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O principal problema consiste em desvendar quais são os verdadeiros "formadores" da personalidade, esta unidade superior do homem, mutável como sua própria vida, porém que preserva em si uma estabilidade, sua auto-identidade. Ao final das contas, independentemente da experiência, o ser humano acumula os acontecimentos que modificam sua situação de vida, e, finalmente, independentemente das modificações físicas pela qual passa enquanto personalidade, ele permanece o mesmo aos olhos de outras pessoas, assim como aos seus próprios olhos. Ele é identificado, não somente por seu nome; até a lei o identifica, ao menos dentro dos limites da responsabilidade por seus atos.
Assim, existe uma óbvia contradição entre a mutabilidade aparente, física, psicofisiológica do ser humano e sua estabilidade enquanto personalidade. Este fato trouxe à tona o problema do "eu" como um problema especial da psicologia da personalidade. Isto surge porque os traços que são incluídos na caracterização psicológica da personalidade expressaram claramente o mutável e "intermitente" no ser humano, isto é, aquilo que se contrasta exatamente com a estabilidade e a continuidade de seu "eu". O que forma esta estabilidade e continuidade? O personalismo, em todas as suas variantes, responde esta questão, ao postular a existência de algum tipo de princípio especial, que formaria o núcleo da personalidade. Este, então, é encoberto pelas inúmeras aquisições no decorrer da vida, que são capazes de mudar, porém não de afetar essencialmente este núcleo.
Em outra abordagem da personalidade, a base é a categoria da atividade humana objetiva, a análise de sua estrutura integral, sua mediação e as formas de reflexo psíquico que gera.
Esse tipo de abordagem permite, desde o início, uma resolução preliminar da questão a respeito do que forma uma base estável para a personalidade; exatamente o que entra e o que não entra na caracterização do ser humano, especialmente enquanto personalidade, também depende disso. Essa decisão é feita com base na suposição de que a base real para a personalidade humana é o agregado de suas relações com o mundo, que são sociais por natureza, porém relações que são realizadas, e são realizadas através de sua atividade, ou, mais precisamente, pelo agregado de suas atividades multifacetadas.
Temos, aqui, em mente especialmente as atividades do sujeito que são "unidades" originais da análise psicológica da personalidade, e não ações, não operações, não funções psicofisiológicas ou blocos dessas funções; estas últimas caracterizam a atividade, e não a personalidade diretamente. À primeira vista, esta posição parece contraditória em relação às representações empíricas da personalidade e, além disso, parece empobrecê-las. No entanto, apenas desvela o caminho para a compreensão da personalidade em sua real concretude psicológica.
Acima de tudo, esta abordagem elimina a principal dificuldade: a determinação de que processos e traços do ser humano são aqueles que caracterizam sua personalidade psicologicamente, e que são neutros nesse sentido. O fato é que, tomados em si mesmos, dentro de uma abstração do sistema de atividade, geralmente eles não revelam nada sobre suas relações para com a personalidade. Por exemplo, as operações de escrita ou a habilidade em relação à caligrafia dificilmente poderiam ser consideradas, dentro do bom senso, como "personalidade". Mas então nos lembramos do quadro do herói Akaki Akikievich Bashmachkin, do conto de Gogol, "O Capote". Ele estava trabalhando em algum departamento como funcionário para copiar papéis oficiais, e via, nesta operação, todo o mundo, diverso e fascinante. Ao fim do trabalho, Akaki ia imediatamente para casa. Assim que comia, pegava um tinteiro e começava a copiar papéis que tinha trazido para casa, e, se houvesse notas para copiar, fazia cópias para si mesmo, por recreação, para sua satisfação pessoal. "Tendo escrito até satisfazer seu coração, Gogol nos relata, ia dormir sorrindo, antecipando o próximo dia: o que quer que seja que Deus enviasse para ser copiado amanhã".
Como poderia ser, o que acontecia para que a cópia de papéis oficiais ocupasse um lugar central na sua personalidade, tornando-se o sentido de sua vida? Não conhecemos as circunstâncias concretas, mas, de uma forma ou de outra, essas circunstâncias levaram a isso: ocorreu um deslocamento de um dos principais motivos para o que são usualmente operações completamente indiferentes, e elas se transformaram numa atividade independente em função disso, e, desta forma, apareceram na caracterização da personalidade.
É possível, naturalmente, fazer um julgamento simples e diferente: que neste desenvolvimento revelou-se algum tipo de "potencial caligráfico", com cuja natureza Bashmachkin se identificou. Porém, este julgamento combina, exatamente, com o espírito dos chefes de Akaki Akikievich que constantemente viam nele o funcionário mais diligente para a escrita, "de modo que, mais tarde, eles se convenceram de que aparentemente ele tinha nascido daquele jeito..."
Às vezes o caso é um pouco diferente. O que, de fora, parece serem ações que têm seu próprio significado para o ser humano revela-se, pela análise psicológica, como algo diferente, especificamente que são apenas meios de atingir objetivos, sendo que o motivo real parece residir num plano de vida completamente diferente. Neste caso, por trás da aparência de uma atividade, esconde-se outra atividade. E é especificamente essa atividade que entra diretamente no aspecto psicológico da personalidade, não importa qual seja o agregado de ações concretas que a realiza. É como se este último constituísse apenas um envelope para a outra atividade que realiza esta ou aquela relação real do homem com o mundo - um envelope que depende das condições que são às vezes acidentais. É por essa razão, por exemplo, que o fato de que um dado homem trabalhe como técnico por si só pode ainda não dizer nada de sua personalidade; seus traços não são revelados dessa forma, mas através daquelas relações nas quais ele inevitavelmente entra, talvez no processo de seu trabalho, talvez fora desse processo. Todas estas coisas são quase truísmos, e estou falando disso só para enfatizar, mais uma vez, que, se começarmos de uma coleção de traços psicológicos ou sócio-psicológicos do ser humano, de forma isolada, será impossível chegar a qualquer tipo de "estrutura da personalidade", uma vez que a base real da personalidade humana não reside em programas genéticos depositados nele, nem nas profundezas de sua disposição e de suas inclinações naturais, nem mesmo nos hábitos, conhecimentos, sabedoria adquiridos por ele, incluindo a aprendizagem profissional - e, sim, naquele sistema de atividades que é realizado através deste conhecimento e dessa sabedoria.
