade, etc.) – para não falar já das incontáveis relações fugazes - , as relações dos homens com as instituições estatais e sociais, as diversas formas de ocupação subsidiária de distração (o desporto, por exemplo), fenômenos da cotidianidade como a moda, etc., confirmam a veracidade dessas análises. Trata-se sempre da rápida mudança, frequentemente repentino, entre rigidez conservadora na rotina ou a convenção e ações, decisões, etc., cujo motivos – subjetivamente ao menos, porém isto é já muito importante precisamente para estas investigações – apresentam um caráter predominantemente pessoal. Confirma esta afirmação o fato de que especialmente na cotidianidade da sociedade capitalista, na qual os motivos predominam na superfície individual, se manifeste uma grande uniformidade do ponto de vista objetivo-estatístico. Em sociedades pré-capitalistas, vinculadas à tradição, esta polarização se apresenta de um modo qualitativamente diverso, porém sem suprimir a essencial semelhança de estrutura.
No fundo de tudo o dito até aqui se esconde outro traço essencial do ser e o pensar cotidianos: a vinculação imediata da teoria e a prática. Esta afirmação requer algum comentário para ser entendida corretamente. Pois seria totalmente falso supor que os objetos da atividade cotidiana foram objetivamente, em si, de caráter imediato. Ao contrário. Não existem mais do que a consequência de um ramificado, múltiplo e complicado sistema de mediações que se complica e ramifica cada vez mais no curso da evolução social. Porém, na medida em que se trata de objetos da vida cotidiana, se encontram sempre dispostos, e o sistema de mediações que os produz parece completamente esgotado e obscurecido em seu imediato e desnudado ser e ser-assim. Que se pense em fenômenos técnico-científicos e, sobretudo, em outros de natureza econômica complicada, como o carro de praça, o ônibus, o bonde, etc., que se pense em seu uso na vida cotidiana, no modo como figuram nela, e se verá claramente em seguida essa imediação. É parte da necessária economia da vida cotidiana o fato que, por temo médio, todo seu meio-ambiente – na medida em que funcione bem – não se recorra nem estime senão em base de seu funcionamento prático (e não na base de sua essência objetiva). E inclusive em muitos casos aquilo que não funcione bem no despertar senão que reações análogas. Isto é naturalmente – visto assim, como um cultivo em proveta – um produto da divisão capitalista do trabalho. Em níveis de evolução mais primitivos, nos quais a maioria dos instrumentos, etc., da vida diária são produzidos por aqueles que o utilizam, ou então ao menos se produzem segundo um modo de produção universalmente conhecido, este tipo de imediação é muito menos desenvolvido e atrativo. Somente uma divisão social do trabalho que já está desenvolvida e faz de cada ramo da produção e de seus momentos parciais outras tantas especialidades gritantemente delimitada impõe ao homem médio ativo na vida cotidiana essa imediação.
A estrutura geral deste modo de comportamento remonta até a pré-história, mesmo, que naturalmente, em formas menos desenvolvidas. Pois a unidade imediata de teoria (isto é, reflexão, modo de refletir os objetos) e a prática é fora de dúvida sua forma mais antiga: muito frequentemente, inclusive na maioria dos casos, as circunstâncias impõem aos homens uma ação imediata. Certamente que o papel social da cultura ( e sobretudo o da ciência) consiste em descobrir e introduzir mediações entre uma situação previsível e o melhor modo de atuar nela. Porém uma vez existentes essas mediações, uma vez introduzidas no uso geral, perdem para os homens que atuam na vida diária seu caráter de mediação, e assim reaparece a imediação que descrevemos. Nisto pode se ver claramente – e disso falaremos com detalhe mais à frente – o íntimo que é a interação entre a ciência e a vida cotidiana: os problemas que se posicionam à ciência nascem direta ou mediatamente da vida cotidiana, e esta se enriquece constantemente com a aplicação dos resultados e métodos elaborados pela ciência.
Porém para a compreensão desta ligação não basta identificar essa interação constante. Já aqui temos de chamar a atenção – pois neste sentido procede nossa analise do pensamento da cotidianidade – sobre o fato de que existem diferenças qualitativas entre os reflexos da realidade, entre suas elaborações espirituais na ciência e na cotidianidade. Porém essas diferenças qualitativas entre reflexos da realidade, entre suas elaborações espirituais na ciência e na cotidianidade. Porém essas diferenças não estabelecem uma dualidade rígida e insuperável, como costuma pressupor a epistemologia burguesa em seu manejo destes problemas; é produto da evolução social da humanidade. A diferença e, com ela, a independência – relativa – dos métodos científicos em relação às necessidades imediatas da cotidianidade, sua ruptura com hábitos mentais, se produzem precisamente para melhor servir a mencionadas necessidades, com mais eficácia do que seria possível mediante uma direta unidade metódica. A diferença entre a arte e a cotidianidade, sua interação, análoga pelo que faz à estrutura mais universal, está também a serviço dessas necessidades sociais. O tratamento concreto deste ponto suporia agora muitos pressupostos e muito espaço para expor fenômenos muito diversos. Porém que estes problemas não se possam tratar senão mais adiante não significa que sua origem histórica seja tardia. A polarização da vida cotidiana , de seu pensamento nas duas esferas mais objetivadoras e menos imediatas da arte e da ciência é um processo tão simultâneo como as interações que acabamos de descrever.
O caráter específico da imediação, recém-referida, da vida e do pensamento cotidianos se expressa clamorosamente segundo o modo do materialismo espontâneo que é próprio desta esfera. Toda análise seria e algo livre de preconceitos tem de mostrar que o homem da vida cotidiana reage sempre aos objetos de seu meio de um modo espontaneamente materialista, independentemente de como se interpretam depois essas reações do sujeito na prática. Este fato se segue da essência do trabalho. Todo trabalho supões um complexo de objetos, de leis que o determinam em sua espécie, em seus necessários movimentos , operações, etc., e a consciência humana trata espontaneamente tudo isto como entidades que existem e funcionam independentemente dela. A essência do trabalho consiste precisamente em observar, decifrar e utilizar esse ser e devir que são em-si. Inclusive ao nível no qual o homem primitivo não produz ainda ferramentas, senão que se limita a tomar pedrinhas de determinadas formas para lançá-las ou utilizá-las em suas necessidades, tem de praticar-se já certas observações sobre as pedras que por sua dureza, sua forma, etc., são adequadas para determinadas operações. Seja o fato de que o homem primitivo escolha a pedrinha adequada, seja a natureza de sua eleição mostra que o homem é mais ou menos consciente de que tem que atuar em um mundo externo que existe independentemente dele e que, portanto, tem que tentar entender e dominar o máximo possível com o pensamento, mediante a observação, esse meio que existe independentemente dele, com o objetivo de poder existir, de poder evitar os perigos que lhe ameaçam. Também o perigo, como categoria da vida interior humana, mostra que o sujeito é mais ou menos consciente de encontrar-se diante de um mundo externo independente de sua consciência.
Porém esse materialismo tem um caráter puramente espontâneo, dirigido aos problemas imediatos da prática e, por conseguinte, limitado. Por isso o idealismo filosófico, no período de seu florescimento imperialista se separou orgulhosamente dele e lhe ignorou filosoficamente. Afirma, por exemplo Rickert, que não tem nada contra o realismo “ingênuo”: “[O realismo ingênuo] não conhece uma realidade transcendente, nem o sujeito epistemológico, nem a consciência supraindividual. Não é uma teoria científica seja preciso combater cientificamente, mas um complexo de opiniões não pensadas nem determinadas com precisão, que bastam para viver e que podemos deixar tranquilamente àqueles que somente apenas a viver”(10). Na época da crise a seguir da primeira guerra mundial, quando o idealismo subjetivo se vê cada vez mais obrigado a robustecer suas posições mediante argumentos antropológicos, os problemas da vida cotidiana – e entre eles o do “realismo ingênuo” (e os idealistas burgueses costumam entender por esta expressão o materialismo espontâneo) – crescem para ele em importância crescente. Já em Rothacker lemos: “Mas o mundo inteiro em que vivemos e operamos praticamente, com inclusão, naturalmente, das ocupações políticas, econômicas, religiosas e artísticas, move-se em ‘categorias vitais’, cujo conteúdo essencial, é tanto quanto ‘imagem pré-científica do mundo’, exige urgentemente um tratamento explícito e constitui um dos numerosos sistemas mal tocados pela ‘antropologia filosófica’. Hic Rhodus, hic salta! Nunca se insistirá o bastante no fato de que todas nossas grandes decisões vitais tem lugar em um ‘mundo realista-ingênuo’, que a inteira história universal e, com ela, um inteiro tema de todas as ciências históricas e todas as filosofias, se desenvolve neste mundo realista-ingênuo, é um argumento do maior peso também para o tratamento de problemas epistemológicos"(11). Este reconhecimento do problema não lhe serve, certamente, a Rothacker senão para levantar o idealismo subjetivo de um modo mais consequentemente solipsista que antes, pois sua epistemologia subjetivista crê achar um apoio biológico na teoria dos mundos circundantes de Uexküll. Nesse contexto, o materialismo espontâneo da vida cotidiana se converte em um modo de manifestação – sem dúvida complicado – do mundo circundante determinado pelos órgãos. Discutiremos esta teoria ao tratar o problema do Em-Si.
