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Este pequeno volume teórico permaneceu por muito tempo em preparação, e mesmo agora não posso considerá-lo terminado - uma boa parte dele consiste de anotações sem explicações. Por que decidi publicá-lo, apesar disto? Admitirei prontamente que não foi por amor à teoria.
As tentativas de investigar problemas metodológicos da psicologia sempre evocam a constante necessidade de pontos de referência teóricos sem os quais a investigação fica fadada a permanecer limitada.
Já faz quase cem anos que a psicologia mundial vem se desenvolvendo sob condições de crise em sua metodologia. Tendo se dividido, por essa época, em ciência humanística e natural, descritiva e explanatória, o sistema de conhecimento psicológico apresenta sempre novas brechas dentro das quais parece que o verdadeiro sujeito da psicologia desaparece. O sujeito é, também, às vezes reduzido sob o pretexto da necessidade de desenvolver pesquisa interdisciplinar. Às vezes, há até vozes que se ouvem abertamente e que convidam estudiosos de outras áreas para a psicologia: "Venham e dêem-nos regras." O paradoxo consiste em que, apesar das dificuldades teóricas, no mundo todo há agora um ímpeto excepcional em direção ao desenvolvimento da pesquisa em psicologia sob a pressão direta das exigências da própria vida. Como resultado, tornou-se ainda mais aguda a contradição entre a quantidade de material factual que a psicologia acumulou escrupulosamente em laboratórios excelentemente equipados, e a condição lamentável de suas bases teóricas e metodológicas. A negligência e o ceticismo com relação à teoria geral da psique, e a difusão do factologismo e do cientificismo característicos da psicologia americana contemporânea (e não só dela) tornaram-se uma barreira que obstrui o caminho da investigação dos principais problemas psicológicos.
Não é difícil enxergar a conexão entre este desenvolvimento e a desilusão, resultante das alegações infundadas das principais tendências ocidentais, americanas e européias, no sentido de que efetuariam uma revolução teórica há muito esperada na psicologia. Quando surgiu o behaviorismo, falavam dele como de um fósforo que iria acender e fazer explodir um barril de dinamite; depois disso, pareceu que, não o behaviorismo, mas a psicologia da Gestalt havia descoberto um princípio geral capaz de conduzir a ciência psicológica para fora do beco sem saída para o qual havia sido levada pela análise rudimentar, "atomística"; finalmente, muitos ficaram com a cabeça virada com o freudismo, como se no subconsciente ele tivesse encontrado um fulcro que possibilitaria levantar a psicologia e dar-lhe realmente vida. Outras direções psicológicas burguesas foram reconhecidamente menos pretensiosas, mas o mesmo destino as esperava: todas se encontraram na mesma sopa eclética geral que está agora sendo cozida pelos psicólogos - cada um de acordo com sua própria receita - os quais têm a reputação de possuírem "mente aberta".
O desenvolvimento da ciência psicológica soviética, por outro lado, assumiu um caminho inteiramente diferente.
Os cientistas soviéticos contrapuseram ao pluralismo metodológico uma metodologia marxista-leninista que permitia a penetração na natureza real da psique, na consciência do homem. Começou uma busca persistente de soluções para os principais problemas teóricos da psicologia com base no Marxismo. Simultaneamente, continuou o trabalho sobre a interpretação crítica baseada em realizações positivas de psicólogos estrangeiros, e foram iniciadas investigações específicas de uma ampla série de problemas. Foram elaboradas novas abordagens, assim como um novo aparato conceitual que permitiu trazer a psicologia soviética para um nível científico muito rapidamente, um nível incomparavelmente superior ao daquela psicologia que recebera reconhecimento oficial na Rússia pré-revolucionária. Apareceram novos nomes na psicologia: Blonskii e Kornilova, depois Vigotski, Uznadze, Rubinstein, e outros.
