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Primeira Edição: 2005. Capítulo 2 do seu livro "Fuga da História? A revolução russa e a revolução chinesa hoje", trad. José Colaço Barreiros, ed. Cooperativa Cultural Alentejana CRL, Beja, 176 pg., Agosto 2009, ISBN 978-972-99973-2-7. A obra pode ser encomendada a catarinaalmeida3@gmail.com (14€ + portes)
Fonte: Resistir.info
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Reflictamos no modo como o imperialismo americano conseguiu engolir a Nicarágua. Submeteu-a ao bloqueio económico e militar, ao controlo e à conspiração por parte dos seus serviços secretos, à colocação de minas nos portos, a uma guerra não declarada, mas sangrenta, suja e contrária ao direito internacional. Perante tudo isto, o governo sandinista viu-se obrigado a tomar medidas limitadas de defesa contra a agressão externa e a reacção interna. E logo a administração EUA se arma em defensora dos direitos democráticos espezinhados pelo "totalitarismo" e desencadeia a sua potência de fogo multi-mediático contra o governo sandinista, no âmbito de uma campanha que, se viu em primeiro plano a hierarquia católica, não deixou de arrastar algumas boas almas da "esquerda". A liberdade de manobra de Ortega perante a agressão foi sendo progressivamente reduzida e anulada. Enquanto o estrangulamento económico e a cruzada ideológica corroíam a base social de consenso do governo sandinista, as pressões militares e o terrorismo (alimentado por Washington) dos contras enfraqueciam a vontade e a capacidade de resistência. O resultado: eleições em que o imperialismo pôde fazer valer até ao fundo o seu super-poder financeiro e multi-mediático; já dessangrado e exausto, mais que nunca de faca apontada à garganta, o povo nicaraguense decidiu "livremente" ceder aos seus agressores. Não é diferente a táctica posta em acção contra Cuba. Bem, convém agora levantar uma questão: o ruir (pelo menos momentâneo) do regime sandinista é o resultado de uma "implosão"? Pode ser assimilado a "implosão" ou "colapso" o derrube, que desde há decénios o imperialismo americano persegue, de Fidel Castro e do socialismo cubano?
Neste caso, é imediatamente evidente o carácter mistificador de categorias que pretendem configurar como um processo meramente espontâneo e totalmente interno uma derrocada ou uma crise que não podem ser desligados da formidável pressão exercida a todos os níveis pelo imperialismo. Contudo, a categoria de "implosão" já não resulta persuasiva se, em vez da Nicarágua e Cuba, for aplicada à parábola do "campo socialista" no seu conjunto. Já em 1947, no momento em que formula a política da "contenção", o seu teórico, George F. Kennan explicita que é preciso influenciar "os desenvolvimentos internos da Rússia e do movimento comunista internacional", e não só por meio da "actividade de informação" dos serviços secretos, que no entanto — sublinha o autorizado conselheiro da embaixada americana em Moscovo e da administração EUA — não deve ser descurada. Em termos mais gerais e mais ambiciosos, trata-se de "aumentar enormemente as tensões (strains) sob as quais terá de actuar a política soviética", de modo a "promover tendências que deverão no fim encontrar a sua saída ou na ruptura ou no amolecimento do poder soviético". A que normalmente, com um singular eufemismo, é chamada "implosão" aqui é definida com precisão uma "ruptura" (break-up) que é tão pouco espontânea que pode ser prevista, programada e activamente promovida com mais de quarenta anos de avanço. No plano internacional, as relações de força económicas, políticas e militares são tais — prossegue ainda Kennan — que o Ocidente pode exercer algo parecido com um "poder de vida e de morte sobre o movimento comunista" e sobre a União Soviética.(1)
O ruir do "campo socialista" portanto terá de ser colocado dentro de uma impiedosa prova de força. É a chamada guerra-fria. Esta investe todo o planeta e prolonga-se por decénios. Nos inícios dos anos 50, as suas modalidades são assim explicitadas pelo general americano James Doolittle: "Não há regras nesse jogo. Já não são válidas as normas de comportamento humano aceitáveis até agora... Devemos... aprender a subverter, sabotar e destruir os nossos inimigos com métodos mais inteligentes, mais sofisticados e mais eficazes do que os por eles usados contra nós".(2)