A força e a debilidade dessa espontaneidade caracterizam claramente, deste outro ponto de vista, a particularidade do pensamento cotidiano. Sua força se revela no fato de que nenhuma concepção do mundo, por mais idealista e solipsista que seja, consegue impedir que aquela espontaneidade funcione na vida e no pensamento da cotidianidade. Nem o mais fanático berkeleyano, quando ao atravessar a rua evita o automóvel ou espera que este passe, tem a sensação de estar entendendo-se somente com sua própria representação, e não com uma realidade independente de sua consciência. O esse est percipi [ser é ser percebido – ndt] desaparece sem deixar rastro na vida cotidiana do homem imediatamente ativo. E a debilidade desse materialismo espontâneo se manifesta no fato de que suas consequências para a concepção do mundo são escassíssimas, ou talvez nulas. Com toda comodidade, sem que a contradição chegue sequer a aflorar subjetivamente, pode coexistir na consciência humana com representações idealistas, religiosas, supersticiosas, etecetera. Desnecessário, para aduzir exemplos disto, retroagir à pré-história do desenvolvimento humano, quando as primeira experiência do trabalho e os grandes inventos nascidos delas se encontravam inseparavelmente unidos com representações mágicas. Também o homem atual se encontra muito frequentemente acoplados a fatos muito reais da vida – e compreendidos do correspondente modo materialista espontâneo – com representações supersticiosas, sem que o grotesco dessa vinculação chegue a ser em absoluto consciente. Certamente que ao estabelecer essa comparação não se devem esquecer as diferenças que se dão junto à analogia. O materialismo espontâneo dos homens primitivos estende-se também a fenômenos que por sua essência são de natureza consciente. Basta mencionar a interpretação dos sonhos. E inclusive quando se acrescenta à observação de fenômenos materiais explicações “espirituais”, estas são vividas a esse nível primitivo de um modo tão espontaneamente materialista como a própria realidade objetiva. Cassirer indicou com razão que o pensamento primitivo não demarca fronteira alguma entre a verdade e aparência, nem tampouco entre o “simplesmente ‘representado’ e a percepção ‘real’, entre o desejo e o cumprimento, entre a imagem e a coisa”(12). (A reação filosófica de nosso tempo quer achar na atitude primitiva em relação à imagem e a coisa o fundamento de uma nova concepção do mundo; tal é a tendência de Klages). E Cassirer alude neste contexto, como nós acabamos de fazer, ao modo como o primitivo toma objetivamente os sonhos. Esta enganosa “objetividade” dos sonhos está profundamente arraigada na vida cotidiana dos homens, como pode se ver o fato de que a distinção desempenhe algum papel nas considerações epistemológicas de Descartes(13). Essa homogeneidade, essa errônea unificação, vai progressivamente diminuindo nos estádios mais desenvolvidos. Assim, por exemplo, a superstição do homem moderna – que às vezes pode estar subjetivamente muito arraigada – costuma ir acompanhada por uma má consciência intelectual, ou seja, com a consciência de que se está tratando com um simples produto e de existência independente, de acordo com o materialismo espontâneo da cotidianidade. Não poderemos considerar aqui detalhadamente os muitos exemplos de passagem. Porém a situação se encontra substancialmente também na própria ciência. Os epistemólogos idealistas costumam falar com irônica piedade do “realismo ingênuo” (ou seja, o materialismo) de destacados cientistas da natureza, e, por outro lado, Lenin(14) registra várias vezes que inclusive cientistas que em sua teoria do conhecimento professam o idealismo subjetivo são em sua prática científica materialistas espontâneos.
A ignorância teórica deste fator primário da vida e do pensamento cotidianos faz com que fiquem sem esclarecer muitas coisas importantes do pensamento humano. Assim, por exemplo, vários investigadores da pré-história assinalaram certa afinidade entre a magia primitiva e o materialismo espontâneo que acabamos de descrever. Porém há uma diferença importante qualitativa, e historicamente determinada, entre que a complementação idealista (religiosa, mágica, supersticiosa) do materialismo espontâneo se encontre, por assim dizer, somente nas margens da imagem prática do mundo, ou que recubra intelectual e emocionalmente os fatos estabelecidos por mencionada imagem. O caminho que vai do segundo caso ao primeiro é a linha evolutiva essencial – tantas vezes, de inicio, ziguezagueante – da cultura. Porém essa evolução não é possível senão porque o pensamento humano supera a imediação da cotidianidade no referido sentido, ou seja, porque se supera a conexão imediata entre o reflexo da realidade, sua interpretação espiritual e a prática, com o que conscientemente se insere uma série crescente de mediações entre o pensamento – que assim chega a ser propriamente teórico - e a prática. Somente graças a esse ato de superação pode abrir-se um caminho do materialismo espontâneo da vida cotidiana até ao materialismo filosófico. Como veremos mais à frente, esta evolução se exprimiu pela primeira vez claramente na Antiguidade Grega. O começo de uma separação definitiva de idealismo e materialismo filosófico teve lugar em Grécia com eficaz clareza. Cassirer(15) tem razão quando data com Leucipo e Demócrito a ruptura com o “pensamento fabuloso”.
A dificuldade desse processo pode se apreciar pela circunstância de que as primeiras tentativas de superar a espontaneidade do pensamento cotidiano costumam apresentar traços essencialmente idealistas. É muito interessante o fato de que Cassirer, partindo da identificação da imagem e coisa por primitivos chegue à seguinte conclusão: “Por isso se pode caracterizar como traço distintivo do pensamento fabuloso o carecer da categoria do ‘ideal’”(16). Com isso destacam mais claramente a essência e os limites do materialismo espontâneo primitivo: esse materialismo domina em uma época que não conhece ainda a oposição antinômica entre idealismo e materialismo. Esta oposição se desenvolve na luta contra o idealismo filosófico, que é de origem anterior ao do materialismo filosófico. O materialismo espontâneo da vida cotidiana conserva certamente alguns resíduos de situações primitivas, porém opera em uma ambiente que já conhece aquela diferença. Cai completamente fora do âmbito deste trabalho expor, mesmo evocativamente, o complicado processo desse desenvolvimento. Somente apresentaremos algumas observações sobre as causas sociais desse nascimento do idealismo. São muitos os motivos. Em primeiro lugar, a ignorância da natureza e da sociedade. Por essa ignorância, o homem primitivo mal tenta ir mais além das relações imediatas do mundo objetivo que se lhe dá diretamente, se vê obrigado a apelar a analogias não fundamentadas, ou insuficientemente fundamentadas, nas coisas, e isso partindo por regra geral de sua própria subjetividade. Em segundo lugar, a incipiente divisão social do trabalho cria a camada social que vai dispor do ócio necessário para refletir “profissionalmente” sobre os problemas como o que estamos comentando. Com isto, com a libertação em relação à necessidade de reagir sempre imediatamente ao mundo externo, se cria para esta camada social a distância necessária com a qual pode começar a superar a imediação espontânea da cotidianidade, sua deficiente generalização; porém, ao mesmo tempo, esta divisão do trabalho vai afastando cada vez mais do trabalho essa camada privilegiada com a possibilidade de um meditar mais profundo. Pois bem: o trabalho é a base mais importante do materialismo espontâneo da vida cotidiana, ainda que o seja também nas tendências idealistas na concepção do mundo. Recorde-se a descrição de Marx, segundo a qual o resultado do processo de trabalho preexiste sempre idealmente. É compreensível que, dado o predomínio da analogia, no pensamento primitivo, a respeito da causalidade e a ideia de lei, arranque daquela circunstância uma generalização analógica. Quando complexos de objetos ou de movimentos não explicados até o momento se projetam idealisticamente, religiosamente, etc., em um “Criador”, se trata na maioria dos casos de tal generalização analógica do lado subjetivo do processo de trabalho. (Lembre-se, para não mencionar mais do que um exemplo óbvio, o demiurgo, literalmente “artesão”, das representações religiosas gregas). O materialismo filosófico nasce em um nível posterior da evolução, na luta com essas concepções: é a tentativa de conceber todos os fenômenos a partir das leis de mudança da realidade independente da consciência. A descrição de sua luta com concepções idealistas do mundo não é assunto para este lugar.
Porém sim, devemos aludir a um ponto de vista relevante nesse contexto: a ligação entre as representações idealistas (religiosas) e o pensamento da cotidianidade. Todo passo adiante que dá o materialismo como concepção do mundo supõe um distanciamento em relação do tipo de consideração próprio da cotidianidade imediata, uma incipiente penetração científica em causas “não ostensivas” dos fenômenos e de seu movimento. Pelos limites deste reflexo científico da realidade – que, como veremos, significa um distanciamento das formas espirituais da cotidianidade e um se levantar acima delas – se produz necessariamente um retorno ao pensamento cotidiano. Um tal pensamento pode estar já muito desenvolvido formalmente, pode utilizar todas as formas e todos os conteúdos do reflexo científico da realidade: contudo sua estrutura básica estará sempre muito próxima da realidade cotidiana. Quando Engels, por exemplo, critica a concepção histórica do materialismo mecanicista e vê nela um retorno ao idealismo, sua argumentação se move no sentido que acabamos de descrever. Engels reprova a esse materialismo o tomar “como causas finais as forças ideais que atuam na história, em vez de investigar o quê há por trás delas, quais são as forças motoras dessas forças motoras. A inconsequência não consiste em reconhecer forças ideais, senão em não continuar penetrando mais além, até as causas que as movem”"(17). É claro que inclusive neste exemplo, ou seja, no caso de uma tendência filosófica que em outros terrenos alcançou um alto desenvolvimento, a essência do defeito metodológico consiste em não haver abandonado com suficiente radicalidade o ponto de vista do pensamento cotidiano imediato, e em não haver transformado suficientemente em reflexo científico o que é subjacente à cotidianidade. Estes exemplos mostram também a ininterrupta interação entre as duas esferas: no caso discutido, a intervenção do pensamento cotidiano no científico; contudo outros casos podem mostrar a influência inversa. A análise suficiente de tais exemplos mostraria que a elaboração do reflexo científico puro é imprescindível para o desenvolvimento da cultura da cotidianidade par formas superiores, e, por outro lado, que a prática da cotidianidade torne a inserir os acontecimentos da ciência na totalidade do pensamento cotidiano.
Já indicamos que a analogia é uma das formas originárias e dominantes da maior importância no pensamento cotidiano, tanto no primitivo quanto no atual; é nele o modo predominante de encadeamento e transformação do reflexo imediato da realidade objetiva. Não nos interessa aqui o problema lógico da analogia e da inferência analógica; contudo, mesmo que seja para esclarecer um pouco mais nosso problema, aduziremos agora algumas observações de Hegel. Este não considerou geneticamente esta questão, contudo de toda maneira oferece algumas evocações que mostram que viu na analogia e a inferência analógica, algo vinculado aos começos do pensamento. Assim, por exemplo, pegando a exposição da Phänomenologie fala do “Instinto da Razão” (não da razão já desdobrada em sua forma pura) “o qual faz adivinhar que esta ou aquela determinação empírica achada na natureza interna mantenha seu fundamento no gênero de um objeto, e segue adiante baseando-se nisso”(18). Já a expressão “adivinhar” sublinha o caráter primitivo da analogia. No mesmo lugar, certamente, Hegel acrescenta que a explicação do procedimento analógico nas ciências empíricas deu resultados importantes; contudo, por outro lado, do ponto de vista da ciência já desenvolvida, assinala claramente que a analogia nasce e tem aplicação por falta de indução, pela impossibilidade de esgotar todas as singularidades. Para defender o caráter científico do procedimento, Hegel apela à necessidade de distinguir cuidadosamente entre analogia “superficial” e a “profunda”. A analogia não pode ser fecunda para a prática mais que se a ciência delimita e isola com exatidão as determinações postas em analogia; a filosofia da natureza da escola de Schelling é para Hegel exemplo protótipo de um “jogo vazio com analogias vazias, externas”.
