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Obervação: A tradução deste Prólogo foi iniciada pelo grupo de estudos “Estética de Lukács: trabalho, educação, ciência e arte no cotidiano do ser social”, do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário da Universidade Estadual do Ceará (IMO/UECE), que vem estudando sistematicamente a Estética I de Lukács desde o ano de 2006, sob motivação do professor Marcus Flávio A. da Silva e coordenação do professor Deribaldo Santos. A revisão final desta tradução ficou a cargo do professor Deribaldo Santos e da professora Francisca Galiléia P. da Silva. (Nota da tradução). Publicação autorizada por Mosóczi Zoltán.
Fonte: Anuário Lukács 2017 - 1a edição: Instituto Lukács, 2017, págs: 11-32 - www.institutolukacs.com.br
Colaboração: Sérgio Lessa
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons - CC BY-NC-ND 3.0.
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O livro que aqui se apresenta ao público é a primeira parte de uma estética em cujo centro se encontra a fundamentação filosófica do modo peculiar da positividade estética, a derivação da categoria específica da estética e sua delimitação referente a outros campos. Na medida em que o desenvolvimento se concentra em torno desses problemas e não penetra nas concretas questões da estética — mais do que o imprescindível para iluminar tais problemas —, esta parte constitui um todo fechado plenamente compreensível, sem necessidade de levar em conta as partes seguintes.
É imprescindível esclarecer o lugar do comportamento estético na totalidade das atividades humanas, das reações humanas com o mundo externo, assim como a relação entre as formações estéticas que daí surge, sua estrutura categorial (forma, etc.) e outros modos de relações com a realidade objetiva. A observação, sem preconceito, dessas relações apresenta grandes sinais da seguinte imagem. Primeiramente, é a conduta do homem na vida cotidiana, terreno que, pese a sua importância central para a compreensão dos modos de reações mais elevadas e complicadas, segue ainda em grande parte sem ser estudada. O comportamento cotidiano do homem é o começo e, ao mesmo tempo, o fim de toda atividade humana. Se fosse representada a cotidianidade como um grande rio, poderia ser dito que dele se desprendem, em formas superiores de recepção e reprodução da realidade, a ciência e a arte, e estas se diferenciam e se constituem de acordo com suas finalidades específicas, alcançando sua forma pura nessa especificidade — que nasce das necessidades da vida social — para, então, em consequência de seus efeitos, de sua influência na vida dos homens, desembocar novamente na correnteza da vida cotidiana. Esta, por sua vez, se enriquece constantemente com os resultados superiores do espírito humano, o assimila a suas necessidades cotidianas práticas e, assim, dando lugar, em seguida, como questões e como exigências, a novas ramificações de formas superiores de objetivação. Nesse processo, faz-se necessário o estudo detalhado das complicadas inter-relações entre a consumação imanente das obras científicas e artísticas e as necessidades sociais que as despertam, bem como aquelas que ocasionam sua origem.
Somente a partir da dinâmica da sua gênese, do desligamento, da autonomia e da raiz na vida da humanidade, é possível conseguir as peculiares categorias e estruturas das reações científicas e artísticas do homem à realidade. As considerações desta obra se dirigem, naturalmente, ao conhecimento da peculiaridade do estético; porém, como os homens vivem em uma realidade unitária e se encontram nas inter-relações com ela, a essência do estético não pode ser conceituada, nem aproximadamente, senão em constante comparação com os demais modos de reação. A comparação mais importante é com a ciência, mas também é imprescindível descobrir a relação do estético com a ética e a religião. Até mesmo os problemas psicológicos que se estabelecem nesse contexto resultam, necessariamente, de estabelecimento que apontem para o específico da positividade estética.
É óbvio que nenhuma estética pode contentar-se com isso. Ainda pôde Kant se limitar a resolver a questão metodológica geral com a pretensão de validar o juízo estético. No entanto — superando esta questão que não é, nem de longe, em nossa opinião, primária, mas sim, fortemente, derivada do ponto de vista da construção da estética —, o fato é que desde a estética hegeliana nenhum filósofo que tenha como objetivo clarear a essência do estético pode se satisfazer com um marco tão limitado e uma proposta tão unilateralmente orientada à teoria do conhecimento. Neste texto, discutir-se-á, muitas vezes, acerca da questionabilidade da estética hegeliana, tanto em sua fundamentação quanto em seus detalhes; porém, o universalismo filosófico de sua estética e seu modo histórico-sistemático de sintetizar são sempre exemplares para o estabelecimento de qualquer estética; somente com o conjunto das três partes previstas poderá esta estética realizar uma parcial aproximação a esse importante modelo.
No entanto, sem considerar as condições de saber e a capacidade que empreenda uma tal empresa hoje em dia, ocorre que os critérios de universalidade filosófica estabelecidos pela estética hegeliana, seu princípio de compreender o todo são, no momento presente, muito mais difícil de se colocar, objetivamente, em prática do que nos tempos de Hegel. Por isso, a teoria hegeliana das artes — também histórico-sistemática —, tão detalhada neste filósofo, fica, ainda, fora do âmbito traçado pelo plano da presente obra em qualquer das suas três partes. A segunda parte desta estética — cujo título provisório é: “A obra de arte e o comportamento estético” — tem como principal tarefa a de concretizar a estrutura específica da obra de arte deduzida e esquematizada com maior abrangência na primeira parte; assim, as categorias alcançadas na primeira parte, conforme meras generalidades, poderão cobrar suas fisionomias verdadeiras e determinadas. Problemas como os de conteúdo e forma, concepção de mundo e conformação (ou doação de forma), técnica e forma, etc., não podem se apresentar nesta primeira parte senão de modo genérico, como questões no horizonte, e sua verdadeira essência concreta não pode se manifestar filosoficamente, a não ser no curso da análise detalhada da estrutura da obra; o mesmo ocorre com os problemas do comportamento criador e receptivo. A primeira parte não pode ir para além de um esboço geral daquelas análises, reproduzindo, por assim dizer, o “lugar” metodológico de sua possível determinação. As relações reais entre vida cotidiana, por uma parte, e o comportamento científico, ético, etc., e a produção e reprodução estéticas por outra, o modo categorial essencial de suas proporções, interações, influências recíprocas, etc., exigem também análises orientadas para o mais concreto, as quais são impossíveis no marco de uma primeira parte que busca somente a fundamentação filosófica.