A conclusão geral a partir do que se disse é que a investigação da personalidade não deve se limitar a uma explanação de pré-requisitos, mas deve proceder a partir de um desenvolvimento da atividade, de seus tipos e formas concretos, e daquelas conexões que travam entre si, na medida em que seu desenvolvimento modifica radicalmente o significado dos próprios pré-requisitos. Assim, o sentido da investigação não se dá a partir de hábitos, habilidades e conhecimentos adquiridos para a atividade caracterizada por eles, mas, sim, a partir do conteúdo e das conexões das atividades, em direção a quais e que tipo de processos os realizam e torna-os possíveis.
Mesmo os primeiros passos na direção indicada conduzem à possibilidade de isolar um fato muito importante. É o fato de que, no curso do desenvolvimento do sujeito, suas atividades isoladas aparecem dentro de uma relação hierárquica. No nível da personalidade, de maneira alguma formam um aglomerado simples, cujos raios tivessem início e centro no sujeito. Uma representação das conexões entre as atividades enraizadas na individualidade e na totalidade de seu sujeito só é confirmada no nível do indivíduo. Neste nível (em animais e em crianças), o escopo das atividades e suas intra-conexões são diretamente determinados pelas propriedades do sujeito - gerais e individuais, inatas e adquiridas. Por exemplo, uma mudança na seletividade e uma mudança na atividade dependem, diretamente, da composição, em andamento, das necessidades do organismo e de uma mudança de seu dominante biológico.
As relações hierárquicas da atividade que caracterizam a personalidade são outro assunto. Sua característica é seu "desprendimento" com respeito à condição do organismo. Essas hierarquias da atividade são geradas por seu próprio desenvolvimento, e são elas que formam o núcleo da personalidade.
Em outras palavras, os "nós" que conectam as atividades isoladas são atados, não pela ação de forças biológicas ou espirituais do sujeito, que residem dentro dele, mas pelo sistema de relações no qual o sujeito entra.
A observação revela facilmente esses primeiros "nós" a partir de cuja formação se inicia o primeiríssimo estágio da formação da personalidade na criança. Dentro de uma forma muito bem expressa, este fenômeno foi observado com crianças pré-escolares. O experimentador que estava conduzindo os testes apresentou à criança um problema: pegar um objeto que estava fora de seu alcance sem sair do lugar. Assim que a criança começou a resolver o problema, o experimentador entrou numa sala contígua, da qual continuou sua observação, usando o aparelho ótico que usualmente é utilizado para tais observações. Após uma série de tentativas frustradas, a criança levantou, aproximou-se do objeto, pegou-o, e, silenciosamente, voltou para seu lugar. O experimentador veio imediatamente até a criança, elogiou-a pelo sucesso e ofereceu-lhe um pedaço de chocolate como recompensa. A criança, no entanto, recusou-o e, quando o experimentador começou a questioná-la, a pequena começou a chorar em silêncio.
O que reside por trás desse fenômeno? No processo que observamos, é possível isolar três momentos: primeiro, a conversa da criança com o experimentador, que explica o problema; segundo, a solução do problema; terceiro, a conversa com o experimentador depois que a criança pegou o objeto. Assim, as ações da criança foram uma resposta a dois motivos diferentes, isto é, realizaram dois tipos de atividade: um, em relação ao experimentador; outro, em relação ao objeto (recompensa). Como a observação indica, no momento em que a criança estava pegando o objeto, não experimentou a situação como conflito, como uma situação de "colisão". A conexão hierárquica entre as duas atividades só ficou evidente no momento da renovação da conversa com o experimentador, por assim dizer, post factum: o doce pareceu amargo, amargo no sentido pessoal, subjetivo.
O fenômeno descrito pertence a um estágio transicional muito precoce. A despeito de toda a simplicidade destas primeiras coordenações das várias relações de vida de uma criança, são precisamente essas relações que evidenciam o processo inicial da formação desta formação específica que chamamos de personalidade.
Coordenações semelhantes não são nunca observadas num estágio anterior de crescimento, mas se revelam constantemente no desenvolvimento posterior em suas formas incomparavelmente mais complexas e "entrelaçadas". Um fenômeno da personalidade como as dores de consciência não se desenvolve analogicamente?
O desenvolvimento e a multiplicação dos tipos de atividade de um indivíduo não conduzem, simplesmente, a uma expansão de seu "catálogo". Simultaneamente, ocorre um centramento delas em torno de várias atividades principais às quais as outras são subordinadas. Este processo longo e complexo de desenvolvimento da personalidade tem seus estágios e seus limites. Não vamos separar este processo do desenvolvimento da consciência e da auto-consciência, mas a consciência não constitui seu início: apenas o media e é, por assim dizer, um resumo dele.
Assim, como base da personalidade, há relações que coordenam a atividade humana que é gerada pelo processo de seu desenvolvimento. Mas como é expressa psicologicamente esta subordinação, esta hierarquia de atividades? De acordo com a definição que aceitamos, chamamos de atividade um processo que é eliciado e dirigido por um motivo - aquele no qual uma ou outra necessidade é objetivada. Em outras palavras: por trás da relação entre atividades, há uma relação entre motivos. Assim, chegamos à necessidade de nos voltarmos para a análise dos motivos e para a consideração de seu desenvolvimento, de sua transformação, o potencial para dividir sua função e aquele de seus deslocamentos que ocorrem dentro do sistema de processos que formam a vida de um indivíduo como uma personalidade.
Na psicologia contemporânea, o termo "motivo" (motivação, fatores motivadores) pode dizer respeito a fenômenos completamente diferentes. Impulsos instintivos, inclinações e apetites biológicos, assim como a experiência de emoções, de interesses e de desejos são todos denominados "motivos"; dentro desta enumeração mista de motivos, podem ser encontradas certas coisas, tais como objetivos ou ideais de vida, mas, também, coisas do tipo de um choque elétrico. Não há necessidade de se investigar todos esses conceitos e termos confusos que caracterizam a condição atual do problema que envolve os motivos. O problema da análise psicológica da personalidade requer a consideração apenas das questões principais.
Fundamentalmente, trata-se de uma questão que diz respeito às relações entre motivos e necessidades. Eu já disse que a necessidade real é sempre uma necessidade de alguma coisa, que, no nível psicológico, as necessidades são mediadas pela reflexão psíquica, e de duas maneiras. Por um lado, os objetos que respondem às necessidades do sujeito aparecem diante dele dentro de suas características sensoriais objetivas. Por outro lado, as condições da necessidade, nos casos mais simples, assinalam-se e são sensorialmente refletidas pelo sujeito como resultado das ações de estímulos de recepção interna. Aqui, a mudança mais importante que caracteriza a transição para o nível psicológico consiste no começo da conexão ativa das necessidades com os objetos que as satisfazem.