Tudo isto permite apreciar claramente a radical peculiaridade da analogia, sua vinculação, dificil de desgarrar, com o pensamento cotidiano. A evocação de Hegel a seu uso superficial não indica somente uma realidade geral – pois toda forma de interferência pode se utilizar superficial ou profundamente, sofistica e formalmente ou com adequação à coisa -, senão também uma profunda, radical e espontânea possibilidade de tal uso superficial, presente na analogia. Mesmo que não possamos entrar nos detalhes sobre os problemas históricos do pensamento analógico, devemos recordar que a aplicação simplesmente verbal dos conceitos é um perigo sempre ameaçador para a analogia. Prantl, recordando situações do Eutidemo platônico, evoca ao “princípio” sofístico de que “a expressão verbal tem que se aplicar por igual em todas as situações”, e vê com razão nele “o motivo de todas as inferências analógicas baseadas simplesmente na expressão linguística”(19). Contudo esse motivo que aparece assim em sua degeneração retórica ou sofística, desempenha sem dúvida – muitas vezes, sem traços de tais tendências – um papel importante no pensamento cotidiano, e tanto maior quanto menos desenvolvida está a ciência e, com ela, o tratamento crítico dos significados das palavras. A analogia é por sua natureza, realmente decisiva nas épocas primitivas, nas quais se consegue – especialmente no período mágico – uma significação de absoluto domínio sobre as formas da vida da comunicação, etc. É claro que a mistificada importância dos nomes, por exemplo, no pensamento primitivo também tende a favorecer muito estas tendências. Contudo tudo isso opera também, ainda que seja em menor intensidade, no pensamento cotidiano das culturas desenvolvidas; também nesta é a analogia um fator vivo na vida cotidiana dos homens. Quanto mais energicamente atua a ligação imediata da teoria e da prática, que destacamos, quanto mais próximas estejam na consciência dos homens, tanto maior é a eficácia da analogia. Contudo em tais situações o reflexo imediato da realidade fornece uma série de traços, notas características, etc., dos objetos que, na ausência de investigação exata, apresentam resultados surpreendentes parecidos. O imediato é então unir estreitamente com o pensamento esses traços – adensando-os com a força da generalização verbal – e obter deles consequências imediatas. Goethe – que, como veremos, considerou muito criticamente o pensamento analógico, contudo sublinhou repetidas vezes sua importância na prática cotidiana – observa esse perigo da “aproximação” na mencionada prática inclusive quando os homens superam a mera analogia e começam a pensar causalmente: “Um grande erro que cometemos consiste em imaginar sempre a causa próxima do efeito, como a corda está perto da flecha à que impulsiona; porém não podemos evitá-lo, porque a causa e o efeito se pensam sempre juntos e se aproximam consequentemente no espírito”(20).
Tal é, precisamente, o comportamento típico do homem da cotidianidade. E o fato de que a penetração da ciência na vida cotidiana elimine da prática um número crescente desses “curtos-circuitos” inferenciais, que um número cada vez maior de enunciados científicos corretos fundamente a prática da cotidianidade e chegue a ser um costume nela, não altera em nada a estrutura da mesma, tal como a esboçamos. Nas margens desses hábitos tomados da ciência, a analogia e a inferência analógica continuam florescendo quando se trata de fenômenos subjetivamente não-resolvidos, e determinam o comportamento e o pensamento da cotidianidade. E se isto é já assim pelo que faz ao enfrentamento espiritual e prático da realidade, ainda mais poderá afirmar-se pelo que diz respeito ao comércio dos homens entre si. O que na vida prática chamamos conhecimento do homem, momento imprescindível de toda colaboração, se baseia na maioria dos casos – especialmente quando chega a consciência – em uma aplicação espontânea de analogias. (Em um capítulo posterior examinaremos a psicologia do conhecimento do homem). Goethe, um dos poucos pensadores que estudou estas manifestações da vida com interesse por suas categorias, diz, entre outras coisas, sobre este papel da analogia: “Considero, que as comunicações mediante analogias são tão úteis quanto agradáveis: o caso análogo não nos impõe autoritariamente, não pretende provar nada; se põe em paralelo com outro sem fundir-se com ele. Um grupo de casos análogos não se unifica em uma série cerrada: são como uma boa reunião, que sempre estimula, mais do que pode dar”(21). E em outro lugar: “Não se deve reprovar o pensar por analogias: a analogia tem a vantagem de não fechar-se, nem querer propriamente nada definitivo”(22).
Como é natural, tudo isto não determina senão os polos extremos da ação da analogia no pensamento da vida cotidiana. Não consideramos aqui nossa tarefa o preencher o amplo e cambiante terreno intermediário. Porem já das indicações dadas se depreende o seguinte: a analogia e a inferência analógica que nasce dela pertencem à classe das categorias que nascem na vida cotidiana, tem um profundo arraigamento nela e expressam com suficiente adequação a relação da cotidianidade com a realidade, o tipo de seu reflexo e sua imediata conversão na prática; essa expressão é espontânea, contudo frequentemente supera inclusive as necessidades imediatas. Por isso – tal como são em si, tal como nascem desse solo – tem necessariamente um caráter duvidoso, dúplice: uma certa elasticidade, ausência de apoditicidade – traço no que Goethe viu sua relevância positiva para a vida cotidiana – e, ao mesmo tempo, uma imprecisão que pode esclarecer-se conceitualmente, experimentalmente, etc., e leva então ao pensamento científico, contudo que costumam desembocar no imobilismo, em uma fixação arbitrária no sofisma ou no vazio fantasioso.
Goethe chama também a atenção sobre outro aspecto da posição da analogia no reflexo da realidade: “Cada existente é um análogo de tudo o que existe; por isso a existência nos aparenta sempre simultaneamente separada e unida. Se segue-se muito fielmente a analogia, tudo se confunde em uma identidade; se evita-se se tem uma interrupção da consideração: uma vez como supra-vital, outra como morta”(23). O caminho real do erro é o exagero irresponsável; contudo também vemos que o contrário, a recusa cínica de semelhança mesmo não fundamentada, pode dar lugar a deformações. Isto é tão importante para a favorável ação das analogias na vida cotidiana quanto para o pensamento científico. Todas as passagens goethianas que citamos, a última e as anteriores, indicam o modo como a captação do mundo sob a forma de analogias pode conduzir na direção do reflexo estético. É ainda prematuro falar do problema propriamente dito, dado ao nível atual de nossa penetração no mesmo. Não podemos ainda mais do que indicar que a frouxidão e a elasticidade da analogia, sublinhadas por Goethe, constituem um terreno favorável para a comparação artística. Pois como a semelhança nunca perde sua referência ao assunto, como a analogia não se apresenta de modo algum com a pretensão de determinar de um modo nem aproximadamente completo os dois objetos ou grupos de objetos comparados, muita coisa que cientificamente seria recusável pode ser aqui virtude, mesmo naturalmente, também no terreno artístico um reflexo veraz da realidade é um pressuposto necessário: o que acontece é que o reflexo é qualitativamente de outra espécie. Porém toda este problema nos ocupará mais à frente.
A importância do pensamento analógico para a cotidianidade nos obrigou a tocar já um problema que está chamado a ocupar um lugar de destaque em nossas investigações posteriores, e cujas determinações precisas não podem ainda expor-se de um modo suficiente. Dissemos já em geral que o pensamento cotidiano, a ciência e a arte refletem a mesma realidade objetiva, contudo que – segundo os tipos concretos de objetivos originados na vida social dos homens – o conteúdo e a forma da refiguração têm e podem ser diferentes. Esta afirmação pode agora concretizar-se um pouco mais dizendo que o reflexo da mesma realidade acarreta a necessidade de trabalhar em todos os campos com as mesmas categorias. Pois, diferente do idealismo subjetivo, o materialismo dialético não considera as categorias como resultado de alguma enigmática produtividade do sujeito, mas como formas constantes e gerias da própria realidade objetiva. O reflexo desta não pode, portanto, ser adequado mais do que se a configuração na consciência contenha também essas formas como princípios formadores do conteúdo refletido. A objetividade destas formas categóricas se manifesta também no fato de que puderam usar-se durante muitíssimo tempo para refletir a realidade sem que se produzisse a menor consciência de seu caráter de categorias. Esta situação tem como consequência o que – em geral – o pensamento cotidiano, a ciência e a arte não somente refletem os mesmos conteúdos, senão que, além disso, os captem necessariamente como conformados pelas mesmas categorias.
Contudo já nosso tratamento do problema da analogia mostra algo que apontávamos desde o começa: que segundo a espécie de pratica social, segundo seus objetivos e os métodos condicionados por estes, o uso das categorias pode apresentar aspectos diversos e até, em muitos casos, opostos. Fases ou resultados do proceder analógico que podem dar fecundos resultados para a poesia resultarão talvez desfavoráveis para a ciência, etc. Teremos que ocuparmos muito deste problema ao concretizar a refiguração estética da realidade, e sempre que apareça estudaremos com detalhe tanto a comunidade quanto a diversidade das categorias, especialmente na ciência e na arte. Aqui nos limitaremos a indicar que as categorias não somente tem uma significação objetiva, senão também uma história objetiva e subjetiva. Historia objetiva, porque algumas categorias pressupõem um determinado estado de evolução do movimente de matéria. Assim, as categorias específicas que utiliza a ciência biológica nascem objetivamente com a origem da vida; e as categorias do capitalismo nascem com a gênese dessa formação, e, além disso, como Marx mostrou, suas funções no processo de formação não são de todo idênticas com as que tem na fase de exibição madura. (Determinadas categorias, como a taxa media de lucro, supõem inclusive um capitalismo já relativamente muito desenvolvido). A história subjetiva das categorias é a de seu descobrimento pela consciência humana. Sempre e em todas as partes, por exemplo, operaram na natureza e na sociedade leis estatísticas, em qualquer caso de acumulação de fenômenos. Contudo carece uma evolução de milênios das experiências humanas e de sua elaboração intelectual para reconhecê-las e aplica-las conscientemente. Ótica e objetivamente (e, portanto, também fisiologicamente) foi sempre – pelo menos, em nossa atmosfera terrestre – diferenças de valor. Contudo também neste fato carece um longo evolução artística para perceber nelas formas importantes da realidade objetiva em sua manifestação visual e das relações do homem com ela, assim como para aproveitá-las esteticamente. O que essas conquistas do reflexo científico e artístico da realidade apareçam primeiro como problemas, necessidades, etc., pouco conscientes, na vida cotidiana, e, depois de sua solução adequada pela ciência e a arte, voltem a ela, é um processo ao qual já mencionamos e ao qual nos referiremos ainda muitas vezes.