A estas mesmas conclusões chega Eisenhower, o qual não foi por acaso que passou do cargo de supremo comandante militar na Europa para o de presidente dos EUA. Estamos em presença de uma prova de força que não só é conduzida, de um lado e do outro, sem exclusão de golpes (espionagem, conspiração, golpes de Estado, etc), mas que em diversas ocasiões se transforma, em várias áreas do globo, numa verdadeira guerra. É o que acontece por exemplo, na Coreia. Em Janeiro de 1952, para desbloquear a situação de empate nas operações militares, Truman acaricia uma ideia radical que chega a transcrever numa nota do seu diário: poder-se-ia fazer um ultimato à URSS e à China Popular, esclarecendo antes que a falta de obediência "significa que Moscovo, São Petersburgo, Mukden, Vladivostok, Pequim, Xangai, Port Arthur, Dairen, Odessa, Estalinegrado e todas as instalações militares ou industriais na China e na União Soviética seriam eliminadas" (eliminated).(3) Não se trata apenas de uma reflexão privada: durante a guerra da Coreia, em várias ocasiões a arma atómica foi brandida contra a República Popular da China; e a ameaça resulta tanto mais crível devido à lembrança, ainda viva e terrível, de Hiroshima e Nagasaki.
Não há dúvida de que com a dissolução, ou melhor, com o break-up, da URSS em 1991 se concluiu a guerra-fria. Mas quando começou? Já está claramente em curso enquanto ainda se mantém aceso o segundo conflito mundial. Hiroshima e Nagasaki são destruídas quando é já claro que o Japão está disposto a render-se; mais do que um país já derrotado, o recurso à bomba atómica tem em mira a URSS: é esta a conclusão a que chegam autorizados historiadores americanos, na base de uma documentação indesmentível. A nova arma terrível não pode ser experimentada com efeitos demonstrativos numa zona deserta, mas tem de ser já lançada sobre duas cidades, de modo que os soviéticos compreendam imediatamente e até ao fundo a realidade das relações de força e a determinação estado-unidense de não recuar perante nada. E com efeito, Churchill já se declara pronto, em caso de necessidade, a "eliminar todos os centros industriais russos", enquanto o secretário de Estado dos EUA Stimson acalenta por algum tempo a ideia de "obrigar a União Soviética a abandonar ou a modificar radicalmente todo o seu sistema de governo".
Verifica-se assim um paradoxo. A opor-se ou a mostrar-se relutantes ao projecto de bombardeamento são os chefes militares, sobretudo da marinha. "Bárbara" foi considerada a nova arma: ela atinge indiscriminadamente "mulheres e crianças", não é melhor que as "armas bacteriológicas" e que os "gases venenosos" proibidos pela Convenção de Genebra. Ainda por cima, o Japão está "já derrotado e pronto a render-se". Estes chefes militares ignoram que a arma atómica na realidade tem em mira a União Soviética, o único país agora em condições de contrariar o programa, explicitamente enunciado por Truman numa reunião de gabinete de 7 de Setembro de 1945, de fazer dos EUA o "gendarme e xerife do mundo". A notícia da horrível destruição de Hiroshima e Nagasaki provoca inquietação e inclusivamente indignação na opinião pública americana, e eis que em 1947 Stimson intervém totalitariamente com um artigo sensacionalista por todos os meios de informação para difundir a lenda e a mentira segundo a qual aquelas duas matanças indiscriminadas tinham sido necessárias para salvar milhões de vidas humanas. Na realidade — sublinha ainda o historiador americano aqui citado — era preciso bloquear de todas as maneiras a onda de críticas com o fim de habituar a opinião pública à ideia da absoluta normalidade do recurso à arma atómica (e de novo era avisada a URSS).(4)
No Japão verifica-se outro facto decisivo para compreender a guerra-fria. Na sua agressão contra a China o exército imperial tinha-se manchado de crimes horríveis, utilizando não poucos prisioneiros como cobaias para a vivissecção e outras atrozes experiências e empregando contra a população civil armas bacteriológicas. Aos responsáveis e aos membros da famigerada unidade 731, a estes criminosos de guerra, os EUA garantem a impunidade em troca da entrega de todos os dados recolhidos. No âmbito da guerra-fria que agora se delineia, juntamente com as armas atómicas apontam-se também as bacteriológicas.