Análoga é a situação pela qual passa a parte terceira. Seu título provisório é: “A arte como fenômeno histórico-social”. Sem dúvida, é inevitável que a primeira parte, além de conter percursos históricos soltos, faça menção, antes de tudo, constantemente à essência histórica originária de cada fenômeno estético. A primeira figura precisa do caráter histórico-sistemático da arte foi cobrada, como já dissemos, na estética de Hegel. O marxismo corrigiu a rigidez da sistematização hegeliana, devido ao idealismo objetivo. A complicada interação entre materialismo dialético e materialismo histórico é já, em si, sinal latente de que o marxismo não pretende deduzir fases históricas do desenvolvimento partindo dos desdobramentos internos da ideia, senão que, pelo contrário, tende a captar o processo real em suas complicadas determinações histórico-sistemáticas. A unidade de determinações teoréticas (neste caso, estéticas) e históricas que se realizam, em última instância, de um modo bem contraditório e, consequentemente, não podem ser esclarecidas, nem no terreno dos princípios, nem dos casos concretos, a não ser mediante uma colaboração ininterrupta do materialismo dialético com o materialismo histórico.(1)
Na primeira e na segunda parte desta obra, dominam os pontos de vista do materialismo dialético, uma vez que se trata de expressar conceitualmente a essência objetiva do estético. Contudo, não há quase nenhum problema desta natureza que se resolva sem ilustrar, pelo menos alusivamente, seus aspectos históricos em inseparável união com a teoria estética. Na parte terceira, domina o método do materialismo histórico, porque nela se encontra, no primeiro plano de interesse, as determinações e as peculiaridades históricas da gênese das artes, de seu desenvolvimento, de suas crises, de suas funções dirigentes e servis, etc. Trata-se, antes de tudo, de estudar o problema do desenvolvimento desigual na sua gênese, no ser estético, nas obras e no efeito das artes. No entanto, isto significa, ao mesmo tempo, uma ruptura com toda vulgarização “sociológica” acerca da origem e da ação das artes; pois bem: certa análise histórico-sociológica que não simplifique as coisas inadmissivelmente é impossível, caso não se utilizem os resultados das investigações dialético- materialistas sobre a construção categorial, a estrutura e a específica natureza de cada arte, resultados que se devem utilizar, constantemente, para conhecer o caráter histórico das obras. A interação permanente e viva entre materialismo dialético e materialismo histórico se revela, pois, aqui desde outra perspectiva, porém não menos que nas duas primeiras partes.
Como apreciará o leitor, a construção destas investigações estéticas difere consideravelmente das habituais, mas isso não significa que com elas se busque uma originalidade de método; pelo contrário, estes estudos não querem ser mais que uma aplicação, a mais correta possível, do marxismo aos problemas da estética. E para que esta tarefa não seja, desde o início, corrompida por mal-entendidos, é necessário esclarecer, embora que brevemente, a posição e as relações desta estética referente à do marxismo. Como escrevi há uns 30 anos, em minha primeira contribuição à estética do marxismo,(2) sempre sustentei a tese de que ele tem uma estética própria — essa tese enfrenta muitas oposições. A razão disto é que, antes de Lênin, o marxismo, inclusive entre os seus maiores representantes teóricos como Plejánov ou Mehring, limitaram-se quase exclusivamente aos problemas do materialismo histórico.(3) Somente a partir de Lênin é que o materialismo dialético voltou novamente a se situar no foco de interesse. Por isso, Mehring — que, por demais, baseava sua estética em Kritik der Ulrteilskraft (crítica da Faculdade de Julgar, de Kant) — não pode encontrar nas divergências entre Marx-Engels e Lassalle mais que um choque de juízos de gosto subjetivo; essa controvérsia, com efeito, foi esclarecida faz tempo. Desde o agudo estudo de M. Lifschitz acerca do desenvolvimento das concepções estéticas de Marx, desde sua cuidadosa reunião e sistematização das dispersas sentenças de Marx, Engels e Lênin sobre questões estéticas, não podem subsistir dúvida alguma acerca da conexão e a coerência destas ideias.(4) Entretanto, a demonstração e a prova desta conexão sistemática não resolve a questão, muito menos a problemática da estética do marxismo.
Se nas sentenças, assim reunidas e sistematizadas, dos clássicos do marxismo estivesse já contida explicitamente uma estética, ou pelo menos, seu perfeito esqueleto, não seria necessário mais que um bom texto de enlace para ter pronto para o uso da estética marxista. Contudo, a situação real não tem nada a ver com isso. Como mostram numerosas experiências, nem sequer uma aplicação monográfica direta desse material a todas as questões particulares da estética podem apontar algo que seja cientificamente decisivo para a construção integral da estética. Encontramo-nos, pois, na paradoxal situação de que há e não há uma estética marxista, de que há que conquistá-la, criá-la, inclusive mediante investigações autônomas e que, ao mesmo tempo, o resultado não pode, senão, expor e fixar conceitualmente algo que já existe de acordo com a ideia. No entanto, este paradoxo se dissipa quando considerado todo o problema à luz do método da dialética materialista. O arcaico sentido literal da palavra “método”, indissoluvelmente enlaçado com a ideia de caminho de conhecimento, contém, com efeito, a exigência, posta ao pensamento, de percorrer determinados caminhos para alcançar determinados resultados. A direção desses caminhos está contida, com evidência indubitável, na totalidade da imagem do mundo projetada pelos clássicos do marxismo, especialmente pelo fato de que os resultados presentes nos aparecem como metas daqueles caminhos.