Acontece que, na própria condição de necessidade do sujeito, o objeto que é capaz de satisfazer a necessidade não é claramente delineado. Até o momento de sua primeira satisfação, a necessidade "não conhece" seu objeto; ele ainda precisa ser revelado. Só como resultado dessa revelação, é que a necessidade adquire sua objetividade e o objeto percebido (representado, imaginado) vem a adquirir sua atividade provocativa e diretiva como função; isto é, torna-se um motivo.
Este jeito de entender os motivos parece até certo ponto limitado, e as necessidades parecem estar sendo eliminadas da psicologia. Mas não é o que acontece. Não são as necessidades que desaparecem da psicologia, mas somente suas abstrações - as necessidades "nuas" do sujeito, não objetivamente satisfeitas. Essas abstrações vêm à tona como resultado do fato de se isolarem as necessidades da atividade objetiva do sujeito, com o que elas adquirem, sozinhas, sua concretude psicológica.
Compreende-se que o sujeito, enquanto indivíduo, nasce com uma porção de necessidades. Mas deixe-me repetir mais uma vez: as necessidades, enquanto força interna, só podem ser realizadas na atividade. Em outras palavras, a necessidade aparece, em princípio, só como uma condição, um pré-requisito para a atividade, porém, assim que o sujeito começa a agir, ocorre imediatamente sua transformação, e a necessidade deixa de ser aquilo que era virtualmente, "em si mesma". Quanto mais prossegue o desenvolvimento da atividade, mais esse pré-requisito é convertido em seu resultado.
A transformação das necessidades dá-se de forma distinta mesmo no nível de evolução dos animais: como resultado da ocorrência de uma mudança e com a ampliação do círculo de objetos que respondem às necessidades e dos métodos de sua satisfação, as próprias necessidades se desenvolvem. Isto acontece porque as necessidades têm a capacidade de serem concretizadas dentro de uma variedade potencialmente bastante ampla de objetos, os quais se tornam estímulos de atividade para um animal, proporcionando à atividade uma direção determinada. Por exemplo, quando aparecem no ambiente novos tipos de alimento e velhos tipos são eliminados, a necessidade de alimento continua a ser satisfeita e, adicionalmente, passa a incorporar em si um novo conteúdo, ou seja, torna-se diferente. Dessa forma, o desenvolvimento das necessidades dos animais ocorre por meio do desenvolvimento de suas atividades em relação a um círculo de objetos cada vez maior; compreende-se que a mudança no conteúdo objetivo concreto das necessidades conduz a uma mudança nos métodos de sua satisfação, também.
Certamente, esta afirmação geral requer muitas estipulações e muitas explicações, particularmente no que diz respeito às questões que envolvem as chamadas necessidades funcionais. Mas, no momento, não estamos falando disso. O ponto principal, aqui, é o isolamento da ocorrência da transformação das necessidades através dos objetos dentro do processo de seu consumo. E isto tem um significado primordial para a compreensão da natureza das necessidades humanas.
De forma distinta do desenvolvimento das necessidades nos animais, o qual depende de uma ampliação do círculo dos objetos naturais que eles consomem, as necessidades humanas são geradas pelo desenvolvimento da produção. Afinal, a produção é também diretamente consumo, o qual cria a necessidade. Em outras palavras, o consumo é mediado pela necessidade de um objeto, sua percepção ou sua apresentação mental. Nesta, em sua forma refletida, o objeto aparece como o motivo ideal, internamente gerado.
No entanto, na psicologia, os motivos são muito freqüentemente considerados de forma separada do elemento principal, que é a dualidade implícita na produção do consumidor, a qual os gera; isto leva à explicação unilateral das ações humanas baseadas diretamente nas necessidades humanas. Neste caso, muito freqüentemente, a afirmação de Engels é citada como fundamento, porém fora de seu contexto, que lida apenas com o papel do trabalho na formação do homem, incluindo, naturalmente, também suas necessidades. A compreensão marxista está longe de considerar as necessidades como o ponto inicial e principal. Eis o que Marx escreve com relação a isso: "Como uma necessidade, a necessidade em si é o momento interno da atividade produtiva. Mas a atividade produtiva (ênfase do autor) é o ponto inicial da realização e, portanto, também seu momento dominante, o ato no qual todo o processo volta a ocorrer novamente. O indivíduo produz um objeto e, através de seu consumo, retorna-o de novo para si...."
Desta maneira, estamos diante de dois esquemas básicos que expressam a conexão entre necessidade e atividade. O primeiro produz a idéia de que o ponto inicial é a necessidade e, por essa razão, o processo como um todo é expresso dentro do ciclo: necessidade>atividade>necessidade. Nele, como nota L.Seve, realiza-se o "materialismo das necessidades", que corresponde à representação pré-marxista em que a esfera do consumo é básica. O outro esquema, que contradiz o primeiro, é um esquema cíclico: atividade>necessidade>atividade. Este esquema, que corresponde ao conceito marxista de necessidade, também é fundamental para a psicologia, uma vez que "nenhuma concepção baseada na idéia de um único móvel, que em essência precedesse a atividade em si, pode exercer um papel inicial capaz de servir como uma base adequada para a teoria científica da personalidade humana."
A idéia de que as necessidades humanas são produzidas tem, naturalmente, um sentido materialista-histórico. Além disso, é extremamente importante para a psicologia. Isto precisa ser enfatizado, pois, às vezes, especialmente para a psicologia, a abordagem do problema é apenas considerada em explicações que se originam das necessidades em si, mais precisamente nas experiências emocionais que as necessidades evocam, que parecem explicar por que o homem estabelece objetivos para si mesmo e cria novos objetos. Certamente, isto contém alguma verdade, e seria possível concordar com tudo, se não fosse por uma condição: ao final das contas, como determinantes da atividade concreta, as necessidades só podem aparecer em seu conteúdo objetivo, e este conteúdo não é diretamente incorporado nelas e, conseqüentemente, não pode ser isolado delas.