Vemos assim os inícios da guerra-fria entrelaçarem-se com a fase final da segunda guerra mundial. Na realidade, para ver como se entrelaçam não é preciso esperar por 1945. É esclarecedora a declaração feita por Truman logo a seguir à agressão nazi da URSS. Neste momento os Estados Unidos formalmente ainda não entraram em guerra, mas já estão de facto alinhados ao lado da Grã-Bretanha. Compreende-se portanto que o futuro presidente dos EUA se preocupe em explicitar que não quer "em caso algum ver Hitler vencedor". Contudo, por outro lado não hesita em declarar: "Se virmos vencer a Alemanha, devemos ajudar a Rússia, e se virmos vencer a Rússia devemos ajudar a Alemanha. Deixemos assim que se matem o mais possível". Isto é, apesar da aliança de facto do seu país com a Grã--Bretanha e portanto, indirectamente, com a URSS, Truman exprime todo o seu interesse ou entusiasmo pelo dessangramento do país nascido da revolução de Outubro. Nesse mesmo período de tempo, exprime conceitos semelhantes aos de Truman o ministro britânico Lorde Brabazon: é verdade que será obrigado a demitir-se, mas conta o facto de importantes círculos da Grã-Bretanha continuarem a encarar como um inimigo mortal a União Soviética com a qual contudo são formalmente aliados.(5)
Tornando-se vice-presidente em 1944 e presidente no ano seguinte, Truman empenha-se em realizar o programa enunciado no verão de 1941. Deve-se acrescentar que o objectivo do enfraquecimento (ou do dessangramento) da URSS também não parece ter sido estranho a Franklin Delano Roosevelt (o qual, não por acaso, durante um ano teve como seu vice Truman). Quando se torna claro que seria a União Soviética e já não a Grã-Bretanha a emergir no fim da guerra "como o principal opositor a uma "pax americana" global", Roosevelt — observa um historiador alemão — alterou de modo radical a sua estratégia militar: "A consequência de deixar que a União Soviética fizesse o esforço maior para a vitória sobre a Alemanha teve expressão na decisão de predispor no seu conjunto só 89 divisões em vez das 215 previstas pelo Victory Programm deslocando o baricentro do armamento americano para a marinha e a aviação com a finalidade de construir uma potência naval e aérea superior".(6)
Talvez se tenha de começar ainda mais atrás, e é significativo que André Fontaine, na sua História da guerra-fria, tenha partido da revolução de Outubro, que na realidade foi combatida com uma guerra-fria e quente. Se examinarmos o período que vai de Outubro de 1917 a 1953 (ano da morte de Estaline), vemos a Alemanha e as potências anglo-saxónicas alternar-se ou empenhar-se numa espécie de estafeta. À agressão da Alemanha de Guilherme II (até à paz de Brest-Litovsk) seguem-se as desencadeadas primeiro pela Entente e depois pela Alemanha hitleriana, e por fim a verdadeira "guerra-fria" que já tinha porém começado a manifestar-se decénios antes, entrelaçando-se mesmo com os dois conflitos mundiais.
Em relação à URSS e ao "campo socialista" foi posta em movimento a mesma mistura de pressões económicas, ideológicas e militares com que a administração EUA conseguiu provocar a queda do governo sandinista e espera provocar a "ruptura" do sistema político-social cubano.