Dessa forma, embora não seja de um modo imediato, numa visível e simples olhada, os métodos do materialismo dialético indicam, com clareza, quais são os caminhos e como se deve percorrê-los se se pretende levar a realidade objetiva a conceito, em sua verdadeira objetividade, e aprofundar na essência de um determinado território de acordo com sua verdade. Somente realizando e mantendo, por meio da própria investigação, esse método, a orientação desses caminhos, se oferece a possibilidade de tropeçar com o que se busca, de construir corretamente a estética marxista ou, pelo menos, de aproximar-se da sua essência verdadeira. Nem uma nem outra coisa conseguirá quem alimente a ilusão de conseguir, com uma simples interpretação de Marx, reproduzir a realidade e, ao mesmo tempo, a concepção dela por Marx. Os objetivos somente poderão ser alcançados mediante uma consideração sem preconceito da realidade e mediante sua elaboração com os métodos descobertos por Marx: fidelidade à realidade e fidelidade ao marxismo. Neste sentido, embora o presente trabalho seja em todos os seus elementos e em sua totalidade resultado de uma investigação autônoma, não se apresenta com nenhuma pretensão de originalidade, pois devem todos os meios que utiliza para aproximar-se da verdade — todo seu método — ao estudo da obra que nos deixaram os clássicos do marxismo.
A fidelidade ao marxismo, contudo, significa ao mesmo tempo a continuidade com as grandes tradições do domínio intelectual da realidade pelo homem. No período staliniano, e especialmente por obra de Jdhanov, sublinhou-se, exclusivamente, o que separa o marxismo das grandes tradições do pensamento humano. E se, ao fazê-lo, se tivesse acentuado somente o qualitativamente novo do marxismo, a saber, o salto que separa sua dialética de suas precursoras mais desenvolvidas, como as traçadas por Aristóteles e Hegel, a atitude poderia ser considerada relativamente justificada. Um certo ponto de vista poderia, inclusive, ser considerado como necessário e útil, sempre que não destacasse — de um modo profundamente adialético — o radicalmente novo do marxismo unilateralmente, isoladamente e, portanto, metafisicamente, ignorando o momento da continuidade no desenvolvimento mental dos homens. A realidade — e por isso, também, seu reflexo e reprodução mental — é uma unidade dialética de continuidade e descontinuidade, de tradição e revolução, de transições paulatinas e saltos. O próprio socialismo científico é algo completamente novo na história, porém consuma, não obstante, ao mesmo tempo, um milenário desejo humano, aquele ao qual os melhores espíritos aspiraram. Tal é também a situação quando se trata da captação conceitual do mundo pelos clássicos do marxismo.
A verdade profunda do marxismo, que nem os ataques nem o silêncio podem arranhar, consiste entre outras coisas que, com sua ajuda, podem se manifestar nos fatos básicos, antes ocultos, da realidade da vida humana, e tornar-se conteúdo da consciência dos homens. O novo cobra, assim, um sentido duplo: a vida humana consegue um novo conteúdo, um novo sentido, à consequência da realidade do socialismo, antes inexistente, e, ao mesmo tempo, a desfetichização conseguida pelo método marxista, a investigação e seus resultados, põe sob uma nova luz o presente e o passado, a inteira existência humana que acreditava ser conhecida. Sendo assim, tornam-se compreensíveis todos os anteriores intentos de captar essa existência em sua verdade, porque conseguem um sentido completamente novo. A perspectiva de futuro, o conhecimento do presente e a compreensão das tendências que o produziram, intelectual e praticamente, encontram-se, então, numa indissolúvel interação. A acentuação unilateral do novo e do que separa suscita o perigo de estreitar e empobrecer todo o concreto e ricamente determinado que contém o novo, ao reduzi-lo a uma diversidade abstrata. A comparação da caracterização da dialética por Lênin com a de Stalin mostra muito claramente as consequências de uma tal diferença metodológica; e as numerosas tomadas de posição pouco razoáveis a respeito da herança hegeliana deram lugar a uma pobreza — às vezes espantosa — das investigações lógicas na época staliniana.
Nos clássicos mesmos não se encontra rastro algum dessa contraposição metafísica entre o velho e o novo. A relação entre ambos se apresenta mais claramente nas proposições produzidas pelo desenvolvimento histórico-social, mesmo ao se fazer manifestar a verdade. O prender-se a este método, único correto, é talvez para a estética ainda mais importante que nos outros terrenos, pois a análise precisa dos fatos mostrará aqui, com especial clareza, que a consciência explícita do praticamente realizado no terreno do estético foi deixada sempre por trás do dito resultado prático. Precisamente por isso tem uma extraordinária importância os poucos pensadores que chegaram, relativamente rápido, a alguma nitidez sobre os autênticos problemas do estético. Por outro lado, como mostrarão nossas análises, muitas vezes pensamentos que parecem muito distantes, ideias éticas ou filosóficas, por exemplo, são importantíssimos para a compreensão dos fenômenos estéticos.
Para não antecipar, agora, muitas questões que não estão em seu lugar aqui, a não ser no marco de um tratamento detalhado, limitar-nos-emos a indicar que toda a construção e todos os detalhes de execução desta obra — precisamente porque deve sua existência ao método de Marx — dependem do modo mais profundo dos resultados conseguidos por Aristóteles, Goethe e Hegel não somente em seus escritos diretamente relativos à estética, senão na totalidade de suas obras. Se, ademais, expresso meu agradecimento ao legado de Epicuro, Bacon, Hobbes, Spinosa, Vico, Diderot, Lessing e aos pensadores russos democrata-revolucionários, limito-me a nomear as figuras mais importantes para mim; a lista dos autores sobre os quais me considero em dívida por este trabalho não se esgota, tampouco, com os enumerados acima; o modo de citar usado nesta obra responde a esta convicção. Não se trata aqui de estudar problemas da história da arte e da estética. O único que importa agora é esclarecer fatos ou linhas de desenvolvimento relevantes para a teoria geral e, por isso, em cada caso, de acordo com a constelação teórica considerada, serão citados autores ou obras que — com acerto ou não — tenham, primeiramente, formulado algo, ou cuja opinião pareça especialmente característica de uma determinada situação. Necessariamente, era alheia a esta obra a aspiração a uma documentação literária completa.