Uma outra dificuldade básica surge como resultado de uma aceitação parcial da natureza sócio-histórica das necessidades humanas, o que se manifesta no fato de que algumas necessidades são consideradas sociais em suas origens, enquanto outras são tidas como puramente biológicas e comuns aos seres humanos e aos animais. De fato, não é necessária nenhuma proeza de raciocínio para nos darmos conta dos pontos em comum entre certas necessidades humanas e animais. Afinal, o ser humano, assim como os animais, tem um estômago e sente fome - uma necessidade que ele precisa satisfazer para poder sobreviver. Mas o ser humano tem, também, outras necessidades, que não são determinadas biologicamente e, sim, socialmente. São "funcionalmente automáticas" ou "anastáticas". Assim, a esfera das necessidades humanas parece estar dividida em duas partes. Isto surge como resultado inevitável da consideração das "necessidades em si", isoladas das condições objetivas e dos meios de sua satisfação, e, conseqüentemente, isoladas da atividade na qual ocorre sua transformação. Porém, a transformação das necessidades no nível humano também envolve (e sobretudo) as necessidades que parecem ser, no homem, homólogas às necessidades animais. "Fome, Marx observa, é fome, porém a fome que é saciada através de alimento cozido comido com garfo e faca é diferente daquela fome na qual a carne crua é comida com as mãos, as unhas e os dentes."
Naturalmente, o pensamento positivista não vê neste fato nada mais que uma diferença superficial. Seja como for, um homem esfomeado parece ser um exemplo suficiente para mostrar a "profunda" semelhança entre a necessidade de alimento no homem e no animal. No entanto, isso não passa de um sofisma. Para um homem que passa fome, a comida na realidade deixa de existir na sua forma humana e, conseqüentemente, a necessidade de comida passa a ser "desumanizada"; porém, se isto prova alguma coisa, então é apenas que o homem pode ser reduzido, pela fome, a uma condição animal, e não diz exatamente nada sobre a natureza de suas necessidades humanas.
Embora as necessidades humanas cuja satisfação constitui uma condição necessária para manter a existência física difiram das necessidades humanas que não têm homólogos nos animais, este desenvolvimento não se dá de forma absoluta, e a transformação histórica envolve toda a esfera de necessidades.
Além da transformação e enriquecimento do conteúdo objetivo das necessidades humanas, também ocorre mudança na forma de seu reflexo psíquico. Como conseqüência, elas podem vir a adquirir um caráter ideacional e, devido a isso, tornam-se psicologicamente invariantes: desta forma, a comida continua sendo comida para a pessoa faminta, assim como para quem não está nessa condição. Além disso, o desenvolvimento da produção mental gera certas necessidades que só podem existir na presença de um "plano de consciência". Finalmente, forma-se um tipo especial de necessidades - necessidades que são objetivo-funcionais, como a necessidade de trabalho, de criação artística etc. O fator principal é que, no homem, as necessidades entram em novas relações recíprocas.
Embora a satisfação de necessidades vitais continue sendo uma questão "de primeira ordem" para o homem e uma condição inegável de sua vida, necessidades superiores, especificamente humanas, não constituem, absolutamente, apenas formações superficiais assentadas sobre essas necessidades vitais. Por essa razão, pode acontecer que, se pusermos em um dos pratos da balança as necessidades vitais humanas fundamentais e, no outro, suas necessidades superiores, então suas necessidades superiores podem muito bem pesar mais que as necessidades vitais. Isto já é bem conhecido e não precisa de evidência.
É fato que o curso geral do desenvolvimento das necessidades humanas começa pela ação humana com vistas a satisfazer suas necessidades vitais elementares; porém, mais tarde isto se modifica, e o ser humano passa a satisfazer suas necessidades vitais para poder agir. Esta é a principal direção do desenvolvimento das necessidades humanas. Entretanto, esta direção não pode ser deduzida diretamente a partir do movimento das próprias necessidades, pois, por trás desse movimento se esconde o desenvolvimento de seu conteúdo objetivo, isto é, os motivos concretos para a atividade humana.
Assim sendo, a análise psicológica das necessidades torna-se, necessariamente, uma análise dos motivos. Para isso, no entanto, é necessário superar o entendimento subjetivo tradicional dos motivos que conduz a uma confusão de fenômenos absolutamente díspares e de níveis completamente diferentes da regulação da atividade. Encontramo-nos, aqui, com uma contradição genuína: não está claro, dizem, que o homem age porque assim o deseja? Mas as experiências subjetivas, as vontades, os desejos etc. não constituem motivos, uma vez que, por si mesmos, não são capazes de gerar a atividade direta e, conseqüentemente, o problema psicológico principal reside em compreender qual é o objeto de dado desejo, vontade ou paixão.
Naturalmente, há muito menos base, ainda, para chamar de motivos para a ação certos fatores como tendências para produzir estereótipos de comportamento, a tendência para concluir uma ação começada etc. No processo de realização da atividade, emergem, naturalmente, uma multidão de "forças dinâmicas". Essas forças, no entanto, podem ser relegadas à categoria de motivos com um fundamento nada mais consistente do que, por exemplo, a inércia do movimento do corpo humano cuja ação se revela de pronto, quando, por exemplo, um homem que está correndo muito rápido dá de encontro com um obstáculo que aparece inesperadamente.
Um lugar especial na teoria dos motivos da atividade pertence às concepções francamente hedonistas, cuja essência reside no fato de que toda a atividade do homem está, de alguma forma, subordinada ao princípio de maximizar as emoções positivas e minimizar as negativas. A partir disso, a conquista da satisfação e da liberdade do sofrimento compreendem os motivos subjacentes que mobilizam o ser humano. Especificamente, na concepção hedonista, assim como no foco de uma lente, são coletadas todas as representações ideologicamente pervertidas a respeito do senso de existência do ser humano e a respeito de sua personalidade. Como acontece com todas as grandes mentiras, essas concepções se baseiam numa verdade que elas falsificaram. Essa verdade consiste no fato de que o ser humano de fato luta para ser feliz. Mas o hedonismo psicológico entra imediatamente em contradição com essa grande verdade, trocando-a pela moeda pequena do "reforço" e do "auto-reforço" dentro do espírito do behaviorismo skinneriano.
A atividade humana não é, de forma alguma, gerada e não é dirigida, como o comportamento de ratos de laboratório, com eletrodos implantados nos "centros de satisfação" no cérebro. Quando os ratos são treinados para ligar a força e estimular esses centros, eles permanecem eternamente nessa atividade. É claro que é possível citar fenômenos semelhantes no ser humano também, como a necessidade de narcóticos ou a hiperbolização do sexo, por exemplo; no entanto, esses fenômenos não dizem absolutamente nada a respeito da natureza real dos motivos, a respeito da confirmação da vida humana. Ao contrário, essas ações arruínam a vida.
Compreendemos que a insustentabilidade das concepções hedonistas da motivação reside, não no fato de que exageram o papel das experiências emocionais na regulação da atividade, mas no fato de que reduzem e pervertem as relações reais. As emoções não estão subordinadas à atividade, mas parecem ser seu resultado e o "mecanismo" do seu movimento.