A questão principal foi que este se tornou o caminho de uma batalha contínua e decidida - uma batalha para o domínio criativo do Marxismo-Leninismo, uma batalha contra os conceitos que, sob uma ou outra aparência, revelavam-se biologizantes, idealistas e mecanicistas. À medida que desenvolvíamos uma resistência a esses conceitos, buscávamos, também, evitar o isolamento científico, assim como sermos identificados como uma escola de psicologia que passava a existir lado a lado das outras escolas. Todos compreendíamos que a psicologia marxista não envolve, apenas, uma escola ou direção diferente, mas um novo estágio histórico que apresenta, em si, o início de uma psicologia autenticamente científica e consistentemente materialista. Também compreendíamos algo mais: que no mundo moderno a psicologia preenche uma função ideológica e serve interesses de classe; é impossível não reconhecer isso.
As questões metodológicas e ideológicas permaneceram no centro da atenção da psicologia soviética, particularmente no período inicial de seu desenvolvimento, que foi marcado pela publicação de livros de importância fundamental em suas idéias, como "Pensamento e Linguagem", de L.S.Vigotski e "Fundamentos da psicologia Geral", de S.L.Rubinstein. É necessário, entretanto, reconhecer que, nos anos seguintes, a atenção para com problemas metodológicos diminuiu um pouco. Isto, naturalmente, não significa, de forma alguma, que as questões teóricas se tornaram de menos importância, ou que menos foi escrito a seu respeito. Tenho algo diferente em mente: a reconhecida negligência na metodologia de muitas investigações psicológicas concretas, incluindo aquelas em psicologia aplicada.
Este fenômeno pode ser explicado por uma série de circunstâncias. Uma delas foi que gradualmente surgiu uma quebra nas conexões internas entre a resolução dos problemas filosóficos da psicologia e a metodologia real daquelas investigações em andamento. A respeito das questões filosóficas da psicologia (e sobre a crítica filosófica das tendências estrangeiras, não-marxistas), não poucos livros volumosos foram escritos, porém as questões pertinentes aos meios concretos de investigar problemas psicológicos amplos mal foram tocadas. Eles quase deixaram uma impressão de dicotomia: por um lado, há a esfera das problemáticas filosóficas, psicológicas e, por outro, a esfera das questões psicológicas e metodológicas específicas que surgem no curso da investigação concreta. Naturalmente, é indispensável a resolução de problemas estritamente filosóficos em uma área ou outra do conhecimento científico. Aqui, entretanto, estamos interessados noutra questão: com a resolução, com base filosófica marxista, dos problemas especiais da metodologia da psicologia enquanto ciência concreta. Isto requer a penetração na "economia interna", por assim dizer, do pensamento teórico.
Explicarei minha idéia usando um exemplo tirado de um dos problemas mais difíceis que vêm confrontando, há muito tempo, a investigação psicológica, ou seja, o problema da conexão entre os processos psicológicos e os processos fisiológicos no cérebro. Praticamente não é necessário, hoje, convencer os psicólogos de que a psique é uma função do cérebro e de que os fenômenos e processos psíquicos devem ser estudados juntamente com os processos fisiológicos. Porém, o que significa estudá-los conjuntamente? Para a investigação psicológica concreta, esta questão é extremamente complexa. O fato é que nenhuma correlação direta entre os processos cerebrais psíquicos e fisiológicos resolveu o problema. As alternativas teóricas que surgem com esse tipo de abordagem direta são bem conhecidas: ou é uma hipótese de paralelismo, com o resultado fatal de levar a uma compreensão da psique como um epifenômeno; ou é a defesa do determinismo fisiológico ingênuo, com uma conseqüente redução da psicologia à fisiologia; ou, finalmente, trata-se de uma hipótese dualista de interação psico-fisiológica, a qual faz com que a psique não-material afete os processos materiais que ocorrem no cérebro. Para o pensamento metafísico, não há, simplesmente, qualquer outra solução; apenas muda a terminologia que diz respeito a todas essas alternativas.
Além desse fato, o problema psico-fisiológico tem um significado inteiramente concreto e muito real em seu mais alto grau para a psicologia, porque o psicólogo precisa, constantemente, ter em mente o trabalho dos mecanismos morfofisiológicos. Ele não deve, por exemplo, fazer julgamentos sobre os processos de percepção sem considerar os dados da morfologia e da fisiologia. A forma de percepção como realidade psicológica é, no entanto, algo completamente diferente dos processos cerebrais e de suas constelações das quais parece ser uma função. Parece que temos, aqui, uma questão com várias formas de movimento, e isto necessariamente apresenta um problema ulterior com relação àquelas transições subjacentes que conectam estas formas de movimento. Embora este problema pareça ser acima de tudo um problema metodológico, sua resolução requer uma análise penetrante, como já disse, nos resultados acumulados pelas investigações concretas nos níveis psicológico e fisiológico.