Do que foi dito até agora, segue-se que o ponto polêmico de todo o presente trabalho se dirige contra o idealismo filosófico. Todavia, pela natureza do tema, fica fora de nosso enfoque a polêmica gnosiológica contra o idealismo filosófico, aqui interessando as questões específicas nas quais o idealismo filosófico resulta ser um obstáculo para a conceituação adequada de situações objetivas especificamente estéticas. Na segunda parte estudaremos as confusões que se produzem quando o interesse estético se concentra sobre a beleza (ou, quando é o caso, em seus chamados momentos); aqui, esta temática será abordada apenas esporadicamente. Tanto mais importante nos parece destacar o caráter necessariamente hierárquico de toda estética idealista, pois quando as formas de consciência se afirmam como últimos princípios determinadores da objetividade de todos os objetos estudados, de seu lugar no sistema, etc., e não — como no materialismo — de forma que modos de reação a algo existente objetivamente, com independência da consciência e já concretamente conformado, aquelas formas da consciência têm por força que reivindicar o papel de juízes supremos da ordem intelectual e construir hierarquicamente seu sistema. Cada hierarquia concreta é historicamente muito diversa de outras, mas isto não é coisa que tenha que discutir aqui, somente nos interessando a natureza essencial de qualquer dessas hierarquias que falsificam todos os objetos e todas as relações.
Por causa de um corrente mal-entendido, às vezes se acredita que a imagem do mundo própria do materialismo — prioridade do ser relativo à consciência, do ser social relativo à consciência social — é também de caráter hierárquico. Para o materialismo, a prioridade do ser é, antes de tudo, uma questão de fato: existe ser sem consciência, porém não há consciência sem ser. Entretanto, isso não quer dizer, em modo algum, que exista uma subordinação hierárquica da consciência ao ser. Ao contrário: essa prioridade e seu reconhecimento concreto, teórico e prático, pela consciência, criam por fim a possibilidade de que a consciência domine realmente o ser. O simples fato do trabalho ilustra isto de modo mais concludente. E quando o materialismo histórico afirma a prioridade do ser social relativo à consciência social, trata-se, simplesmente, também do reconhecimento de uma facticidade. Igualmente, a prática social se orienta ao domínio do ser social, e o fato de que no curso da história não tenha conseguido realizar esses fins, senão muito relativamente, não cria, tampouco, uma relação hierárquica entre ser e consciência, senão que determina, simplesmente, as condições concretas nas quais se faz possível uma prática eficaz, como a qual, certamente, determina ao mesmo tempo seus limites concretos, aquele ambiente de jogo e desdobramento que o ser social de cada situação oferece à consciência. Nessa relação se manifesta, pois, uma dialética histórica, em modo algum uma estrutura hierárquica. Quando um pequeno barco sucumbe diante de uma tempestade, que um grande navio a motor superaria sem dificuldades, manifesta-se a superioridade real do ser ou a limitação da consciência, própria da sociedade da qual se trata, relativa do ser, mas não uma relação hierárquica entre o homem e as forças naturais; e isto tanto menos quanto o desenvolvimento histórico — e, com ele, o crescente conhecimento da verdadeira natureza do ser — produz um constante aumento das possibilidades de domínio do ser pela consciência.
O idealismo filosófico tem que traçar sua imagem do mundo de um modo completamente distinto. Não são, para ele, as reais e cambiantes correlações de forças que produzem, em cada caso, uma superioridade ou uma inferioridade na vida; mas que desde o primeiro momento se afirma uma hierarquia fixa das potências conscientes que não somente produzem e ordenam as formas da objetividade e as relações entre os objetos, mas que, ademais, encontram-se numa ordenação hierárquica já entre elas. Ilustremos brevemente esta situação mencionando nosso problema: quando Hegel, por exemplo, correlaciona a arte com a intuição, a religião com a representação e a filosofia com o conceito, e as concebe como regidas para essas formas da consciência, formula, assim, uma precisa hierarquia “eterna” e indestrutível que como todo conhecedor de Hegel sabe, determina também, de acordo com ele, até mesmo o destino histórico da arte. (Porém, para aquela questão de princípio, também não mudaria nada o jovem Schelling ao atribuir em sua ordem^ hierárquica, à arte um lugar contraposto ao que tem em Hegel). É evidente que isso dá origem a toda uma celeuma de pseudoproblemas que confundiu, desde Platão, a metodologia de todas as estéticas, pois independentemente de que a filosofia idealista estabeleça, desde um ponto de vista determinado, a supra ordenação ou a subordinação da arte a outras formas da consciência, o pensamento se separa, em todo caso, do estudo das peculiaridades específicas dos objetos, os quais se reduzem todos a um denominador comum — geralmente inadmissível — com objeto de poder compará-los no cerne de uma ordem hierárquica e de poder inseri-los em um nível desejado de hierarquia. Trata-se de problemas da relação da arte com a natureza, com a religião, com a ciência, etc., esses falsos problemas têm que produzir sempre deformações das formas da objetividade, das categorias.
O significado da ruptura, assim realizada com todo o idealismo filosófico, manifesta-se ainda mais claramente em suas consequências quando concretizamos, ulteriormente, nosso ponto de partida materialista, a saber: quando concebemos a arte como um modo peculiar de manifestação do reflexo da realidade, modo que não é mais que um gênero das universais relações do homem com a realidade, na qual aquela reflete esta. Uma das ideias básicas decisivas desta obra é a tese de que todas as formas de reflexo — as que analisamos, acima de tudo, as da vida cotidiana, a da ciência e a da arte — reproduzem sempre a mesma realidade objetiva; este ponto de partida, que parece óbvio e até trivial, tem amplas consequências. Como a filosofia materialista não considera que as formas da objetividade, as categorias correspondentes aos objetos e as suas relações, sejam produtos de uma consciência criadora, como faz o idealismo, senão que vê nelas uma realidade objetiva existente com independência da consciência, todas as divergências e até contraposições, que se apresentam nos diversos modos de reflexo, têm que se desenvolver no marco dessa realidade material e formalmente unitária.