Na sua época, John Stuat Mill escreveu: "Eu entendi que, para ser feliz, o ser humano deve colocar diante de si algum tipo de objetivo; então, ao lutar por ele, ele vai sentir felicidade sem que se preocupe com isso." Essa é a estratégia "astuta" da felicidade. Segundo ele, essa é a lei psicológica.
As emoções preenchem as funções de sinais internos, internos no sentido de que não aparecem diretamente como um reflexo psíquico da própria atividade psíquica. A característica especial das emoções reside no fato de que refletem relacionamentos entre os motivos (necessidades) e o sucesso, ou a possibilidade de sucesso, de realizar a ação do sujeito que responde a esses motivos. Não estamos falando, aqui, sobre o reflexo desses relacionamentos, mas sobre um reflexo seu que se dá de forma direta e sensorial, sobre a experiência. Assim, eles aparecem como resultado da atualização de um motivo (necessidade), e antes de uma avaliação racional por parte do sujeito a respeito de sua atividade.
Não posso me deter, aqui, numa análise das várias hipóteses que, de uma forma ou de outra, expressam a forma com que as emoções dependem de inter-relações entre a "realidade objetiva e aquilo que deve ser". Vou apenas notar que o fato a ser considerado em primeiro lugar é que as emoções dizem respeito à atividade, e não às ações ou operações que a realizam. Por esta razão, o mesmo processo que realiza várias atividades pode adquirir várias colorações emocionais, até mesmo contraditórias. Em outras palavras, o papel de "sanção" positiva ou negativa é desempenhado pelas emoções com relação aos afetos atribuídos aos motivos. Mesmo a realização bem sucedida de uma ação ou outra não leva necessariamente a emoções positivas; pode engendrar uma experiência fortemente negativa, sinalizando que, no que concerne ao motivo principal, o sucesso obtido é psicologicamente uma derrota para a personalidade. Isto também se revela verdadeiro no nível de reações adaptativas mais simples. O ato de espirrar em si, ou seja, independentemente de qualquer tipo de relação que pudesse existir, evoca satisfação, assim dizem; no entanto, uma sensação inteiramente diferente se dá na experiência de um dos heróis de Chekov, que espirrou no teatro: este fato lhe evocou uma emoção de horror e ele realizou uma série de ações que resultaram em sua morte.
A variedade e a complexidade dos estados emocionais é o resultado da quebra da sensitividade primária na qual os momentos cognitivos e sensitivos se unem. Não devemos, naturalmente, pensar nessa ruptura como se os estados emocionais adquirissem uma existência independente do mundo objetivo. A partir de condições objetivas, eles "marcam" marcas emocionais com relação às coisas em si ou às pessoas, de modo a formar os assim chamados complexos afetivos etc. Aqui estamos falando de outra coisa, especificamente, a respeito da diferenciação que resulta na forma de conteúdo objetivo e de coloração emocional. As condições da mediação complexa da atividade humana e a influência de objetos podem mudar (um encontro inesperado com um urso normalmente causa medo, mas se surgir um motivo especial, por exemplo na situação de caça, o encontro pode gerar alegria). O ponto principal é que os processos e estados emocionais têm seu próprio desenvolvimento no homem, de forma especial. Isto deve ser especialmente enfatizado na medida em que as concepções clássicas das emoções humanas como "rudimentos", com base em Darwin, consideram sua transformação no homem com uma involução, o que gera um ideal falso de educação, conduzindo à exigência de "subordinar os sentimentos à razão fria".
Eles têm sua própria história e seu próprio desenvolvimento. Isto leva a uma mudança de níveis e classes. São afetos que ocorrem súbita e involuntariamente (dizemos: "fiquei tomado pela raiva, mas fiquei contente"); em segundo lugar, as emoções são propriamente esses estados - predominantemente ideacionais e situacionais - e os sentimentos objetivos ligados a eles, isto é, firmes e "cristalizados", de acordo com a expressão figurativa de Stendahl, no objeto da experiência emocional; finalmente, são atitudes - fenômenos subjetivos muito importantes com sua função de "personalidade". Sem aprofundar na análise dessas várias classes de estados emocionais, vou apenas observar que eles travam relações complexas entre si: o jovem Rostov sente medo antes da batalha (e isto é uma emoção) de que será vencido pelo pavor (afeto); uma mãe pode ficar realmente brava com seu filho arteiro sem, nem por um minuto, deixar de amá-lo (sentimento).
A variedade dos fenômenos emocionais e a complexidade de suas inter-relações e fontes são muito bem compreendidas subjetivamente. No entanto, assim que a psicologia deixa o plano da fenomenologia, logo parece que só lhe é permitido investigar os estados mais óbvios. Foi dessa forma que o assunto foi tratado nas teorias periféricas (James disse explicitamente que a sua teoria não dizia respeito às emoções superiores); também é dessa maneira que o assunto tem continuado a ser tratado nas concepções psicofisiológicas contemporâneas.
Uma outra forma de abordar a emoção envolve a investigação das relações "inter-motivacionais" que, em conjunto, caracterizam a estrutura da personalidade e, simultaneamente, a esfera das experiências emocionais que refletem e mediam seu funcionamento.
Geneticamente, o ponto de partida para a atividade humana reside na não-coincidência entre motivos e objetivos. Sua coincidência é um fenômeno secundário: seja como resultado da aquisição de um objetivo de força de estimulação independente, seja como resultado do reconhecimento de motivos e de sua conversão em motivos-objetivos. Distintos dos objetivos, os motivos não são, de fato, reconhecidos pelo sujeito: quando executamos uma ação ou outra, naquele momento usualmente não nos damos conta dos motivos que evocam a ação. É certo que não é difícil para nós atribuir motivação a elas, mas a motivação nem sempre contém em si uma indicação de seu motivo verdadeiro.
Os motivos, no entanto, não estão separados da consciência. Mesmo quando os motivos não são reconhecidos, isto é, quando o ser humano não se dá conta do que o faz realizar uma ação ou outra, eles ainda encontram seu reflexo psíquico, mas de uma forma especial - na forma da coloração emocional da ação. Esta coloração emocional (sua intensidade, sua marca e seu caráter qualitativo) exerce uma função específica, que também requer a distinção entre o conceito de emoção e o conceito de sentido pessoal. Sua não-coincidência não se dá, no entanto, por natureza; evidentemente, nos níveis inferiores, os objetos da necessidade são exata e diretamente "marcados" pela emoção. A não-conformidade só aparece como resultado da quebra da função dos motivos que ocorre no curso do desenvolvimento da atividade humana.