Por outro lado, na esfera das problemáticas psicológicas especiais, tem-se focalizado a atenção, cada vez mais, na resolução cuidadosa de problemas isolados, no aumento do arsenal técnico do laboratório experimental, no refinamento do aparato estatístico, e no uso das linguagens formais. Sem isto, naturalmente, o progresso na psicologia seria, agora, simplesmente impossível. Porém, é evidente que algo ainda está faltando. É crucial que as questões específicas não tenham prioridade sobre as questões gerais, que os métodos de pesquisa não venham a obscurecer a metodologia.
O fato é que um psicólogo que trabalhe com pesquisa e esteja envolvido com o estudo de questões específicas inevitavelmente continua a se confrontar com os problemas metodológicos fundamentais da ciência psicológica. Estes aparecem diante dele, no entanto, sob uma forma obscura, de maneira que a solução das questões específicas parece não depender deles e requer, apenas, a proliferação e o refinamento dos dados empíricos. Uma ilusão de "desmitificação" da esfera dos resultados concretos de pesquisa, que aumenta, ainda mais, a impressão de uma ruptura nas conexões internas entre as bases teóricas marxistas fundamentais para a ciência psicológica e sua acumulação de fatos. Como resultado, forma-se um vácuo peculiar no sistema de conceitos psicológicos para o qual são atraídos, espontaneamente, conceitos gerados por enfoques essencialmente estranhos ao Marxismo.
A negligência teórica e metodológica aparece, também, às vezes, na tentativa de se resolverem certos problemas psicológicos puramente aplicados. Muito freqüentemente, aparece nas tentativas de se usarem métodos que não têm base científica de forma não-crítica, para fins pragmáticos. Ao se fazerem tentativas como essas, os pesquisadores freqüentemente especulam sobre a necessidade de aproximar mais a psicologia dos problemas reais que se manifestam pelo nível contemporâneo de desenvolvimento da sociedade e pela revolução técnico-científica. A expressão mais flagrante desse tipo de tentativa é a prática do uso impensado de testes psicológicos, geralmente importados dos Estados Unidos. Estou falando, aqui, sobre isso simplesmente porque o uso crescente de testes expõe um dos "mecanismos" que geram direções metodológicas vazias na psicologia.
Os testes, como sabemos, são questionários breves, cujo propósito é a revelação (e, às vezes, mensuração) de uma ou outra propriedade ou processo preliminarmente determinado de forma científica. Quando, por exemplo, tornou-se conhecida a reação do tornassol ao ácido, então apareceram os testes de "papel de tornassol" - uma mudança na cor servia como indicador simples da acidez ou da alcalinidade de um líquido que entrasse em contato com o papel; o estudo das propriedades específicas da mudança de cor levaram à formação das bem conhecidas tabelas Stilling, as quais, de acordo com as diferenças nos dados apresentados, possibilitam, com suficiente precisão, fazer julgamentos a respeito da presença ou ausência de uma anomalia da cor, ou de seu caráter. Testes desta natureza são amplamente utilizados nas mais variadas áreas de conhecimento e podem ser tidos como "bem fundados", no sentido de que são baseados em conceitos coerentes das interdependências que ligam os resultados dos testes com as propriedades que estão sendo testadas, as condições, ou os processos. Os testes não se emancipam da ciência e não substituem a pesquisa mais escrupulosa.