Para poder conceituar a complicada dialética dessa unidade da unidade e da diversidade é preciso começar por romper com a difundida noção de um reflexo mecânico, fotográfico. Se tal fosse o fundamento sobre a qual cresceram as diferenças, então todas as formas específicas deveriam ser deformações subjetivas dessa única reprodução “autêntica” da realidade, ou bem a diferenciação seria de um caráter secundário, absolutamente espontâneo, senão consciente e intencionado. A infinidade intensiva e extensiva do mundo objetivo impõe, não obstante, a todos os seres vivos, e acima de tudo ao homem, uma adaptação, uma seleção inconsciente no reflexo. Esta seleção — sem prejuízo de seu caráter fundamentalmente objetivo — tem uma componente subjetiva que não se pode eliminar, na qual está condicionada de um modo meramente fisiológico ao nível animal, e no homem, ademais, de um modo social. (Influência do trabalho no enriquecimento, na difusão, no aprofundamento, etc., das capacidades humanas de refletir a realidade). A diferenciação é, pois — acima de tudo nos terrenos da ciência e da arte — um produto do ser social, das necessidades nascidas dele, da adaptação do homem a seu entorno, do crescimento de suas capacidades em interação com a necessidade de estar à altura de novas tarefas cada vez. Estas adaptações ao novo têm que se realizar diretamente no indivíduo humano, fisiológica e psicologicamente, porém desde o primeiro momento cobram uma generalidade social, porque as novas tarefas, as novas e modificadoras circunstâncias, têm uma natureza geral (social) e não admitem variantes subjetivo-individuais mais que no marco do âmbito social.
A exposição das características essenciais específicas do reflexo estético da realidade ocupa uma parte decisiva, qualitativa e quantitativamente, do presente trabalho. De acordo com a intenção básica desta obra, tais investigações são de natureza filosófica, isto é, concentram-se sobre as seguintes questões: que formas, relações, proporções, etc., específicas, recebem na positividade estética o mundo das categorias comum a todo reflexo? Resulta, naturalmente, inevitável estudar, também, questões psicológicas; a estes problemas se dedica um capítulo especial (o décimo primeiro). Já aqui há que sublinhar que a intenção filosófica básica nos obriga a considerar nas artes, acima de tudo, as características estéticas comuns do reflexo, embora, de acordo com a estrutura pluralista da esfera estética, se tem em conta, na maior medida possível, a particularidade das diversas artes ao tratar dos problemas categoriais. O modo, tão peculiar, de se manifestar o reflexo da realidade em artes como a música e a arquitetura, obriga a dedicar a esses casos especiais um capítulo próprio (o décimo quarto), com a intenção de clarear suas diferenças específicas de tal modo que nelas mesmas se confirmem os princípios estéticos gerais.
Esta universalidade do reflexo da realidade, como fundamento de todas as interações do homem com seu entorno, tem, se se pensa, por conseguinte, até o final, consequências muito amplas do ponto de vista da concepção do mundo, o que proporciona compreensão do estético. Para todo idealismo que seja consequente, qualquer forma de consciência que seja importante na existência humana — a estética, em nosso caso —, por ter sua origem hierárquica estabelecida na conexão de um mundo ideal, deve possuir uma essência “supra-temporal”, “eterna”. Na medida em que sejam susceptíveis de tratamento histórico, essas formas se consideram em um marco meta-histórico de um ser ou um valer “atemporal”. Mas esta posição, aparentemente metodológico- formal, muda inevitavelmente em uma posição de conteúdo em elemento de concepção do mundo, pois dela se segue, necessariamente, que o estético, tanto o produtor quanto o receptor, pertence a “essência” do homem, já se determina desde o ponto de vista do mundo ideal ou desde o do Espírito do Mundo, antropológica ou ontologicamente.
Nossa consideração materialista tem que oferecer uma configuração completamente diversa. A realidade objetiva que se manifesta nos diversos modos de reflexo está submetida a mudança ininterrupta e, ademais, esta mudança apresenta direções muito determinadas, linhas de desenvolvimento. A realidade mesma é histórica e de acordo com sua essência objetiva; as determinações históricas, de conteúdo e forma, que aparecem nos diferentes reflexos são, de acordo com isso, aproximações mais ou menos adequadas a este aspecto da realidade objetiva. No entanto, uma autêntica historicidade não pode consistir em uma mera alteração de conteúdos em formas imutáveis, com categorias não menos inalteráveis. Precisamente a mudança dos conteúdos tem que influenciar, necessariamente, nas formas, modificando-as, tem que carregar certos deslocamentos de funções no sistema categorial e, a partir de certo nível, inclusive transformações propriamente ditas: o desaparecimento de velhas categorias e o aparecimento de outras novas. A historicidade da realidade objetiva tem como consequência uma determinada historicidade da doutrina das categorias.
Sem dúvida, neste contexto, é preciso estar muito atento para não confundir transformações objetivas com transformações subjetivas, pois, embora pensemos que a natureza também tenha que se conceber, em última instância, historicamente, as etapas desta história da natureza são de tão grandes dimensões temporais, bem como suas transformações objetivas quase não contam para a ciência. Tanto mais importante é, naturalmente, a história subjetiva dos descobrimentos de objetividades, relações, conexões categoriais. Somente em biologia é possível se estabelecer um ponto de inflexão na origem das categorias objetivas da vida — pelo menos na parte conhecida do universo — e, com isto, uma gênesis objetiva. A situação é qualitativamente diversa quando se trata do homem e da sociedade humana. Aqui há, sem dúvida, constantemente a gênese de concretas categorias e de conexões categoriais que não podem “deduzir-se” simplesmente da mera continuação do processo ocorrido até umas e outras, cuja gênese, portanto, estabelece especiais exigências ao conhecimento.
Entretanto, a separação da investigação histórico-genérica da análise filosófica do fenômeno surgido em cada caso daria lugar, se fosse feito com pretensão metodológica, a uma deformação dos fatos verdadeiros. A verdadeira estrutura categorial de cada fenômeno desta classe está vinculada de modo mais íntimo com sua gênese: somente é possível mostrar, de um modo completo e em sua proporcionalidade correta, a estrutura categorial se se vincula, organicamente, à análise temática com a explicação genética; a dedução do valor no começo d'O Capital de Marx é o exemplo modelo deste método histórico-sistemático. Esta obra procura realizar essa vinculação dos dois aspectos em suas exposições concretas acerca do fenômeno básico do estético e em todas suas ramificações e questões de detalhe. E esta metodologia muda, também, em concepção do mundo porque supõe uma ruptura radical com todas as concepções que vêm na arte, no comportamento artístico, algo ideal, supra-histórico ou, pelo menos pertencente ontológica ou antropologicamente à “ideia” do homem. Do mesmo modo que o trabalho, que a ciência e que todas as atividades sociais do homem, a arte é um produto da evolução social, do homem que se faz homem mediante seu trabalho.