Talvez a particularidade do pensamento cotidiano se expressara do modo mais plástico se se submetesse a linguagem a uma análise detalhada deste ponto de vista. A linguagem da cotidianidade apresenta sobretudo uma particularidade que já destacamos: ser um complicado sistema de mediação, em relação ao qual o sujeito que o usa se comporta, entretanto, de um modo imediato. Essa imediação se esclareceu fisiologicamente em nossa época, quando Pavlov identificou na linguagem o segundo sistema de sinalização, que distingue aos homens dos animais. Toda palavra, e ainda mais, todo enunciado, supera a imediação, como é obvio sem mais discussão; pois já a palavra mais corrente, como faixa, pedra, andar, etc., é uma complicada síntese de fenômenos diversos do ponto de vista da imediação: a palavra é sua reunião abstrata. A história da linguagem mostra até que ponto se trata realmente de longo processo de meditação e generalização, ou seja, de distanciamento da imediação, da percepção sensível. Se considerarmos a linguagem de qualquer povo primitivo, se observa que a formação de palavras é nela incomparavelmente mais próxima à percepção e mais distante do conceito que em nossas línguas. Já Herder viu que na palavra se fixam determinadas notas dos objetos para “que este e nenhum outro seja o objeto”(24). Contudo carece recorrer a um longo caminho histórico de muitos milhares de anos para obscurecer os caracteres concretos sensíveis, imediatamente dados, e fixar em uma palavra o conceito – frequentemente muito mediado – de um objeto, um complexo de objetos, uma ação, etc. Assim, por exemplo, os habitantes do arquipélago de Bismarck (Península das Gazelas) não conhecem a palavra nem o conceito de preto. “ O preto se nomeia segundo os distintos objetos dos quais se obtém essa cor, ou então comparando, o objeto preto com outros"(25). Essas comparações se fazem com os chifres, cocos carbonizados, ou barro preto dos pântanos, a cor da resina queimada, de folhas e materiais carbonizados, etc. é claro que estas expressões estarão todas mais próxima da perfeição imediata que nossa simples palavra preto, contudo que já aquelas, superando abstratamente as diferenças de percepções particulares, se movem por analogias para uma afastada síntese.
Qualquer que tenha sido a evolução da linguagem, é certo que em qualquer nível a língua então disponível (palavra, frase, sintaxe, etc.) foi tomada como coisa imediata pelos homens. A origem da linguagem a partir das necessidades do trabalho fizeram tão decisivamente época precisamente porque a nomeação de objetos e processos comprime situações ou operações complicadas em si mesmas, elimina suas diferenças individuais únicas e acentua e fixa o comum e essencial a todas elas; com isto se favorece extraordinariamente a continuidade de uma conquista, o costume à mesma, seu fazer-se tradição. Por outro lado, esta fixação se diferencia daquela dos animais (que conta apenas com reflexos incondicionados e condicionados) porque não cristaliza em uma qualidade fisiológica imutável ou, pelo menos, dificilmente mutável, senão que conserva seu principal caráter social, movente e movido. Isto se deve a que inclusive a mais primitiva fixação de objetos e ligações pela palavra eleva já a intuição e a representação a um nível conceitual. Assim surge paulatinamente a consciência da dialética do fenômeno e essência; certamente que isso ocorre no principio de um modo inconsciente, e isso durante muito tempo, contudo o significado da palavra, nunca completamente rígido, a mudança de sentido das palavras usadas, indica que a síntese e a generalização intelectuais das propriedades sensíveis na palavra tem necessariamente um caráter fluido, determinado pela evolução social. Que os homens podem orientar-se e situar-se diante condições novas muito mais rapidamente inclusive que os animais superiores se deve em grande medida a esta dialética do fenômeno e da essência, manejada praticamente e, muitas vezes, sem consciência, servindo-se do significado da palavra, firme, porém cambiante. Sabemos, certamente, que os homens estão frequentemente tenazmente atados ao costumeiro ao tradicional ; contudo também que essas tendências imobilistas são de caráter social, não de natureza psíquica, e que, portanto, podem superar-se, e se superam de fato, socialmente. Sempre que estas tendências mostram uma força excepcional, se encontram também restos econômicos-sociais muito consideráveis de alguma formação superada já enquanto à linha evolutiva principal, contudo conservados – mesmo que com muitas modificações – na nova formação. Tais são, por exemplo, os elementos da agricultura feudal que se encontram em todos os países que chegaram ao capitalismo pela via “prussiana” em vez de fazê-lo pela “americana” (Lenin).
Isso é, naturalmente, somente o fundo social geral das forças conservadoras e tradicionais que atuam na linguagem. Sua ação sobre os homens é tão considerável porque estes se comportam necessariamente com a linguagem de um modo imediato, todavia a própria linguagem seja em sua essência um sistema de mediações cada vez mais complicadas. A gigantesca simplificação que a linguagem introduz nas relações do homem com o mundo e dos homens entre si, sua função promotora da cultura e apontada para o futuro, está intimamente unida com esse comportamento imediato do sujeito individual. Pavlov descreveu penetrantemente essa situação, com todos os perigos que acabamos de comentar. Uma experiência muito antiga encontra assim formulação científica. Já o Mefistófoles de Goethe diz na cena dos estudantes:
Em suma atentais às palavras
Assim entrareis pela segura porta
No templo da certeza.
(...) Com palavras se pode fazer a disputa excelente,
Com palavras construir um sistema,
Nas palavras é fácil crer,
De uma palavra nem se pode tirar um pingo.
O dramaturgo francês François de Curel expressou isto com humorística ironia. Em uma de suas obras, uma dama se lamenta de que seu marido não a entende, razão pela qual se consultou com um psicólogo. A amiga a quem faz essa confissão a responde: “Porá um nome grego a isto que te acontece”.
A linguagem mostra, pois, na vida cotidiana a seguinte contradição: por um lado, abre ao homem um mundo externo e interno muito maior e mais rico do que o que seria imaginável sem ela, ou dito de outra forma, torna acessíveis tanto o mundo externo quanto interno dos homens; contudo ao mesmo tempo lhe impossibilita, o dificulta ao menos, a recepção sem preconceitos do mundo externo e interno. Essa dialética se complica ainda mais pelo fato de que a rigidez provocada pela linguagem é sempre simultânea com certa indeterminação e confusão na própria linguagem. A terminologia científica se propõe sobretudo superar essa segunda tendência. Porém seria unilateral e errôneo não ver que nelas atuam também tentativas de superar a rigidez da linguagem. A história da ciência mostra sem dúvida que também nela as forças imobilistas podem ser muito intensas. O fenômeno está sobretudo relacionado com o desenvolvimento das forças produtivas e, em consequência disso, com investigabilidade científica da realidade objetiva. As limitações do conhecimento que têm essa origem podem dar lugar a rígidas cristalizações seculares da formação científica de conceitos e, consequentemente, da linguagem científica. Que se pense, por exemplo, no axioma do “horror vacui” [terror ao vazio] da natureza, cristalizado como um feitiço durante tantos séculos. Contudo essas limitações podem também ser fixadas “artificialmente” pela estrutura social (por exemplo, domínio das castas sacerdotais no Oriente).
Em tudo isso volta a se manifestar a interação entre a cotidianidade e a ciência. Somente que desta vez não aparece pelo lado positivo, pelo lado da diferença fecunda da atitude e a linguagem científicas, etc., em relação ao desenvolvimento global da humanidade, ou por outro lado, também progressista, da influência dos métodos e dos resultados científicos no pensamento e a prática da vida cotidiana; senão que a dupla limitação do pensamento cotidiano, a confusão e rigidez, penetram no reflexo científico da realidade e em sua expressão linguística. Como a ocupação científica, inclusive do cientista mais consciente e com clareza de seus fins, fica inserida em sua própria cotidianidade, como também para o científico a mediação da cotidianidade é a via pela qual influem nela as forças básicas da formação social na que vivem essas influências do pensamento cotidiano e de sua expressão na linguagem da ciência são perfeitamente compreensíveis. E mesmo que não seja este ainda o lugar para ocupar-se da particularidade do reflexo estético e de suas formas de expressão, podemos já observar que a linguagem poética apresenta também uma tendência a superar os dois polos da vida cotidiana, a confusão e a rigidez, apesar de fazê-lo de um modo próprio, radicalmente diverso do científico. Essa duplicidade da superação deve sublinhar-se tanto para a ciência quanto para a poesia; pois a separação das “faculdades” segundo a ideologia e a estética burguesas pode aqui dar lugar a uma errônea divisão do trabalho, atribuindo, por exemplo, à ciência somente a exatidão e à poesia somente a superação da rigidez. Em verdade, a ciência não pode superar a confusão ou indeterminação do pensamento cotidiano e de sua linguagem sem dissolver também sua rigidez mediante o apelo à realidade; e tampouco consegue poesia dissolver a rígida fixação da linguagem cotidiana sem tentar dar forma exata e unívoca (em sentido poético) às obscuridades sem saída daquela linguagem, e isso também mediante um regresso ao real.
Importante neste ponto é a ruptura com as kantistas “faculdades anímicas” e sua detalhada “divisão de trabalho” como também o apelo à própria realidade. A observação de Pavlov antes citada aponta exatamente para esse relaxamento da relação com a realidade como fenômeno frequente e inevitavelmente repetido da vida cotidiana. Pois, sem uma grande quantidade de costumes, tradições, convenções, etc., a vida cotidiana não poderia continuar facilmente, nem poderia seu pensamento reagir tão rapidamente como frequentemente necessário à conjuntura do mundo externo. Não se deve pois, desprezar o elemento positivo, conservador da vida, que existe nessas duas tendências extremas que em última inibem a relação com a realidade. Mas em última instância – e isto é essencial à dialética da vida cotidiana e de seu pensamento – a crítica e a correção pela ciência e a arte, nascidas dessa vida e desse pensamento e em interação com eles sempre, são imprescindíveis para um progresso substancial, ainda nunca possam conseguir a liquidação definitiva da rigidez por um lado e da imprecisão por outro.