Aqueles testes que servem para disfarçar as dificuldades de adquirir conhecimento psicológico verdadeiramente científico têm uma natureza fundamentalmente diferente. Um exemplo típico de tais testes são os testes de desenvolvimento mental. São baseados no seguinte procedimento: primeiro, é negada a existência de qualquer tipo de dom intelectual; em seguida, é elaborada uma série de questões-problema, das quais são selecionadas aquelas que têm a maior capacidade de diferenciação e, a partir delas, uma "bateria de testes" é construída; finalmente, com base na análise estatística dos resultados de um grande número de tentativas, o número de problemas adequadamente resolvidos que estão incluídos nessa bateria é correlacionado com idade, raça ou classe social das pessoas que estiverem sendo testadas. Uma porcentagem fixa de soluções empiricamente determinada é usada como unidade, e um desvio dessa unidade é registrado como uma fração que expressa o "quociente de inteligência" de dado indivíduo ou grupo.
É óbvia a fragilidade na metodologia de tais testes. O único critério para os problemas dos testes é a validade do item, isto é, o grau de correlação entre os resultados dos problemas que estão sendo resolvidos e uma ou outra expressão indireta das propriedades psicológicas que estão sendo testadas. Isto trouxe à existência uma disciplina psicológica especial, a assim chamada testologia. Não é difícil ver que, por trás de tal transformação da metodologia numa disciplina independente, nada mais existe senão a substituição da investigação teórica pelo pragmatismo flagrante.
Estou querendo dizer aqui que devemos nos abster dos testes psicológicos? Não, não necessariamente. Dei um exemplo de um teste de inteligência há muito desacreditado a fim de enfatizar mais uma vez a necessidade de uma análise teórica séria até para decidir tais questões, que, à primeira vista, parecem ser estreitamente metódicas.
Dei atenção àquelas dificuldades que a psicologia científica vem experimentando, e não disse nada a respeito de suas realizações inquestionáveis e muito substanciais. Porém, é particularmente o reconhecimento dessas dificuldades que forma, por assim dizer, o conteúdo crítico deste livro. Estes não são, no entanto, os únicos fundamentos nos quais se baseiam as posições desenvolvidas aqui. Baseei minhas posições, em muitos casos, em resultados positivos de investigações psicológicas concretas, minhas próprias, assim como aquelas de outros cientistas. Constantemente, tive em mente os resultados dessas investigações, apesar de muito raramente, e como ilustrações passageiras, eles serem mencionados de forma direta; na maioria dos casos, são deixados bem fora dos limites deste trabalho. Isto se explica pela necessidade de se evitar longas digressões, com o intuito de revelar as concepções gerais do autor de forma mais gráfica e óbvia.
Por esta razão, este livro não pretende ser uma revisão da literatura científica que cobre as questões mencionadas. Muitos trabalhos importantes que o leitor conhece não são citados aqui, embora haja alusão a eles. Uma vez que esta forma de trabalhar pode passar uma impressão errada, devo enfatizar que, mesmo quando esses trabalhos de psicologia não são mencionados, isto não se dá, de forma alguma, porque, na minha opinião, não merecem menção. O mesmo se dá para as fontes filosófico-históricas: sem dificuldade, o leitor detectará julgamentos teóricos que são defendidos implicitamente através da análise de algumas categorias não mencionadas da filosofia clássica pré-marxista. São todas perdas, que só poderiam ser reparadas dentro de um livro novo e ampliado, escrito de forma completamente diferente. Infelizmente, no momento, não tenho oportunidade de fazer isso.