No entanto, até mesmo além desse planejamento geral, a historicidade objetiva do ser e seu modo específico e destacado de manifestar-se na sociedade humana têm consequências importantes para a captação da peculiaridade principal do estético. Será tarefa de nossas concretas argumentações, a demonstração de que o reflexo científico da realidade procura se libertar de todas as determinações antropológicas, tanto as derivadas da sensibilidade como as de natureza intelectual, ou seja, que esse reflexo se esforça para reinventar os objetos e suas relações da mesma maneira como são em si, independentemente da consciência. Por outro lado, o reflexo estético parte do mundo humano e se orienta a ele; isto, como exporemos, não significa nenhum objetivismo puro e simples. Pelo contrário, a objetividade dos objetos é preservada, porém de tal modo que contenha todas suas referências típicas à vida humana: de tal modo, pois, que a objetividade apareça como correspondente ao estado da evolução humana, externa e interna, que é cada desenvolvimento social.
Isto significa que toda conformação estética inclui em si e se insere no hic et nunc histórico de sua gênese, como momento essencial de sua objetividade decisiva. Como é natural, cada reflexo está determinado materialmente, tematicamente, pelo lugar de sua consumação. Nem mesmo no descobrimento das verdades matemáticas ou científico-naturais puras é casual o momento temporal; é verdade que nestes casos o ponto temporal tem mais relevância temática para a história das ciências do que para o próprio saber, relativo ao qual pode se tomar como de todo indiferente o momento e as circunstâncias históricas — necessárias em si — em que teve lugar, por exemplo, a primeira formulação do Teorema de Pitágoras. Até mesmo sem poder atender aqui à complicada situação que se dá nas ciências sociais, deve afirmar-se, também para estas, que as influências de época, em suas diversas formas, podem obstacularizar a elaboração da objetividade real na reprodução dos fatos histórico-sociais. A situação, dizemos, é completamente contraposta a isso quando se trata do reflexo estético da realidade: jamais houve uma obra de arte importante sem dar vida com a forma ao hic et nunc histórico do momento refigurado. Uma que tenham os artistas consciência disso, uma vez que criam acreditando que produzem algo supra-temporal, ou que continuam simplesmente um estilo anterior, ou que realizam um ideal “eterno” tomado do passado, o fato é que, na medida em que suas obras são artisticamente autênticas, nascem das mais profundas aspirações da época em que se originam; o conteúdo e a forma das criações artísticas verdadeiras não podem separar-se nunca — esteticamente — desse solo de sua gênese. A historicidade da realidade objetiva cobra, precisamente, nas obras de arte sua forma subjetiva e objetiva.
Esta essência histórica da realidade conduz a um ulterior e importante ciclo problemático que, primeiramente, é também de natureza metodológica, embora, como todo problema autêntico de uma metodologia concebida corretamente — não de modo meramente formal —, muda necessariamente o elemento de concepção do mundo; referimo-nos ao problema do imanentismo. Desde um ponto de vista puramente metodológico, o imanentismo é uma exigência inevitável do conhecimento científico e da conformação artística. Um complexo de fenômenos não pode se considerar cientificamente conhecido senão quando aparece totalmente conceituado a partir de suas propriedades imanentes, das legalidades imanentes que operam nele. Na prática, como é natural, tal plenitude de concepções é sempre somente aproximada; a infinidade extensiva e intensiva dos objetos, suas relações estáticas e dinâmicas, etc., não permitem conceber como absolutamente definitivo nenhum conhecimento, em nenhuma forma, nem pensar que pode estar isento alguma vez de correções, limitações, ampliações, etc.
Este “ainda não”, característico do domínio científico da realidade, sempre foi interpretado como transcendência, desde a magia até o positivismo moderno, esquecendo que muita coisa sobre a qual se proclamava um “ignorabimus” já está incluída como problema solúvel — embora talvez, praticamente, ainda não tenha sido resolvido — na ciência exata. A origem do capitalismo, as novas relações entre a ciência e a produção, combinados com as grandes crises das concepções religiosas do mundo, impuseram a substituição da velha transcendência ingênua por outra nova, complicada e refinada. O novo dualismo nasceu já na época de ataque ideológico contra a teoria copernicana por parte dos representantes do cristianismo: tratava-se de reduzir o copernicanismo a método meramente prático com objetivo de poder admitir a imanência quanto ao mundo fenomênico explicado pela teoria, negando a esta, ao mesmo tempo, a sua referência última da realidade; tratava-se, em substância, de negar a competência da ciência para falar de um modo válido acerca da realidade.
À primeira vista, pode parecer que esta destituição da ciência não altera em nada a realidade do mundo, dado que os homens podem cumprir suas tarefas imediatas práticas na produção, independentemente de que considerem que o objeto, os meios, etc., de sua atividade são um em-si ou são mera aparência. Mas essa ideia é sofística em dois sentidos: em primeiro lugar, todo homem ativo, em sua prática real, está sempre convencido de tratar com a realidade — até o físico — positivista, por exemplo, o está quando realiza um experimento, e, em segundo lugar, tal concepção quando — por motivos sociais — acaba arraigando profundamente e a difundir-se, corrói as mediadas relações ético- intelectuais dos homens com a realidade. A filosofia existencialista, segundo a qual o homem, “impelido” no mundo, enfrenta-se com o Nada é — do ponto de vista histórico-social — o contraponto complementar e necessário do desenvolvimento filosófico que leva de Berkeley a March ou a Carnap.
O verdadeiro campo de batalha entre o imanentismo e a transcendência é, sem dúvida, a ética. Por isso, no marco desta obra teremos que nos limitar a tocar as determinações decisivas desta controvérsia, sem poder expô-las suficientemente; o autor espera poder oferecer, dentro de pouco tempo, suas concepções, de forma sistemática, a este respeito. Aqui nos limitaremos a indicar, brevemente, que o velho materialismo — desde Demócrito até Feuerbach — não conseguiu conceber a imanência do mundo a não ser de um modo mecanicista, razão pela qual, por uma parte, não podiam entender o mundo se não como uma maquinaria de relógio que necessitava uma ação — transcendente — para pôr-se em marcha; e por outra parte, em tal imagem do mundo, o homem não podia se apresentar mais que como produto necessário e objeto das leis imanentes: sua subjetividade, sua prática ficavam sem se explicar por estas leis. A doutrina hegeliano-marxiana da auto-produção do homem por seu próprio trabalho “doutrina felizmente formulada por Gordon Childe com a expressão ‘man makes himself'”(5)— consuma finalmente a imanência da imagem do mundo, da base teórica de uma ética imanentista, cujo espírito encorajava, desde há muito tempo, as geniais concepções de Aristóteles e Epicuro, Spinoza e Goethe. (Como é natural, neste contexto desempenha um destacado papel a teoria da evolução biológica, a constante aproximação à origem da vida na interação de leis físicas e químicas).