Essa quebra é resultado do fato de que a atividade necessariamente se torna multi-motivacional, isto é, responde, simultaneamente, a dois ou mais motivos. Afinal, as ações humanas praticamente sempre realizam um certo conjunto de relações: voltadas à sociedade e voltadas à própria pessoa. Assim, a atividade do trabalho é socialmente motivada, mas também é dirigida a motivos, como, digamos, a recompensa material. Embora coexistam, é como se esses dois motivos ocupassem planos diferentes. Nas condições das relações socialistas, o senso de trabalho é engendrado para o trabalhador por motivos sociais; no que concerne à recompensa material, este motivo, naturalmente, também existe para ele, porém somente como uma função da atividade estimuladora, embora também a induza, tornando-a "dinâmica", mas a recompensa material, enquanto motivo, passa a se privar de sua principal função, a função da formação de sentido.
Desta forma, certos motivos que induzem a atividade também lhe dão sentido pessoal; vamos chamá-los de motivos formadores de sentido. Outros que coexistem com eles e exercem o papel de fatores de estimulação (positiva ou negativa), às vezes fortemente emocionais e afetivos, não têm a função da formação de sentido; chamaremos esses motivos literalmente de motivos-estímulos. Caracteristicamente, quando uma atividade, importante em seu próprio sentido pessoal para o homem, encontra, no curso de sua realização, um estímulo negativo que elicia, até mesmo, uma experiência emocional forte, então seu sentido pessoal não se altera por causa disso; muito freqüentemente, uma outra coisa acontece: especificamente, ocorre, de forma única, um rápido descrédito da emoção eliciada. Este fenômeno bem conhecido leva-nos a pensar, mais uma vez, no problema das relações entre as experiências emocionais e o sentido pessoal.
Uma separação com respeito à função da formação de sentido e à estimulação simples entre os motivos de uma só atividade torna possível entender as principais relações que caracterizam a esfera motivacional: as relações de hierarquia dos motivos. Esta hierarquia não é minimamente construída dentro de uma escala que estivesse de acordo com sua proximidade com relação às necessidades vitais (biológicas), da forma com que Maslow, por exemplo, imagina: a necessidade de manter homeostase fisiológica é a base para a hierarquia; os motivos de auto-preservação são superiores; em seguida, confiança e prestígio; finalmente, no alto da hierarquia, os motivos de conhecimento e estética. O problema principal que surge aqui não reside em estabelecer até que ponto a escala dada (ou outra semelhante a ela) está certa, mas em que medida o princípio que rege essa escala é adequado. O fato é que nem o grau de proximidade com relação às necessidades biológicas, nem o grau de capacidade de estimulação, nem a influência de um motivo ou outro determina a relação hierárquica entre eles. Essas relações são determinadas pelas conexões que a atividade do sujeito provoca, por suas mediações e, por essa razão, são relativas. Isso diz respeito, também, à correlação principal - à correlação entre os motivos formadores de sentido e os motivos-estímulos. Na estrutura de uma atividade, dado motivo pode preencher a função de formação de sentido; numa outra, a função de estimulação suplementar. Os motivos formadores de sentido, no entanto, sempre ocupam uma posição hierárquica superior, mesmo quando não governam a afecto-gênese direta. Parecendo ser dominantes na vida da personalidade, para o próprio sujeito podem permanecer "nas asas", com respeito, tanto à consciência, quanto à afetividade direta.
O fato da existência de motivos realmente inconscientes não expressa, em si, um início especial escondido nas profundezas da psique. Os motivos inconscientes têm a mesma determinação que todo reflexo psíquico: uma existência real, a atividade do homem dentro de um mundo objetivo. Inconsciente e consciente não se opõem; são apenas formas e níveis diferentes de reflexo psíquico em estrita relação com o lugar que aquele que é refletido ocupa na estrutura da atividade, no movimento de seu sistema. Se os objetivos e ações que respondem a eles são por necessidade reconhecidos, o assunto é outro no que diz respeito ao reconhecimento de seus motivos, daquilo a que se deve a seleção e realização de determinados objetivos. O conteúdo objetivo dos motivos sempre, é claro, de uma forma ou de outra, se apresenta e é percebido. No que diz respeito a isso, o objeto que estimula a ação e o objeto que age como implemento ou obstáculo são, por assim dizer, equivalentes. Se o objeto é reconhecido como motivo, já é um assunto diferente. O paradoxo reside no fato de que os motivos são revelados à consciência só objetivamente, por meio da análise da atividade e de sua dinâmica. Subjetivamente, eles só aparecem em sua expressão oblíqua, na forma da experiência de vontades, de desejos, ou na luta por um objetivo. Quando um ou outro objetivo aparece na minha frente, então eu não somente o reconheço, apresento sua condicionalidade objetiva para a minha pessoa, os meios de sua realização e os resultados eventuais aos quais ele conduz, mas eu quero alcançá-lo (ou, ao contrário, pode me causar aversão). Essas experiências diretas preenchem o papel de sinais internos por meio dos quais os processos são regulados no curso de sua realização. Expressando-se subjetivamente nesses sinais internos, o motivo não está diretamente contido neles. Isso cria a impressão de que surgem endogenamente e de que são as forças que mobilizam o comportamento.
O reconhecimento dos motivos é um fenômeno secundário que surge apenas no nível da personalidade e é continuamente produzido no curso de seu desenvolvimento. Para as crianças muito pequenas, este problema simplesmente não existe. Mesmo no estágio de transição para a idade escolar, quando um desejo de ir para a escola aparece na criança, o motivo subjacente, o qual está por trás desse desejo, não é claro para ela, embora não tenha dificuldade com motivações que usualmente produzem algo de familiar para ela. Só é possível explicar esse motivo subjacente estudando objetivamente (obliquamente), por exemplo, os jogos das crianças que brincam de "ir para a escola", de modo que, no jogo de faz-de-conta, é fácil de se ver o sentido pessoal das ações do jogo e, correspondentemente, seu motivo. Para reconhecer os motivos reais de sua atividade, o sujeito também precisa proceder de forma indireta, com esta diferença, entretanto, de que ao longo desse caminho ele será orientado por sinais - experiências, "marcas" emocionais da vida.