Quase todo o livro teórico pode ser lido de formas diferentes, às vezes de uma forma completamente diferente daquela que se mostra para o autor. Por este motivo, quero aproveitar a oportunidade para dizer o que, de meu ponto de vista, é mais importante nas páginas deste livro. Penso que a coisa mais importante neste livro é a tentativa de compreender psicologicamente as categorias que são mais importantes para a construção de um sistema psicológico inquestionável enquanto ciência concreta da origem, função e estrutura do reflexo psicológico da realidade que a vida do indivíduo media. São elas: a categoria da atividade subjetiva, a categoria da consciência do homem e a categoria da personalidade. A primeira delas não é apenas primária, mas também a mais importante. Na psicologia soviética, esta posição é expressa consistentemente, porém é demonstrada de formas essencialmente diferentes. O ponto central, que forma como se fosse um divisor de águas entre as várias compreensões da defesa da categoria da atividade consiste no seguinte: a atividade subjetiva deveria ser considerada apenas como uma condição do reflexo psicológico e sua expressão, ou deveria ser considerada como um processo que contém em si aquelas contradições, dicotomias e transformações internas e motivadoras as quais trazem à luz a psique, que é o momento indispensável de seu próprio movimento de atividade, seu desenvolvimento? Se a primeira posição evocou uma investigação da atividade em sua forma básica - na forma da prática - além dos limites da psicologia, já a segunda posição propõe que a atividade, independentemente de sua forma, entra na ciência psicológica subjetiva, embora seja compreendida de forma completamente diferente daquela com que é compreendida quando entra no enfoque de outras ciências. Em outras palavras, a análise psicológica da atividade consiste, do ponto de vista da segunda posição, não em separar dela seus elementos psicológicos internos para estudo isolado posterior, mas em trazer para a psicologia aquelas unidades de análise que comportam em si o reflexo psicológico em sua inseparabilidade dos momentos que o causam e o mediam na atividade humana. Esta posição que estou defendendo requer, no entanto, uma reconstrução de todo o aparato conceitual da psicologia, o que, neste livro, é apenas anotado e, em grande parte, é um assunto para o futuro. Ainda mais difícil na psicologia é a categoria da consciência. O estudo completo da consciência como uma forma superior, especificamente humana da psique, que surge no processo da interação social e que pressupõe o funcionamento da linguagem, constitui o requisito mais importante para a psicologia do homem. Assim, o problema da investigação psicológica reside em não se limitar ao estudo de fenômenos e processos na superfície da consciência, mas em penetrar em sua estrutura interna. Para isso, a consciência deve ser considerada, não como um campo contemplado pelo sujeito no qual suas imagens e conceitos são projetados, mas como um movimento interno específico gerado pelo movimento da atividade humana. A dificuldade aqui é confrontada até mesmo no isolamento da categoria da consciência enquanto categoria psicológica, ou seja, na compreensão daquelas transições reais que interconectam as psiques dos indivíduos específicos e as formas de consciência social. Entretanto, isto não pode ser feito sem uma análise preliminar destes "formadores" da consciência individual, cujo movimento caracteriza sua estrutura interna. Um capítulo especial deste livro é dedicado ao relato de um experimento desse tipo de análise, cuja base é a análise do movimento da atividade. Não cabe a mim, naturalmente, julgar se esse experimento foi ou não bem sucedido. Quero apenas chamar a atenção do leitor para o fato de que o "segredo psicológico da consciência" continua sendo um segredo para qualquer método, com exceção do método revelado por Marx, que possibilita demonstrar a natureza das propriedades supra-sensitivas dos objetos sociais, dentre os quais está homem, enquanto objeto de consciência. A abordagem que desenvolvi, a qual sustenta que a personalidade é um assunto de estudo estritamente psicológico, provavelmente evocará grande reação. Penso assim porque meu ponto de vista não está definitivamente em acordo com aqueles dos conceitos metafísicos, culturais e antropológicos a respeito da personalidade (baseados na teoria de sua determinação dual, da hereditariedade biológica e do ambiente social) que agora inundam a psicologia mundial. Esta incompatibilidade torna-se particularmente evidente na revisão da questão da natureza dos assim chamados mecanismos internos da personalidade e da questão da conexão entre a personalidade do homem e suas características somáticas.
É muito difundida a visão das necessidades e apetites do homem segundo a qual as próprias necessidades e apetites determinam a atividade da personalidade, suas tendências; em correspondência a ela, a principal tarefa da psicologia é o estudo de quais necessidades são naturais ao homem e quais experiências (apetites, vontades, sentimentos) elas evocam. O segundo ponto de vista, distinto do primeiro, envolve a compreensão de como o desenvolvimento da atividade humana em si, de seus motivos e meios, transforma as necessidades humanas e faz surgirem novas necessidades, de tal maneira que a hierarquia de necessidades muda, na medida em que a satisfação de algumas delas é reduzida ao estatuto apenas de condições necessárias para a atividade do homem e para sua existência enquanto personalidade. Deve-se dizer que os defensores do primeiro ponto de vista - antropológico, ou dizendo melhor, naturalístico - apresentam muitos argumentos, entre eles aqueles que podem ser chamados metaforicamente de argumentos "de dentro das vísceras". Certamente, encher o estômago com comida é uma condição indispensável para qualquer atividade subjetiva, mas o problema psicológico é composto de algo diferente: O que acontecerá com aquela atividade? Como seu desenvolvimento vai se dar? E, juntamente com isso, há o problema da transformação das próprias necessidades.