Esta questão é de suma importância para a estética, e será tratada, por isso, detalhadamente, nas concretas exposições que constituem esta obra. Não teria sentido resumir aqui, brevemente, os resultados destas investigações, os quais não podem ter força de convicção a não ser perante o desdobramento de todas as determinações pertinentes. Porém, para não silenciar a atitude do autor, nem do prólogo, diremos, brevemente, que o imanente fechamento, o descansar-em-si-mesma de toda autêntica obra de arte — espécie de reflexo que não encontra analogia nas demais classes de reações humanas ao mundo externo — é sempre, por seu conteúdo, queira ou não queira, testemunho da imanência. Por isso, a contraposição entre alegoria e símbolo, tal como genialmente a viu Goethe, é uma questão de ser ou não-ser para a arte. E por isso também, como se mostrará em um capítulo a este respeito (décimo sexto), a luta pela libertação da arte contra sua submissão à religião é um fato fundamental de sua origem e de seu desligamento.
A investigação genética tem que demonstrar precisamente como, a partir da natural e consciente vinculação do homem primitivo à transcendência, vinculação sem a qual são inimagináveis os estágios iniciais de desenvolvimento humano em qualquer caso, a arte foi abrindo-se em passos lentos para a sua independência no reflexo da realidade, para a sua peculiaridade na elaboração desta realidade. O que aqui importa, naturalmente, é o desenvolvimento dos fatos estéticos objetivos, não o que tinham pensado sobre eles os que os realizavam. Precisamente na prática artística destaca, sobremaneira, a divergência entre o fato e a consciência. O mote de toda nossa obra, a frase de Marx: “não o sabem, mas o fazem” se aplica com especial literalidade em nosso tema. A estrutura categorial objetiva da obra de arte faz que todo movimento da consciência até o transcendente, tão natural e frequente na história do gênero humano, transforme-se de novo em imanência ao obrigar-lhe a aparecer como o que é, como elemento da vida humana, de vida imanente, como sintoma de seu ser-assim de cada momento.
A repetida condenação da arte, do princípio estético, desde Tertuliano até Kierkegaard, não é nada casual, a não ser o reconhecimento de sua essência real, conseguido no acampamento de seus inimigos inatos. Esta obra não registra, simplesmente, essas brigas necessárias, mas toma determinada posição nela: pela arte, contra a religião. Este é o sentido de uma grande tradição que arranca em Epicuro, passa por Goethe e chega a Marx e a Lênin. O desdobramento dialético, a separação e a reunião de tantas determinações — múltiplas, contraditórias, convergentes e divergentes — de objetividade e de suas relações, exigem um método próprio já para a mera exposição. Ao dar aqui um esquema de seus princípios básicos não se pretende pronunciar, neste prólogo, uma apologia do próprio modo de exposição. Ninguém poderá notar, tão claramente como o próprio autor, seus limites e seus defeitos. O autor quer somente declarar-se, aqui, responsável por suas intenções; ele não pode fazer um julgamento a respeito de suas realizações acertadas ou erradas. Por isso, diremos algo somente de nossos princípios. Estes arraigam na dialética materialista cuja realização consequente em terreno tão amplo e que abarca tantas coisas dispersas significa, antes de tudo, uma ruptura com os expedientes formais de exposição, baseados em definições e delimitações mecânicas, em “distinções puras” e divisões.
Neste sentido, quando, para colocarmos de repente entre as coisas, partimos do método das determinações contrapondo-o ao das definições, estamos apelando aos fundamentos reais da dialética, à infinitude extensiva e intensiva dos objetos e de suas relações. Todo intento de captar intelectualmente essa infinitude tem que sofrer de insuficiências. No entanto, a definição fixa sua própria parcialidade como coisa definitiva e tem, consequentemente, que violentar o caráter fundamental dos fenômenos. A determinação, por outro lado, considera-se desde o princípio como coisa provisional (de provisório), necessitando de complemento, como algo que essencialmente tem que ser continuado, desenvolvido, concretado. Isto é: quando, nesta obra, toma-se um objeto, uma relação entre objetividade, uma categoria e, mediante sua determinação, ilumina-se com a conceitualidade e a conceituabilidade, busca-se sempre e se pensa sempre uma coisa dúplice: caracterizar o objeto de modo que possa ser identificado sem confusões, mas não pretende que o ser-conhecido tenha já que encontrar, neste nível, a sua totalidade, de tal forma que estivesse justificado se deter, definitivamente, neste ponto. Somente é possível aproximar-se do objeto, paulatinamente, passo a passo, contemplando-o em diversos contextos, de tal modo que a determinação inicial, embora não se destrua — pois nesse caso seria falsa — vá se enriquecendo constantemente e vá se aproximando à infinitude do objeto ao que se orienta; é, por assim dizer, um processo de astúcia.
Sendo assim, este processo tem lugar nas mais diversas dimensões da reprodução intelectual da realidade e, por isso, não se pode considerá-lo nunca fechado a não ser relativamente. Porém, executando-se esta dialética corretamente, produz-se um constate progresso de iluminação e de riqueza da determinação do que se pesquisa e de sua conexão sistemática; por isso, não se deve confundir o retorno, da mesma determinação, em constelações e dimensões distintas, com uma simples repetição. Mas o progresso assim alcançado não é somente um avanço, um aprofundamento progressivo na essência do objeto que se procura entender, a não ser que ademais — só se realmente foi conseguido de forma dialética — lançará nova luz sobre o caminho passado e já percorrido, e o fará transitável no sentido mais profundo. Max Weber me escreveu certa vez a propósito de meus primeiros e muito deficientes intentos sobre esta questão, que faziam o efeito de dramas ibsenianos, cujo começo não se entende a não ser quando já se sabe o desenrolar. Enxerguei nessa crítica uma fina compreensão de minhas pretensões, embora, naquela época, minha produção não merecia, de forma nenhuma, um tal real elogio. Talvez — quero esperar — que esta obra possa apresentar-se mais à realização desse estilo de pensamento.