Um dia preenchido com uma multidão de ações, aparentemente totalmente bem sucedidas, pode, apesar disso, estragar o humor de uma pessoa, deixando-a com uma espécie de resíduo emocional desagradável. Por trás das preocupações do dia, esse resíduo quase não é percebido. Mas, então, chega um minuto no qual a pessoa olha para trás e mentalmente avalia o dia que passou; nesse momento, vem à sua memória uma dada experiência, e seu humor adquire a referência objetiva: surge um sinal afetivo, que indica que particularmente essa experiência a deixou com o resíduo emocional. Pode acontecer, por exemplo, que seja sua reação negativa ao sucesso de alguém que alcançou um objetivo comum simplesmente porque parecia para ela que aquilo lhe pertencia; e, aqui, parece que não foi exatamente assim, e que, realmente, o principal motivo para ela era alcançar o sucesso para si. Ela confronta-se com um "problema de sentido pessoal" que não se resolve por si, porque agora se tornou um problema da correlação dos motivos que a caracterizam como uma personalidade.
É necessário um trabalho interno específico para resolver um problema como esse e talvez para erradicar o que se tornou exposto. Afinal, é muito ruim, conforme Pirogov, se você não percebe isso a tempo e não dá fim a isso. Herzen também escreveu a esse respeito, e toda a vida de Tolstoi é um grande exemplo de um trabalho interno desse tipo.
O processo de penetrar na personalidade aparece, aqui, do ponto de vista do sujeito, fenomenicamente. Mas, mesmo neste caso, em sua aparência fenomênica, fica claro que consiste num esclarecimento das relações hierárquicas dos motivos. Subjetivamente, parecem expressar uma "valência" psicológica que pertence aos próprios motivos. A análise científica, no entanto, precisa ir além, uma vez que a formação dessas relações necessariamente pressupõe uma transformação dos próprios motivos, a qual ocorre no movimento deste sistema inteiro de atividade do sujeito no qual sua personalidade é formada.
A situação do desenvolvimento do indivíduo humano revela seus traços especiais mesmo nos estágios mais precoces. Seu princípio reside no caráter de mediação das conexões da criança com o mundo circundante. No início, as conexões biológicas diretas, criança-mãe, são logo mediadas por objetos: a mãe alimenta a criança com uma tigela, veste-a com roupas e, para diverti-la, manipula brinquedos. Por outro lado, as conexões da criança com as coisas são mediadas pelas pessoas que a circundam: a mãe coloca a criança perto das coisas que lhe são atraentes, providencia para que fiquem perto dela, ou, talvez, tira-as dela. Numa palavra, a atividade da criança aparece, cada vez mais, como a realização de suas conexões com os seres humanos através das coisas, e conexões com as coisas através dos seres humanos.
O resultado deste desenvolvimento é que as coisas aparecem para a criança não apenas em suas propriedades físicas, mas, também, por meio daquela qualidade especial que adquirem na atividade humana - em seu significado funcional (um copo é algo com que se bebe, um banco é onde se senta, um relógio é algo que as pessoas usam no pulso etc.) - e as pessoas parecem estar "encarregadas" das coisas das quais depende sua relação com as pessoas. A atividade objetiva da criança adquire uma estrutura implementada e a comunicação se torna oral, mediada pela linguagem.
Nesta situação inicial do desenvolvimento da criança, há também o núcleo dessas relações, cujo desdobramento ulterior constitui uma cadeia de experiências que leva a sua formação enquanto personalidade. No princípio, as relações com o mundo das coisas e com as pessoas ao redor fundem-se para a criança, porém, mais tarde, separam-se e formam linhas de desenvolvimento, variadas embora interconectadas, as quais se unem umas às outras.
Na ontogênese, estas transições se expressam em fases alternantes: a fase da predominância do desenvolvimento da atividade objetiva (prática e cognitiva) com fases do desenvolvimento de inter-relações com as pessoas e com a sociedade. O mesmo tipo de transição caracteriza o movimento dos motivos dentro de cada fase. Como resultado, aparecem aquelas conexões hierárquicas de motivos que formam os "nós" da personalidade.
A amarração desses nós representa um processo oculto que é expresso de formas diferentes em estágios diferentes do desenvolvimento. Eu descrevi acima um dos fenômenos que caracterizam o mecanismo deste processo no estágio em que se combinam a ação objetiva de uma criança e sua relação com um adulto que está ausente em certo momento; embora modifique o sentido do resultado obtido, mesmo assim permite que a ação em si continue sendo completamente uma ação "de campo". Como ocorrem as mudanças posteriores? Fatos obtidos na pesquisa com crianças pré-escolares de várias idades indicam que essas mudanças estão sujeitas a regras definidas.
Uma delas é que, numa situação em que se dá a motivação em várias direções, há primeiro uma subordinação da ação às exigências do ser humano e, então, uma subordinação objetiva de conexões inter-objetos. Uma outra regra que se descobriu no decorrer dos experimentos parece um pouco paradoxal: parece que sob condições de atividade duplamente motivada, o motivo material-objetivo pode preencher uma função, tendo anteriormente subordinado um outro motivo, quando é apresentado para uma criança na forma de apenas uma representação, mentalmente, e só mais tarde aparece no campo real de percepção.
Embora estas regras expressem hereditariedade genética, elas também têm um significado geral. O fato é que, ao fazer com que uma situação como a descrita se torne mais precisa, o fenômeno de deslocamento ("décalage") aparece como aquele de cujo resultado são reveladas estas relações mais simples e direcionadoras; sabe-se, por exemplo, que é mais fácil atacar depois de uma ordem direta do comandante, do que quando se é auto-dirigido. No que concerne à forma na qual aparecem os motivos, em circunstâncias complexas de atividade voluntária fica muito claramente revelado que só um motivo ideal, isto é, um motivo que reside dentro dos vetores do campo interno, é capaz de subordinar a si ações provindas de motivos exteriores e dirigidas em direção oposta. Falando figurativamente, o mecanismo psicológico dos feitos da vida devem ser encontrados na imaginação humana.
Do ponto de vista das mudanças das quais estamos falando, o processo de formação da personalidade pode ser representado como um desenvolvimento da vontade, e isto não é acidental. A ação impulsiva, involuntária, é uma ação impessoal, embora se possa falar da perda da vontade apenas com relação à personalidade (afinal, não é possível se perder o que não se tem). Por essa razão, os autores que consideram a vontade como o traço mais importante da personalidade do ponto de vista empírico estão certos.
A vontade, entretanto, não parece ser, nem o começo, nem mesmo o "pivô" da personalidade: é só uma de suas expressões. A base real da personalidade é aquela estrutura especial da atividade inteira do sujeito a qual ocorre em dado estágio do desenvolvimento de suas conexões humanas com o mundo.