Este modo novo e mais articulado e sofisticado de fazer a guerra foi sendo pouco a pouco elaborado precisamente no decorrer da longa prova de força empreendida contra a sociedade nascida da revolução de Outubro. Enviar soldados contra a Rússia soviética — sublinha Herbert Hoover, elevado expoente da administração americana e futuro presidente dos Estados Unidos — significa expô-los "à infecção de ideias bolcheviques". É melhor avançar com o bloqueio económico em relação ao inimigo e com a ameaça do bloqueio económico em relação aos povos inclinados a deixar-se seduzir por Moscovo: o perigo da morte por inanição fá-los-á recuperar o bom senso. O primeiro-ministro francês, Georges Clemenceau, é de imediato fascinado pela proposta de Hoover: reconhece que se trata de "uma arma realmente eficaz" e que apresenta "maiores possibilidades de sucesso que a intervenção militar". Indignado fica Gramsci com a chantagem formulada pelos imperialistas: "Ou a bolsa ou a vida! Ou a ordem burguesa ou a fome"!(7)
Outra arma tem sido preparada a partir sobretudo da guerra fria propriamente dita. Já em Novembro de 1945, o embaixador americano em Moscovo, William A. Harriman, recomenda a abertura de uma frente ideológica e propagandística contra a URSS: pode-se recorrer à difusão de jornais e revistas, claro, mas "a palavra impressa" é "fundamentalmente insatisfatória"; melhor é o recurso a potentes estações de rádio capazes de transmitir em todas as diversas línguas da União Soviética. Destas estações de rádio é repetidamente recomendada e celebrada a potência(8). Há uma nova arma à disposição no gigantesco choque que se vai iniciando. A rádio que servira ao regime nazi para consolidar a sua base social de consenso é agora chamada a desagregar a base social de consenso do regime soviético.
Juntamente com estas novas armas continuam a actuar de modo mediato ou imediato as armas verdadeiras. O período que vai de 1945-46 a 1991 tem sido autorizadamente definido como "uma terceira guerra mundial, embora de carácter assaz particular"(9). Com efeito, é impróprio definir "fria" uma guerra que começou com Hiroshima e Nagasaki. Trata-se de uma guerra que não só se torna periodicamente quente nas mais diversas áreas do globo, mas que em certos momentos se arrisca a ser tão quente que derrete ou quase o planeta. Até no que respeita ao confronto directo entre os dois principais antagonistas, se a frente mais imediatamente evidente é a da batalha político--diplomática, económica e propagandística, nem por isso se deve perder de vista o terrível braço de ferro militar que, mesmo sem chegar até ao choque directo e total, decerto não é falto de consequências. Trata-se de uma prova de força que actua em profundidade sobre a economia e a política do país inimigo, sobre o conjunto da sua configuração, é uma prova de força que tem em mira e até consegue, como teremos ocasião de ver, corroer as alianças, o "campo" do inimigo.
Com as coisas neste ponto, a categoria de "implosão" revela-se como um mito apologético do capitalismo e do imperialismo: é celebrada a sua indiscutível superioridade em relação a um sistema social que, tanto em Moscovo como nas Caraíbas e na América Latina, se desmorona ou cai em crise exclusivamente devido à sua interna insustentabilidade, pela sua intrínseca inferioridade. A categoria de implosão ou colapso não faz senão coroar os vencedores. É verdade, ela encontrou largo acolhimento também à esquerda, entre os comunistas, também e sobretudo entre os que se comportam como ultracomunistas e ultra-revolucionários; mas isto é só a prova da sua subalternidade ideológica e política.
Denunciar a categoria de "implosão" não significa renunciar a um balanço impiedoso da história do "socialismo real" e do movimento comunista internacional. Pelo contrário, só se torna possível um balanço a partir da tomada de consciência da realidade da "terceira guerra mundial". Por outro lado, para que este balanço impiedoso não seja de nenhum modo confundido com a capitulação, é necessário conduzir até ao fundo a crítica do comportamento sob o signo da subalternidade e do primitivismo religioso que no movimento comunista ganhou pé a partir da derrota.
Notas de rodapé:
(1) Hofstadter e Hofstadter, 1982, vol. III, ppg. 418-9 (retornar ao texto)
(2) Ambrose, 1991, p. 377 (retornar ao texto)
(3) Sherry, 1995, p. 182 (retornar ao texto)
(4) Alperovitz, 1995, pp. 326-330, 260-1 e 460; quanto ao programa de Truman, cf. Thomas, 1988, p. 187. (retornar ao texto)
(5) Thomas, 1988, p. 187 (retornar ao texto)
(6) Hillgruber, 1991, pp. 350 e 352 nota (retornar ao texto)
(7) Cf. Losurdo, 1997, pp. 75-80 (retornar ao texto)
(8) Thomas, 1988, p. 223 (retornar ao texto)
(9) Hobsbawm, 1995, p. 268 (retornar ao texto)
Inclusão | 04/03/2019 |