Nesta estrutura dinâmica da linguagem da cotidianidade se expressa aquele traço essencial e geral do desenvolvimento social, da prática humana, a que aludimos com a eleição do motto marxista que preside nosso trabalho. Os homens, atuando por reação e com finalidades imediatas na vida cotidiana em geral, e sobretudo nos estádios primitivos, produzem uma instrumentação material e intelectual que leva em si mais do que os homens fizeram imediata e conscientemente nela; as ações imediatas dos homens sacodem então esse complexo de instrumentos de tal modo que o que nele antes estava implícito se faz explícito, e as ações vão mais além do diretamente desejado. Isto se deve a interação entre a dialética objetiva e a subjetiva. A dialética objetiva, cujo reflexo é a subjetiva, é sempre mais rica e ampla que esta. Seus próprios momentos, mesmo não captados subjetivamente, operam frequentemente de um modo que leva mais acima, que supera as finalidades subjetivas imediatas; certamente que isto ocorre frequentemente em uma forma crítica. Porém com isso não fica descrita entretanto a relação entre a dialética objetiva e seu reflexo subjetivo. Seria conceber de um modo místico a realidade objetiva o considerar que seu efeito esteja sempre e exclusivamente orientado pelos momentos promotores do progresso. As tendências negativas que descrevemos se relacionam também com esta interação da dialética objetiva e subjetiva. A vinculação imediata da prática realizada na realidade com a imagem refletida da realidade objetiva presente no momento da ação tem necessariamente efeitos inibidores no sentido que descrevemos. A lógica interna desta situação tem, como consequência, o que – visto segundo a linha tendencial de épocas inteiras – as tendências promotoras do conhecimento vão exigindo certo predomínio; quando não ocorre isto, a formação de que se trata está condenada a decadência ou ruína.
Leibnitz captou com mais clareza do que qualquer outro pensador as consequências que se depreendem dessa interação para o pensamento humano. Após sua ideia das “representações confusas” se encontra, entre outras coisas, o problema, que estamos caracterizando, da instrumentação criada pelas formas humanas de ocupação, instrumentação que é mais rica do que crê a consciência. Em uma polêmica com Bayle, Leibniz expôs a relatividade e o entrelaçamento das ideias confusas e as ideias diferentes, assim como o importante ponto de vista – que rompe com a doutrina de “potências da alma” – segundo a qual uma e outras são produtos do homem inteiro. (E o fato de que Leibniz recuse além disso a “divisão do trabalho” entre o corpo e a alma nada muda no essencial mas ao contrário, sua atitude em relação ao problema que nos ocupa). Afirma Leibniz: “A reserva se deve talvez a que se acreditou que as ideias confusas eram toto genere diversas das distintas, em relação às quais são simplesmente, por causa de sua multiplicidade, diversas e desenvolvidas em menor grau. Assim se atribuíram tão exclusivamente ao corpo certos movimentos chamados, com razão, involuntários, que parece como nada houvesse na alma que lhes correspondesse; e, inversamente, se supôs que certas ideias abstratas não se refletem de modo algum no corpo. Mas as duas suposições são errôneas, como costuma acontecer com estes tipos de distinções, porque se atentou mais superficialmente para o mais visível. Inclusive as ideias mais abstratas requerem alguma intuição sensível, e quando se tem em conta que são propriamente as ideias confusas – as quais acompanham sempre as ideias diferentes, como fazem as sensações de cor, cheiros, sabores, calor, frio, etc.- , se aprecia que sempre contem um infinito e que expressam não somente os fatos de nosso corpo mas também, por sua mediação, todos os demais acontecimentos”(26). Pelo que faz ao nosso presente problema da linguagem, se segue dessas observações de Leibniz o reconhecimento da generalização como presente em toda expressão linguística, e também se segue a relativização dos graus dessa generalização no uso prático. “As expressões gerais”, afirma Leibniz, “servem não somente à perfeição das linguagens, mas também são necessárias para estabelecer sua essência. Pois si por coisas particulares se entende as coisas individuais, seria impossível falar se não houvesse apenas palavras para nomear o individual; pois quando se trata de casualidade individual e especialmente das ações que é o que mais se designa, se apresenta constantemente novidade; e se por coisas particulares se entende as species infimas, então é evidente, além da frequente dificuldade de determiná-las bem, que se trata de conceitos gerais baseados na semelhança. Como não se trata, pois, mais do que uma semelhança maior ou menor, segundo se fale de gêneros o espécies, é natural designar cada classe de semelhança ou concordância e, por conseguinte, usar palavras gerais de cada grau (...)”(27).
Esses argumentos de Leibniz iluminam o problema do pensamento e da e indicam, além disso, outro importante traço essencial da vida cotidiana, a saber: que o que está comprometido nela é sempre o homem por inteiro. Isto nos posiciona com a doutrina, muito influente na história da estética, das chamadas “faculdades anímicas” ou, mais tradicionalmente, “potências da alma”. Já a filosofia e a estética hegelianas levaram a cabo uma luta enérgica contra essa fragmentação do homem, contra o “casaco anímico”, como dizia o próprio Hegel. Mas esta luta não pode proceder coerentemente até ao final porque a hierarquização, inevitável no idealismo, aparece também no pensamento de Hegel – mesmo que em um nível diferente e superior – a uma fragmentação da unidade dialética do homem e seus afazeres. Que se pense na coordenação intuição-arte, representação-religião e conceito-filosofia, e suas consequências metafísicas-hierárquicas no sistema de Hegel. O materialismo dialético, com a prioridade do ser em relação à consciência, estatui por fim o fundamento metodológico de uma concepção unitária e dialética do homem inteiro em suas ações e reações ao mundo externo.Com isso se supera ao mesmo tempo o reflexo mecânico da realidade recebida do materialismo metafísico. A grande importância da doutrina pavloviana consiste precisamente em que abre o caminho para entender sob conceitos tanto a unidade material de todas as manifestações da vida quanto as conexões materiais reais do ser natural, fisiológico, do homem com seu ser social (o segundo sistema de sinalização como ligação da linguagem e do trabalho). Mas já muito antes o materialismo dialético reconheceu em toda atividade humana a colaboração orgânica de todas as capacidades humanas (“faculdades anímicas”). Não, certamente na forma de uma promoção recíproca sem problemas, de uma harmonia pré-estabelecida, mas em sua real contraditoriedade, em cujo marco a prática social determina se e em que medida se produz tal apoio recíproco ou se o benefício se converte em uma maldição. Assim escreve Lenin sobre o processo do conhecimento: “A aproximação do conhecimento (do homem) à coisa singular, a elaboração de uma cópia (= de um conceito) dela, não é um ato simples, imediato, de especulação e morto, mas um ato complicado, cindido, ziguezagueante, que contem a possibilidade de que a fantasia abandone a vida; mais ainda: a possibilidade de uma transformação ( não observada, não consciente para o homem) o conceito abstrato, da ideia, em uma fantasia (em última instância = Deus). Pois até a generalização mais simples, na ideia mais elementar (“a mesa” enquanto tal), há um elemento de fantasia. ( e vice-versa: é absurdo negar o papel da fantasia inclusive na ciência mais rigorosa; cfr. Pissarev, sobre o sonho útil como estímulo para o trabalho, e sobre os devaneios vazios)”(28).
O fato de que a doutrina da separação metafísica das “faculdades anímicas” não haja sido um simples erro da ciência, equívoco de pensadores isolados, mas o reflexo – mesmo deformado de modo idealista ou materialista vulgar – de determinados aspectos da realidade, ou de etapas de seu desenvolvimento, não pode alterar nosso juízo sobre essa doutrina. É certo que a divisão capitalista do trabalho destrói essa unidade imediata do homem, que a tendência básica do trabalho no capitalismo aliena o homem de si e de sua atividade. A economia política capitalista encobre intelectualmente este fato, como observado com fineza por Marx precisamente a propósito do problema que nos ocupamos agora, pelo fato de “que não considera a relação imediata entre os trabalhadores (o trabalho) e a produção”(29). Assim surge a oposição polar entre o produto objetivo do trabalho e suas consequências psicológico-morais no trabalhador alienado de si. Mas seria um erro grave crer que essa alienação confirme a doutrina das “faculdades anímicas”. A independência – aparente – das “faculdades anímicas” uma em relação às outras é, sem dúvida, um fato importante da cotidianidade capitalista. É uma forma imediata de manifestação na alma do homem desse período. O caráter metafísico das teorias filosóficas, psicológicas, etc., nascidas neste terreno se deve a que absolutizam acriticamente em sua imediatidade esse fato que sem dúvida existe de um modo imediato. Acriticamente não quer dizer por força que esse fato apenas pegue – coisa que certamente ocorre. A dialética do modo de manifestação do fato pode inclusive criticar-se penetrantemente, descobrindo deste modo importantes ligações culturais, como ocorre com a filosofia da arte schilleriana. Neste caso, desde logo, existe além disso uma compreensão, ou um palpite ao menos, do condicionamento histórico-social que causa essa independência e contraditoriedade das “faculdades anímicas”, e, com ela, certa saudade – mesmo regressivo-utópica – de uma humanidade unitária e completa no indivíduo. Mas somente uma plena iluminação dos fundamentos sociais pode fazer compreensível o homem como totalidade, a inseparabilidade de suas forças físicas e psíquicas. Marx formulou de um modo extraordinariamente drástico a perversão que se manifesta na alienação: “Comer, beber, gerar, etc., são sem dúvida também funções autenticamente humanas. Mas, na abstração que as separa do resto da atividade humana e as converte em fins últimos e únicos, são simplesmente animais”(30). O jovem Marx registrou esses efeitos da divisão capitalista do trabalho não só pelo que faz à classe trabalhadora. Pouco depois, já na Heilige Familie [ a Sagrada Família],(31) amplia sua vigência à toda sociedade burguesa e descobre uma oposição ideológica decisiva entre burguesia e proletariado precisamente no modo oposto – afirmativo ou negativo – como reagem às mesmas tendências da alienação. Engels generalizou mais tarde esse fato a todas as manifestações vitais da sociedade burguesa.(32)
Porém os clássicos do marxismo tiveram sempre clara consciência de que este efeito da base capitalista nada mais é que um aspecto da totalidade de suas irradiações. Como última sociedade baseada na exploração, como a sociedade que não somente produz as condições prévias econômico-materiais do socialismo, mas que suscita além disso seus próprios coveiros, a sociedade capitalista tem de produzir, no seio das forças que deformam e desfiguram ao homem, também aquelas outras forças que se orientam para o futuro, as quais se voltam cada vez mais conscientemente contra ela. Já em Die Heilige Familie [A Sagrada Família], conforme dito, Marx vê essa oposição na reação satisfeita ou irritada à alienação capitalista do homem em relação a si. Mais tarde esboçou também o esquema das determinações econômicas que são subjacentes objetivamente àquela irritação, que lhe dão forma e que impõem o que não se permaneça em simples esterilidade subjetiva, mas que leve realmente à transformação da sociedade. Em seu juízo sobre Ricardo, Marx escreveu à respeito: “Ricardo considera – com razão em sua época – a produção capitalista como a mais favorável para a criação da riqueza. Ricardo busca a produção pela produção, e tem razão. Ao afirmar, como fizeram sentimentais adversários de Ricardo, que a produção não é um tal fim, se esquecem que a produção pela produção é o desenvolvimento das forças produtivas humanas, ou seja, desenvolvimento da riqueza da natureza humana como auto-finalidade (...). Que este desenvolvimento das capacidades do gênero humano, mesmo que logo tenha lugar as custas da maioria dos indivíduos humanos e de certas classes humanas, aprofunda ao final este antagonismo e coincide com o desenvolvimento do indivíduo singular, e que, consequentemente, o desenvolvimento superior da individualidade tem de se pagar com um processo histórico no qual se sacrificam os indivíduos: isto é o que não entendem”(33).