Permita-me o leitor, por último, mencionar brevemente a gênese de minha estética. Iniciei minha carreira como crítico literário e ensaísta, buscando apoio teórico primeiro na estética de Kant e, logo, na de Hegel. No inverno de 1911-1912, estando em Florença, elaborei o primeiro plano de uma estética sistemática e comecei a trabalhar nela durante os anos de 1912-1914, em Heidelberg. Sigo recordando com agradecimento o interesse benévolo e crítico que mostraram, por meu trabalho, Ernst Bloch, Emil Lask e, antes de tudo, Max Weber; porém, fracassei totalmente na empreitada. E quando esta obra toma posição apaixonada contra o idealismo filosófico, a crítica segue dirigindo- se sempre, também, contra minhas próprias tendências juvenis. Visto de fora, o começo da I Guerra Mundial interrompeu esse trabalho. Já a Teoria do Romance(6), escrita durante o primeiro ano da guerra, orienta-se mais a problemas histórico-filosóficos: os estéticos deveriam ser somente sintomas, sinais destes. Em seguida, a ética, a história e a economia foram situando-se cada vez mais no foco de meu interesse. Tornei-me marxista, e justamente na década de minhas atividades de prática política, ocorria, ao mesmo tempo, o período de discussão interna do marxismo, de assimilação real do mesmo. Quando — em 1930 — voltei a ocupar- me intensamente dos problemas artísticos, não pensava em uma estética sistemática a não ser como uma perspectiva muito distante de meu horizonte. Finalmente, duas décadas depois, no início dos anos 1950, pude pensar em retornar, com uma concepção do mundo e um método completamente distinto, à realização de meu sonho juvenil, e realizá-lo com conteúdos completamente distintos e com métodos totalmente contrapostos.
Não queria entregar ao público este livro sem manifestar meus agradecimentos a várias pessoas: ao professor Bence Szabolcsi que me ajudou, com paciência inesgotável, a ampliar e a aprofundar minha deficiente cultura musical; à senhora Agnes Heller que foi lendo meus manuscritos durante a redação e cuja ajuda e crítica foram muito benéficos para o texto definitivo; e, ao Dr. Franck Benseler por sua iniciativa, que deu origem a esta edição, e também por seu generoso trabalho na preparação e na correção do manuscrito.
Budapest, dezembro de 1962.
Essas obras são as que penso resumir os principias resultados de minha evolução filosófica, minha ética e minha estética — cuja primeira parte, que forma um todo autônomo, se apresenta aqui —, devem ser dedicadas como modesta intenção de agradecer mais de 40 anos de comunhão de vida e pensamento, de trabalho e luta à Gertrud Bortstieber Lukács, falecida em 28 de abril de 1963. Agora já não posso dedicar mais que a sua memória.
Notas de rodapé:
(1) As tendências vulgarizadoras do marxismo, do período stalinista, manifestam-se também nos fatos de que o materialismo dialético e o materialismo histórico foram tratados, muitas vezes, como ciências separadas uma da outra, ao ponto de se formarem “especialistas” em cada ramificação. (retornar ao texto)
(2) “Die Sickiengendebatte zwischen Marx-Engels und Lassalle” (A polêmica sobre Franz Sickiengen entre Marx-Engels e Lassalle), em Georg Lukács, Karl Marx und Friedrich Engels als Literaturhistoriker (Karl Marx und Friedrich Engels como historiadores de literatura), Berlin 1948-1952. (retornar ao texto)
(3) Mehring, Gesammeltete Schriftem und Aufsatze, Berlin 1929. (retornar ao texto)
(4) M. Lifschitz, M. Lifschtiz, “Lenin o Kulture i isskustve”, Masksisto-Leninskoje isskustvosnaniye, 2 (1932), /143 ss.;el mismo, “Karl Marx und die Asthetik, Internationale Literatur, III/2 (1933), ss.; M. Lifschitz y F. Shiller. Marx i Engels o isskustve I literature, Moscú 1933; Karl Marx-Friedrich Engels, Uber Kunst und Literatur, (De arte e literature), ed. por Lifschitz (1937), direção da edição alemã por Kurt Thöricht-Roderich Fechner, Berlin 1949; M. Lifschitz, The Philosophy of Art of Karl Marx, trad. Inglesa T. Winn, New York 1938; o mesmo: Karl Marx und die Asthetik (Karl Marx e a estética), Dresden 1960.
José Paulo Netto e Miguel Makoto Cavalcante Yoshida cuidaram da coletânea intitulada Cultura, Arte e Literatura: textos escolhidos/ Karl Marx e Friedrich Engels, publicada pela Expressão Popular com 1ª edição datada de outubro de 2010. Esse livro concentra parte dos esforços de Mikhail Alexandrovicht Lifschtiz que, na direção do Instituto Marx-Engels-Lênin, reuniu sistematicamente a reflexão estética dos fundadores do marxismo. Netto e Yoshida escrevem em nota desta edição, que Eneida de Moraes já havia publicado uma outra coletânea com o título Trechos Escolhidos de Marx, Engels, Lênin e Stalin sobre literatura e arte - editora Calvino, Rio de Janeiro, 1945 -, em que se reuniu alguns importantes trabalhos desses autores sobre estética (Nota da tradução). (retornar ao texto)
(5) V. Gordon Childe, What happened in history, 1941. (retornar ao texto)
(6) Georg Lukács, Die Theorie dês Romans. Ein Geschichtsphilosophischer Versuch uber die Formen der grossen Epik, Berlín 1920; reedição, Neuwied 1963.
A tradução brasileira da Teoria do Romance ficou a cargo de José Marcos Mariani de Macedo, sido publicada pela Editora 34, com a 1ª edição lançada no ano de 2000 e a 2ª em 2009. (Nota da tradução). (retornar ao texto)