Se isolei aqui esta questão, é porque nesta questão se confrontam visões opostas na perspectiva do estudo da personalidade. Uma delas leva à construção de uma psicologia da personalidade baseada na predominância, no sentido amplo da palavra, das necessidades (na linguagem dos behavioristas, "reforço"); a outra, à estrutura de uma psicologia da predominância da atividade na qual o homem confirma sua personalidade humana.
A segunda questão - a questão da personalidade do homem e das suas características físicas - torna-se aguda quando relacionada com a defesa de que uma teoria psicológica da personalidade não pode ser construída prioritariamente com base na diferença na constituição do homem. Na teoria da personalidade, como é possível prescindir das referências usuais à constituição de Sheldon, aos fatores de Eising e, finalmente, aos tipos de Pavlov da atividade nervosa superior? Esta questão também surge a partir dos desvios metodológicos muitas vezes decorrentes da ambigüidade do conceito de "personalidade". Esta ambigüidade, no entanto, desaparece quando adotamos a posição marxista bem conhecida de que a personalidade é uma qualidade particular que um indivíduo natural comanda dentro de um sistema de relações sociais. O problema, então, muda inevitavelmente: as propriedades antropológicas do indivíduo aparecem, não como determinantes da personalidade, ou como parte de sua estrutura, mas como condições da formação da personalidade geneticamente atribuídas e, além disso, como aquilo que determina, não seus traços psicológicos, mas apenas a forma e o meio de sua expressão. Por exemplo, a agressividade como um traço da personalidade irá, naturalmente, se manifestar numa pessoa colérica de forma diferente daquela manifesta em uma pessoa fleumática, porém, explicar a agressividade como uma propriedade do temperamento é tão absurdo cientificamente, quanto procurar uma explicação das guerras no instinto para a pugnacidade natural às pessoas. Assim sendo, o problema do temperamento, as propriedades do sistema nervoso etc. não são "banidos" da teoria da personalidade, mas aparecem de um modo diferente e não convencional, como uma questão de uso, por assim dizer, pela personalidade de traços e capacidades individuais inatas. E este é um problema muito importante para a caracterologia concreta, a qual, como um número de outros problemas, não foi considerada neste livro.
As lacunas que ocorreram neste prefácio (e poderiam ter sido mais numerosas) devem-se ao fato de que o autor viu o seu problema não tanto como uma confirmação de uma ou outra posição psicológica concreta, mas como a busca de um método para extrai-las à medida que resultam do estudo histórico-materialístico da natureza do homem, de sua atividade, consciência e personalidade.
Em conclusão, devo dizer algumas palavras sobre a composição do livro. Os pensamentos nele contidos já foram expressos em publicações anteriores do autor, sendo fornecida uma lista delas nas notas dos capítulos. Aqui são apresentadas de forma sistemática pela primeira vez.
Em sua composição, o livro é dividido em três partes. A primeira parte contém os Capítulos 1 e 2, que analisam o conceito de reflexo e a contribuição total do Marxismo para a psicologia científica. Estes capítulos servem de introdução para a parte central do livro na qual são considerados os problemas da atividade, da consciência e da personalidade. A parte final do livro tem uma constituição completamente diferente: não parece ser uma continuação dos capítulos anteriores, porém é um dos primeiros trabalhos do autor a respeito da psicologia da consciência. Desde a publicação da primeira edição, que agora tornou-se rara, passaram-se mais de vinte anos, e muito do que está ali contido tornou-se ultrapassado. No entanto, contém certos aspectos psicológico-pedagógicos do problema da consciência que não são absolutamente mencionados nas outras partes do livro, embora esses aspectos continuem estando, mesmo agora, perto do coração do autor. Este fato inspirou sua inclusão no livro.
Inclusão | 17/11/2003 |
Última atualização | 18/11/2015 |