Aqui se faz visível outra das razões pelas quais não possuímos ainda nenhuma análise filosoficamente fundada da vida e do pensamento cotidianos. Essa análise teria, de fato, que tomar posição, direta ou indiretamente, a respeito da duplicidade contraditória que tem a vida cotidiana no capitalismo, tal como a esboça Marx. E está claro além disso que a contraditoriedade da vida cotidiana, a qual alcança aqui uma culminação, se encontra segundo formas várias em outras formações anteriores e não termina assim automaticamente com a expropriação e a socialização dos meios de produção. A eliminação do caráter antagônico das contradições observadas, e sua transformação em contradições não antagônicas, começa com o socialismo, porém é um longo e desigual processo que não exclui em absoluto determinados resíduos e até recaídas em restos superados. Mas como inclusive a investigação mais abstrata, epistemológica ou fenomenológica, do pensamento cotidiano tem de tropeçar forçosamente com estas transformações históricas estruturais se não quer falsear estrutural e materialmente – mediante uma absolutização anti-histórica – seu objeto de estudo, forçosamente se vê obrigada a tomar uma ou outra posição diante o fenômeno básico histórico que estamos considerando. Porém toda tomada de posição implica uma consideração histórica de modos de manifestação relevantes da cotidianidade capitalista e, ao mesmo tempo, certa compreensão da direção real do processo histórico em seu conjunto. No caso disto faltar, se produz uma absolutização do passado, do presente ou de ambos, que podem ter acentos avaliativos positivos ou negativos, porém em ambos casos falso. Marx viu nisto um dilema inevitável e insuperável da estimativa burguesa desta situação, porque esse ponto de vista burguês faz cristalizar o momento progressista daquela contradição ou bem o momento alienador e alienado. Marx afirma: “O indivíduo particular aparece mais plenamente em níveis inferiores de desenvolvimento porque não explicitou ainda a abundância de suas relações nem se enfrentou com elas como poderes e relações sociais independentes dele. Por ridícula que seja a saudade daquela plenitude originária, não menos ridícula é a crença segundo a qual há que permanecer para sempre nesta plena vacuidade”(34). Nos inícios da evolução do pensamento burguês dominou a tendência de afirmar o progresso esquecendo sua contraditoriedade: já antes de Marx apareceu uma reação romântica, a crítica da alienação, ligada a uma idealização de níveis inferiores da evolução social; e esta reação romântica continuou dominando hoje – aberta ou dissimuladamente – o estudo filosófico, além disso, escasso, da cotidianidade e seu pensamento.
Vamos rever agora brevemente o modo como os problemas do comportamento e do pensamento cotidianos surgem, empobrecidos e desfigurados, na obra de Martin Heidegger, mesmo que algum leitor resista a ver Heidegger situado entre os críticos românticos da cultura capitalista. Heidegger distingue resolutamente entre cotidianidade e primitividade: “A cotidianidade não coincide com a primitividade. Aquela é antes um modo de ser do estar (Dasein), também e precisamente quando o estar se movimenta em uma cultura muito desenvolvida e diferenciada"(35). Nem se encontra em suas análises concretas um apelo entusiasta a qualquer período concreto do passado (como, por outro lado, se encontra em Gehlen um engrandecimento do período “pré-magico”). O anticapitalismo romântico de Heidegger “se limita” a difamar fenomenológica-ontologicamente a cotidianidade presente e seu pensamento; porém o critério de seu juízo não se encontra na estrutura de qualquer período do passado, mas na distância ontológico-hierárquica entre o ente e o ser, a queda em relação a este. A base intelectual da recusa heideggerista do capitalismo não é, pois, romântico-histórica, mas teológica; esta recusa se funda na teologia irracionalista de Kiekegaard, virada de um modo ateu.
A atitude de Heidegger em relação à cotidianidade pode ser apreciada inclusive em sua terminologia. Ao chamar “instrumento” as coisa nela, “o-todo-o-mundo” ao “quem” desta esfera, e “tagarelice”, “ambiguidade” e “decadência” aos tipos de comportamento mais característicos e atuais da mesma, etecetera, ele poderá ter ainda a ilusão de estar dando somente uma descrição objetiva, sem juízo de valor emocional; mas objetivamente, a cotidianidade para o filósofo é um mundo da impropriedade, da queda, do abandono da propriedade ou autenticidade. O próprio Heidegger chama queda no abismo a essa motilidade” do estar em seu próprio ser. “ O estar se precipita de si em si, na falta de solo e na nulidade da impropria cotidianidade. Mas a pública interpretação desta oculta queda, interpretando-a como ‘subida’ e ‘vida concreta’.”(36). E na ampliação deste comentário: “O fenômeno da queda revela uma estrutura ontológica essencial do estar, a qual não determina qualquer aspecto noturno, mas que constitui todos seus dias em sua cotidianidade.”(37).
Esse profundo pessimismo, que faz da cotidianidade uma esfera da desesperada decadência, do ser-lançado “à publicidade de todo-o-mundo”(38), “a falta de chão da tagarelice”(39), tem necessariamente que empobrecer e desfigurar sua essência e sua estrutura: se a prática da cotidianidade perde seu vínculo com o conhecimento, com a ciência, segundo essa descrição fenomenológica-ontológica, se o conhecimento e a ciência não surgem de perguntas postas pela cotidianidade, se esta não se enriquece constantemente com os resultados, que produzem aqueles nem se ampliam e aprofundam com eles, então a cotidianidade perde precisamente seu traço autêntico essencial, o que faz dela a fonte e a desembocadura do conhecimento na ação humana. Esvaziada de todas essas interações, a cotidianidade aparece em Heidegger como exclusivamente dominadas pelas forças da alienação, que deformam o homem. O outro momento, o que move em frente na alienação do homem e apesar da alienação, desaparece com a “depuração” ontológica dos fenômenos.
Pois sem dúvida há também aqui uma conexão entre o método e a concepção de mundo. O método de Heidegger, como o da fenomenologia e o das tendências ontológicas derivadas dela, consiste em reduzir toda objetividade e todo comportamento em relação deles às “formas originárias” mais simples e gerais, com objetivo de explicitar deste modo univocamente sua essência mais profunda, independentemente de toda variedade histórico-social. Mas como a “visão essencial” intuitiva é também um fundamento desta metodologia, o juízo subjetivo desvalor do filósofo tem que influenciar profundamente – com ou sem tal consciência disso- na determinação do conteúdo e forma da objetividade fenomenológica ou ontologicamente “depurada” ou “reduzida”, e confundir a relação entre o fenômeno e a essência.
Assim parecem neste caso fenômenos da continuidade capitalista como se fossem determinações ontológicas essenciais do ente como tal. Este é o caso da descrição heideggeriana da vida cotidiana. Ninguém negará que nessas análises de Heidegger há uma apaixonada tentativa de elaborar mais concretamente que no passado alguns aspectos decisivos da vida e do pensamento cotidianos; deste ponte de vista Heidegger supera com nível superior daquele que alcançaram nestes problemas os neokantistas.
Assim fez uma interessante penetração específica da teoria e a prática na vida cotidiana: “Neste trato manipulador a procura se submete ao para-quê constitutivo de cada instrumento; quanto menos tagarelante se usa a coisa martelo, quanto mais plenamente se utiliza, mais original se faz a relação com ela, tanto mais descobertamente sai a coisa ao encontro como o que é, como instrumento. O martelar descobre a “manualidade” específica do martelo (...). A primeira vista puramente “teórica” às coisas carece de compreensão do ser-a-mão. O trato manipulador e utilizador não é, porém, cego, mas tem sua própria visão, a qual dirige a manipulação e lhe presta sua coisidade específica”(40).
Não há dúvida de que essa análise capta algo da estrutura básica da vida cotidiana e de seu pensamento, algo do vínculo imediato da teoria com a prática. Mas a convergência da simplificação metodológico-formal com o juízo de valor subjetivo (anticapitalista) na “visão essencial, põe, em lugar das reais e contraditórias transições e interações, um contraste metafísico excessivamente duro entre o comportamento propriamente teórico e a “teoria” da prática cotidiana. O abstrato isolamento da cotidianidade assim estabelecido, sua redução aos momentos que parecem corresponder-se exclusivamente por essa delimitação tão artificial, acarreta, como dissemos no princípio, um empobrecimento e uma desfiguração de toda esta esfera. Empobrecimento, porque – de um modo conscientemente metodológico – passa por cima do quanto estão profundamente estão relacionados todos os modos de comportamento da cotidianidade com a cultura inteira e a evolução cultural da humanidade; a desfiguração, porque se elimina mentalmente o papel da cotidianidade enquanto difusão do progresso e a satisfação de seus resultados.
Esta referência ao beco sem saída teórico visível em Heidegger tem que servir-nos para concretizar o caminho que empreendemos, mediante a comparação com outros; tampouco aqui – porque não se fará em todo o livro – é buscada uma discussão da doutrina de Heidegger. Mesmo que tenhamos sido obrigados a descrever uma exposição polêmica, não tivemos, é claro, a tarefa de analisar detalhadamente o complexo dos fatos relevantes. Era preciso somente acrescentá-los para poder descrever verazmente o problema do homem total na vida cotidiana (inclusive o da sociedade burguesa). O que sobretudo importa aqui é esclarecer provisoriamente a relação entre a cotidianidade, com seu pensamento e o comportamento do homem na atividade científica e artística. Somente provisoriamente, pois com a separação entre a ciência e a vida cotidiana teremos que vê-las logo em um capítulo especial; por outro lado, a produção e receptividade artísticas, que mais tarde solicitarão nossa atenção não poderão ser objeto de captação realmente adequada até a segunda parte, uma vez descoberta à estrutura da obra de arte. Provisoriamente, e antecipando desenvolvimentos posteriores, se pode dizer que o modo de comportamento dos homens depende essencialmente do grau de objetivação de sua atividade. Quando estas alcançam o grau mais elevado de objetividade, o que ocorre na ciência e na arte, suas leis objetivas determinam o comportamento humano relativo a conformações produzidas por elas. Isto é: neste caso, todas as faculdades do homem pedem uma orientação – instintiva por um lado, e por outro consciente, pela educação – ao cumprimento daquelas legalidades objetivas. Se quer-se entender adequadamente esses modos de comportamento e descrevê-los corretamente em sua conexão com a cotidianidade e em sua diferença e oposição com o comportamento cotidiano, há que se ter sempre em conta que nos dois casos se trata da do homem integral – por mais alienado e deformado que esteja – com a realidade objetiva, ou com as objetivações humano-sociais que refletem essa realidade e a mediam. A ação das objetivações produzidas e desenvolvidas, como a ciência e a arte, manifesta-se sobretudo pelo fato de que nelas os critérios de seleção, agrupamento, intensidade, etc., das atividades subjetivas postas no ato estão muito mais delimitados e determinados que nas demais manifestações da vida. Naturalmente, há aqui passagens muito matizados, especialmente no trabalho, o qual, objetivamente, apresenta no curso da história muitas passagens entre a ciência e a arte.
Estas objetivações não têm somente sua própria legalidade interna – mesmo sem dúvida inconsciente, paulatinamente -, mas também um determinado meio através do qual pode realizar-se produtiva e receptivamente a objetivação de que se trate. (Que se pense no papel da matemática nas ciências exatas, na visualização nas artes figurativas, etc.). O que não se decide a percorrer o caminho para a objetivação atravessando esses meios ou ambientes, tem de perder precisamente seus decisivos. Este fato foi repetidamente observado, mas não menos vezes se inferiram falsas conclusões. Ao identificar o meio com a objetivação (como faz Konrad Fiedler ao tratar da visualidade, coisa à que mais adiante nos referiremos com detalhe), todo um grupo de objetivação – apesar das variações modernistas – se atribui em última instância a uma “faculdade anímica” de sua própria ação. Cremos ser desnecessária qualquer discussão posterior para compreender que a grande maioria das ações da vida cotidiana, sejam individuais, sejam coletivas, tenham uma estrutura semelhante, com isso se manifesta claramente a conexão imediata entre a teoria e a prática a que antes nos referíamos. Lenine ao desenvolver sua crítica político-social da espontaneidade no sentido de que a consciência correta não pode “ser ensinada aos trabalhadores senão de fora”, isto é, de fora da luta econômica , “de fora da esfera das relações entre trabalhadores e empresários”(41), de fora do meio imediato, das finalidades imediatas dos trabalhadores, formula um conhecimento de importância dúplice para o problema que nos ocupamos agora. Em primeiro lugar, que para a superação da vida cotidiana é preciso forças intelectuais, modos de comportamento do pensamento, os quais superam qualitativamente o horizonte, do pensamento cotidiano. Em segundo lugar, que – quando, como aqui, trata-se de uma reorientação correta da ação prática – o “de fora” de Lenine é o mundo da ciência.
A compreensão assim conseguida do pensamento cotidiano parece provar que sua correta elevação evolutiva, sua adequação ao conhecimento da realidade objetiva, não é possível senão que pelo caminho da ciência, abandonando o pensamento cotidiano. Considerando o fato segundo uma linha evolutiva histórico-universal, deve dizer-se que tal é o caso. Mas seria uma abstração vulgarizadora, e errônea de fatos importantes da evolução humana, fazer desse fato uma lei de funcionamento universal e sem exceções. Certamente que com frequência – e em casos muito importantes – o pensamento científico e o pensamento cotidiano se enfrentam precisamente deste modo. Que se pense na teoria copernicana e na experiência cotidiana insuperável (imediata, “subjetiva”) de que o Sol “se põe”, etc.; utilizamos intencionalmente a expressão “insuperável” porque esta tem de ser a reação espontânea do astrônomo mais culto, como homem da vida cotidiana, a esse fenômeno. Porém com isso não se esgota, pelo contrário, toda a riqueza da realidade, da relação do pensamento cotidiano, da ciência (e da arte) com ela. Frequentemente se dão casos nos quais o pensamento cotidiano protesta – com razão – contra certos modos de objetivação da ciência (e da arte) e consegue em última instância impor seu protesto. A dialética de tal contradição entre a cotidianidade por um lado e a ciência e a arte por outro é sempre uma dialética histórico-social. Trata-se sempre de situações concretas, histórica e socialmente condicionadas, a partir das quais o pensamento cotidiano tem ou carece de razão dela diante de superiores objetivações. Mas nem essa situação se deve absolutizar metafisicamente. A resistência – em última instância vitoriosa – do pensamento cotidiano contra uma determinada ciência (ou uma arte determinada) não pode possuir nada mais do que a espontaneidade e a imediatidade da vida cotidiana. E com esses meios não pode se conseguir mais do que uma negação simples, uma recusa. Se é preciso superar de verdade uma ciência (ou uma arte) irreconciliável com as necessidades da vida, tem-se que nascer dessa negação espontânea um novo tipo de ciência (ou de arte), isto é, tem-se que abandonar outra vez o terreno da vida cotidiana. Todas análises desses fatos mostra, pois, que tanto o co-pertencimento quanto a diversidade dessas esferas se compreende somente se leva em conta a ininterrupta interação entre elas. Na medida em que fenômenos simultâneos deste tipo, são importantes para a arte, terão de ser tratados, devido à sua concretização histórico-social, na parte histórico-materialista da estética. Aqui teremos de limitar-nos a aludir àquelas determinações, que por força caem em um nível abstrato – nas que se manifesta o caráter mais geral do reflexo da realidade na vida cotidiana.
Trata-se – dito resumidamente – do fenômeno do chamado sadio bom senso. Em si, este costuma ser simplesmente uma generalização abstrata das experiências da vida cotidiana. Dado que, como já mostramos e mostraremos mais à frente com detalhe, dos resultados da ciência e da arte desemboquem constantemente na vida e pensamentos cotidianos, encontram-se muito frequentemente incluídos no sadio senso comum, o enriquecem, mas geralmente somente na medida em que se convertem em elementos cada vez mais ativos da prática da cotidianidade. Por sua forma, essas generalizações costumam ter um caráter apodítico. Toda a sabedoria sentencial, tão lacônica, dos povos se expressa desse modo. Não se baseiam em prova alguma, pois são simplesmente resumos das experiências às vezes arcaicas, de tradições, costumes, hábitos, etc. E precisamente essa sua forma costuma convertê-las em guia imediato da ação; já sua forma reflete pois a conexão imediata, tão típica da cotidianidade, entre a teoria e a prática.
Precisamente nisto se manifesta a contradição antes indicada: a de se esta sabedoria lacônico-apodítica tem uma razão de ser frente à objetivação mais complexa, da ciência e a arte. Mesmo não possamos dedicar-nos agora aos problemas concretos de natureza histórico-social, é fácil apreciar que a função positiva ou negativa do sadio senso comum, inclusive a sabedoria tradicional, esteja estreitamente relacionada com a luta do novo contra o velho. Quando as formações moribundas se defendem contra o que nasce mediante construções intelectuais e convenções emocionais artificialmente mediadas, afastadas da vida, etc., o sadio senso comum desempenha muitas vezes a função do menino que no conto de Andersen grita: “O rei está nu!”. A estética de Tchernichevsqui tem o grande mérito de expressar as autênticas necessidades do povo diante das excessivas pretensões das classes ilustradas(42). A serva de Molière é a crítica suprema do grande cômico, e a estética e a filosofia da arte do último Tolstoi põem o simples camponês como juiz supremo para estimar a verdade ou erro dos produtos da arte e da ciência.
Sem dúvida alguma que tais sentenças foram muitas vezes confirmadas pela história. Mas não é menos certo que não poucas vezes representam mera resistência pequeno burguesa à grandes inovações. Por acertada que seja a zombaria camponesa tolstoiana contra a noda espiritista em Frutos da Ilustração, isso não evita que seus juízos – em nome do simples camponês – sobre a Renascença ou sobre Shakespeare sejam completamente equivocados. Já Schiller aludiu aos limites da competência da serva de Molière, e eu pessoalmente tentei, seguindo Schiller, descobrir todos estes problemas de avaliação da cultura pelo último Tolstoi(43).
Este caráter histórico-social da explicação de cada caso particular deste gênero não altera o fato de que também aqui se manifestem leis mais gerais. Por um lado, a oposição entre uma generalização idealístico-abstrata e o materialismo espontâneo do pensamento cotidiano, que se impõe diante este. Por outro, pode se apresentar uma oposição do reflexo dialético com o mecanicista. E isso tanto porque a dialética espontânea da cotidianidade tenha razão contra teorias metafísicas, quanto porque “sabedorias” tradicionais e metafísicas da cotidianidade fiquem refutadas por novas explicações dialéticas. Já aqui se pode apreciar que estas reações do pensamento cotidiano à ciência e a arte estão longe de ser unívocas; e assim, nem é possível classificá-las sem mais a dizer como progressistas ou regressivas, nem é possível atribuir sempre algumas tendências ao novo e outras ao velho. Pois, por exemplo, e como demonstrou Lenine convincentemente, em Tolstoi ressoam simultaneamente vozes que expressam o ser do campesinato primitivo, condenado a desaparecer, e também outras – que proclamam ao nível da cotidianidade – a futura rebelião camponesa contra os restos feudais(44). O autêntico papel do sadio senso comum, da sabedoria popular, pode, pois, averiguar-se – com a ajuda do materialismo histórico – mediante a investigação de cada situação concreta histórico-social.
Aqui podemos aludir apenas brevemente aos fundamentos dialéticos gerais, objetivos e subjetivos, dessa insuprimível ambiguidade do pensamento cotidiano, de seu reflexo da realidade. A fonte dessa ambiguidade insuprimível é, também neste ponto, a relação imediata, que já sublinhamos, entre a teoria e a prática. Pois, por um lado, a teoria e a prática têm que partir sempre de uma relação imediata com a realidade, nunca podem parar de apelar a ela. Porém enquanto que objetivações superiores, mais complicadas e mediadas, começam a submeter-se a uma elaboração cerrada, as ameaçam o mesmo perigo que ao rei do conto de Andersen. Por outro lado, a real fecundidade de um reflexo correto da realidade e da prática que se depreende dele permanece assegurada se é superada a imediatidade (no tríplice sentido hegeliano de aniquilar, preservar e elevar a nível superior). Bastará aludir aqui a análise leninista da prática política, assim como – a isolada, e se descuida ou elimina a agitada dinâmica da totalidade da vida anímica humana. Mas o fato real mostra que, como o papel do meio na observação consiste em ser portador de uma totalidade de impressões, pensamentos, ligações reais, etc., a adaptação do comportamento subjetivo ao mesmo tempo que ser forçosamente também uma síntese de tais elementos. Volta a ser, pois, o homem integral no qual se expressa uma tal extrema especialização, mesmo com a importante modificação dinâmico-estrutural ( diferente do caso médio da vida cotidiana) de que suas qualidades, unitariamente mobilizadas, se concentram, por assim dizer, sobre aquela ponta que se orienta para a objetificação menciona pelo contexto. Por isso, quando à frente falemos deste comportamento, falaremos do “homem integral” (em relação a uma determinada objetificação) em oposição ao homem inteiro da cotidianidade, o qual, dito graficamente, está orientado para a realidade com toda a superfície de sua existência. O mais importante para nós aqui, naturalmente, o comportamento estético. Por isso em posteriores contextos nos ocuparemos detalhadamente da diferença estética entre o homem inteiro e o “homem integral”. Como o comportamento científico nos interessa sobretudo como determinação de contraste com o estético, poderemos contentar-nos a seu respeito com afirmações gerais.
Era necessário explicitar radicalmente esta oposição levando-a até ao extremo. Porém ao fazê-lo não se deve descuidar as passagens existentes, que são infinitamente matizadas. Basta pensar no trabalho, no qual, à medida que se faz mais perfeito, se apresenta uma tendência para essa exacerbação recém analisada no sentido do “homem integral”. O caráter de passagem da razão da essência no total na maioria das operações do trabalho. Quando este trabalho, como no velho artesanato, se aproxima da arte, o comportamento objetivo que há nele se aproxima também do artístico, e, quando a racionalização está muito desenvolvida, às vezes inclusive ao científico. Muitas classes de trabalho são, pois, deste ponto de vista, fenômenos de passagem; mas por fundamentais que sejam para a inteira vida humana abarcam apenas parte da vida cotidiana. Nas demais partes, por natureza da coisa, tem que predominar o outro princípio, mais largo, mas solto, menos finalisticamente orientado, que agrupa aos homens. Como é natural, também há aqui formas de passagem; a recreação, o desporto (quando seu cultivo se converte em treinamento sistemático), o diálogo (quando passa à discussão temática), etc., podem aproximar-se facilmente ao tipo de comportamento do trabalho, permanente ou passageiramente. Esta grande escala de matizada passagens não produz, entretanto a eliminação da oposição dos extremos. Pelo contrário. Acreditamos inclusive que com ela não somente se esclarece a necessidade de complexidade pela qual o comportamento do homem inteiro passa ao de “homem integral”, mas que, além disso, se precisa a fundamentação deste naquele, sua recíproca fecundação e elevação evolutivo. Mas subsiste a diferença, que é inclusive oposição. Esta se funda, por um lado, no caráter mais ou menos total da objetificação a que se aspira (de sua ausência quase completa até seu predomínio no comportamento subjetivo) e, por outro, e em estreita ligação com isso, na relação mais ou menos imediata entre o pensamento e a prática. Que se pense , por exemplo, no desporto como simples exercício somático, no qual essa relação pode ter um caráter puramente imediato, segundo ocorre na corrida ou na simples caminhada, e ao mesmo tempo, nas mediações complicadas, e as vezes muito amplas que se apresentam no treinamento sistemático comparado com aquelas formas simples.
Ainda mais claramente se manifesta esta oposição se pensarmos na atividade político-social do homem. Lenine expôs brilhantemente esta atividade em sua obra O que fazer?. Suas análises são para nós tanto mais valiosas quanto se concentram em torno das formas e conteúdos político-sociais, e somente incidentalmente, quase sem intenção, roçam os problemas que aqui estamos tratando. Lenine mostra, a respeito da espontaneidade dos movimentos da classe trabalhadora, que lhes falta precisamente à consciência das mais amplas ligações sociais, das finalidades que superam a imediatidade; os operários em greve espontânea da Rússia do começo do século XX tinha ausência, afirma Lenine, “do conhecimento da oposição irreconciliável entre seus interesses e o regime político-social existente” (44), ou seja, a compreensão das posteriores consequências necessárias a título de contra-exemplo – do desenvolvimento da espontaneidade de beneficiar, tão frequentemente um obstáculo para o desenvolvimento da ciência e da indústria como mostrou Bernal. Que esta contradição não possa resolver-se senão concretamente, histórico-socialmente, é – visto de forma abstrata, geral – expressão precisa de que as objetificações superiores foram produzidas pela evolução da humanidade em interesse de um domínio mais rico e profundo dos concretos problemas da vida cotidiana, ou seja, de que sua autonomia, suas leis próprias, sua diferença, perdem a justificação de sua existência mal se perde este vínculo – o que, desde logo, não deve medir-se dia a dia, senão em escala histórica -, assim, como enquanto renunciam a sua imediatidade e se adaptam sem crítica a unidade imediata da teoria e a prática da cotidianidade. Esta contradição sublinha pois que o ininterrupto fluxo, para cima e para baixo, que vai da cotidianidade à ciência e à arte e vice-versa é necessário, é uma condição do funcionamento do movimento progressista das três esferas vitais. Em segundo lugar, se expressa também nessa contradição o fato de que os critérios da verdade do reflexo são sobretudo de conteúdo, ou seja, que a correção, a profundidade, a riqueza, etc., consistem na concordância com o original, com a realidade objetiva. Os momentos formais (a tradição, etc., na cotidianidade; a perfeição metodológica imanente na ciência e na arte) apenas desempenham papel secundário; separados dos critérios reais, sofrem de um problema insuperável. Isto não significa nenhuma subestimação nem anulação, dos problemas formais; mas estes problemas não podem pôr-se corretamente nem se resolver senão mantendo a prioridade do conteúdo dentro da interação entre uns e outros elementos.
Notas de rodapé:
(1) Trecho de A particularidade do estético. Questões preliminares e de princípio. (retornar ao texto)
(2) Pavlov, Obras completas, Berlim 1953, III/2, p. 551. (retornar ao texto)
(3) Simmel, Die Religion [ A Religião], Francfurt,1906, p. 11. (retornar ao texto)
(4) Marx, K., Grundiss der politischen Ökonomie [Esboço da economia política], Moscou 1939, I, p. 25 e ss. (retornar ao texto)
(5) Engels, F, Dialektik der Natur [A Dialética da Natureza], Moscou-Leningrado, 1935, p. 696. (retornar ao texto)
(6) Marx, Das Kapital, Hamburgo, 1914, I, p. 140. (retornar ao texto)
(7) Hegel. Jenenser Realphilosophie Leipzig, 1931, II, p. 198 e ss. [Filosofia da Realidade do período de Iena] (retornar ao texto)
(8) Pareto, Allgemeine Soziologie [Sociologia geral],trad. Alemã, Tubinga, 1955, p. 59. (retornar ao texto)
(9) Engels, Feuerbach, Wien-Berlin, 1927, p. 57. (retornar ao texto)
(10) RICKERT, Der Gegenstand der Erkenntnis [O objeto do conhecimento], Tubinga, 1928, p.116. (retornar ao texto)
(11) ROTHACKER, Probleme der Kulturanthropologie [ Problemas da antropologia cultral], Bonn, 1948, p. 166. (retornar ao texto)
(12) CASSIRER, Philosophie der symbolischen Formen [Filosofia das formas simbólicas), Darmstadt, 1953, II, p. 48. (retornar ao texto)
(13) DESCARTES, Les principes de la philosophie [ Os princípios da filosofia], Bibliothèque de la Pleiade, p. 434. (retornar ao texto)
(14) Lenin, Empiriokritizismus, ed. Alemã, vol XIII, p. 280 ss, 1927. (retornar ao texto)
(15) CASSIRER, op. cit., p.62. (retornar ao texto)
(16) Ibidem, p. 51. (retornar ao texto)
(17) Engels, Feuerbach, cit., p. 57. (retornar ao texto)
(18) HEGEL, Enzyklopädie, § 190, Zusatz. (retornar ao texto)
(19) PRANTK, Geschite der Logik im Abendlande [História da Lógica no Ocidente], Berlim, 1955, I, p. 23. (retornar ao texto)
(20) GOETHE, Maximen und Reflexionen [ Máximas e Reflexões], Jubiläums-Ausgabe, XXXIX, p. 86. (retornar ao texto)
(21) Ibid., p. 87. (retornar ao texto)
(22) Ibid. IV, p. 231. (retornar ao texto)
(23) Ibid., XXXIX, p. 68. (retornar ao texto)
(24) HERDER, Preisschrift über den Ursprung der Sprache [Memória sobre a origem da Linguagem], Werke [Obras], Stuttgart e Tubinga, 1827, II, p. 40. (retornar ao texto)
(25) Lévy-Bruhl, Das Denken der Naturvölker [ A mentalidade primitive], tradução alemã, Viena e Leipzig, 1921, p. 145. (retornar ao texto)
(26) Leibniz, Resposta as objeções de Bayle, Obras filosóficas, Leipzig, 1906, II p. 395 s. (retornar ao texto)
(27) Leibniz, Novos Ensaios..., Ibid. III, p. 272. (retornar ao texto)
(28) Lenin, Cadernos Filosóficos, p. 229. 2ª ed. Berlim. (retornar ao texto)
(29) Marx, Manuscritos econômicos filosóficos, p. 84. (retornar ao texto)
(30) Ibid., p. 86. (retornar ao texto)
(31) Marx, Die Heiligie Familie [A Sagrada Familia], Ibid., p. 206. (retornar ao texto)
(32) Marx, Teorias sobre a mais-valia, Stuttgart, 1921, II/I, p. 309 e s. (retornar ao texto)
(33) Marx, Grundrisse… [Esboço…], ibid., p. 80. (retornar ao texto)
(34) Heidegger, Sein und Zeit [O Ser e o Tempo], 5ª ed., Halle 1951, p. 50. (retornar ao texto)
(35) Ibid., p.178. (retornar ao texto)
(36) Ibid., p. 179. (retornar ao texto)
(37) Ibid., p.167. (retornar ao texto)
(38) Ibid., p.169. (retornar ao texto)
(39) Ibid., p. 69. (retornar ao texto)
(40) Ibid., p.216, outra ed. p. 436. (retornar ao texto)
(41) Tchernichevisqui, Obras escolhidas, ed. alemã, Moscou, 1953, p.408 e ss. (retornar ao texto)
(42) Lukács, O realismo russo na literatura mundial, Berlim, 1952, p. 267 e ss. (retornar ao texto)
(43) Lenine, Tolstoi no espelho do marxismo, ed. alemã, Viena- Berlim, 1928, p. 57 e ss. (retornar ao texto)
(44) Lenine, O que fazer?, Obras, ed. Alemã, Viena-Berlim, 1929. IV/2 p. 159. Ed. Almema, vol. 5, Berlim 1955, p. 385 (retornar ao texto)