O ser humano vive como se fosse num círculo cada vez mais amplo de atividade para si. No começo, é um pequeno círculo de pessoas e objetos que diretamente o circundam: ele desenvolve interação com eles, uma percepção sensorial deles, uma aprendizagem do que pode ser conhecido sobre eles, um aprendizado de seu significado. Porém, mais para frente, diante de si começa a se abrir uma atividade que se encontra muito além dos limites de sua atividade prática e de seu contato direto: os limites ampliados daquilo que ele pode conhecer e que é apresentado para ele pelo mundo. O "campo" real que agora determina suas ações não é aquele que está simplesmente presente, mas aquele que existe para ele, existe objetivamente ou, às vezes, apenas como uma ilusão.
O conhecimento do sujeito a respeito daquilo que existe é sempre maior do que sua conversão em alguma coisa que determine sua atividade. Esse conhecimento exerce um papel muito importante na formação dos motivos. Em certo nível de desenvolvimento, os motivos primeiro aparecem como apenas "conhecidos", como possíveis, sem ainda estimular realmente qualquer tipo de ação. Para entender o processo da formação da personalidade, é necessário não deixar de considerar isto, embora, em si, a extensão de conhecimento não apareça como determinante da personalidade; por esse motivo, aliás, o cultivo da personalidade não pode ser reduzido ao treino, à acumulação de conhecimento.
A formação da personalidade pressupõe um desenvolvimento do processo da formação de objetivos e, correspondentemente, o desenvolvimento das ações do sujeito. As ações, tornando-se cada vez mais ricas, superam aquele círculo de atividade que elas realizam, e entram em contradição com os motivos que as geram. Os fenômenos de tal superação são muito bem conhecidos e seguidamente descritos na literatura que trata da psicologia do crescimento, embora em termos diferentes; estes fenômenos formam as assim chamadas crises de desenvolvimento, as crises dos três anos, dos sete anos, da adolescência, e aquelas crises da maturidade, muito menos freqüentemente estudadas. Como resultado, ocorre um deslocamento dos motivos para objetivos, uma mudança em sua hierarquia, e a geração de novos motivos, de novos tipos de atividade; os objetivos anteriores são psicologicamente desacreditados e as ações que respondiam a eles, ou deixam completamente de existir, ou são convertidas em operações impessoais.
As forças internamente motivadoras deste processo residem na conexão dual original do sujeito com o mundo e em sua mediação dual, a atividade com objetos e o contato social. Seu desenvolvimento gera, não só uma dualidade de motivação de ações, mas, devido a isso, também sua subordinação, dependendo das relações objetivas que se abrem para o sujeito e nas quais ele entra. O desenvolvimento e a multiplicação dessas subordinações, que são especiais em sua natureza e aparecem somente em condições de vida do homem em sociedade, ocupam um longo período que pode ser chamado de estágio espontâneo do desenvolvimento da personalidade, não dirigido pela auto-consciência. Neste estágio, que continua quase até o começo da adolescência, o processo da formação da personalidade, entretanto, não está concluído; é apenas uma preparação para a vinda da personalidade auto-consciente.
Na literatura a respeito de pedagogia e de psicologia, tanto o primeiro período pré-escolar, quanto o período pré-adolescente são indicados como pontos de mutação com relação a isso. A personalidade, de fato, nasce duas vezes; na primeira vez, quando aparecem numa criança, em formas claras, a poli-motivação e a subordinação de suas ações (vamos lembrar o fenômeno dos "doces amargos" e outros semelhantes a esse), e, na segunda vez, quando sua personalidade consciente aparece. Neste último caso, temos em mente algum tipo de reconstrução especial da consciência. O problema surge com respeito à compreensão da necessidade para essa reconstrução e de que consiste especificamente.
Esta necessidade é criada pela circunstância de que, quanto mais amplas as conexões do sujeito com o mundo, mais elas são entrelaçadas entre si. Suas ações, ao realizar uma de suas atividades, uma relação, objetivamente parecem realizar, ao mesmo tempo, um outro tipo de relação que também lhe é própria. Uma possível não-conformidade ou contradição como essas não cria, no entanto, alternativas que sejam resolvidas, simplesmente, por uma "aritmética de motivos". Uma situação psicológica real, gerada pelo cruzamento de liames do sujeito com o mundo, nos quais são introduzidos, independentemente de sua vontade, cada uma de suas ações e cada um de seus atos de contato com outras pessoas, requer dele uma orientação no sistema destas conexões. Em outras palavras, o reflexo psíquico ou a consciência não pode, a essas alturas, tornar-se uma orientação apenas de algumas ações do sujeito; precisa, também, refletir ativamente a hierarquia de suas conexões, o processo de desenvolvimento da subordinação e do cruzamento de subordinações de seus motivos. E isto requer um movimento interno especial da consciência.
Nos movimentos da consciência individual, descritos anteriormente como um processo de transição mútua entre conteúdos diretamente sensoriais e significados que adquirem um sentido ou outro, dependendo dos motivos da atividade, desvela-se agora, também, um movimento em uma dimensão. Se o movimento descrito anteriormente for apresentado figurativamente como um movimento no plano horizontal, então o novo movimento ocorre como que verticalmente. Consiste em correlacionar os motivos entre si. Alguns ocupam um lugar de tal forma que subordinam outros a si e comportam-se como se se elevassem; outros, ao contrário, caem para a posição de subordinação ou, até, perdem completamente sua função de formação de sentido. A formação desse movimento expressa, em si, a formação de um sistema conectivo de sentidos pessoais, a formação da personalidade.
Naturalmente, a formação da personalidade representa, em si, um processo contínuo que consiste de uma série de estágios que mudam seqüencialmente, cujas características qualitativas dependem das condições e das circunstâncias concretas. Por esta razão, ao observar seu curso seqüencial, notamos, apenas, deslocamentos separados. Mas, se fôssemos olhá-lo a certa distância, então a transição que marca o nascimento genuíno da personalidade apareceria como um acontecimento que muda o curso de todo o desenvolvimento psíquico subseqüente.
Existem muitos fenômenos que marcam essa passagem. Primeiramente, é uma reconstrução da esfera de relações com outras pessoas e com a sociedade. Se, nos estágios iniciais, a sociedade é descoberta através de contatos crescentes com aqueles que estão ao redor da pessoa e, por essa razão, predominantemente em suas formas personificadas, então, neste momento, esta situação se reverte: as pessoas ao redor começam, cada vez mais, a agir através de relações sociais objetivas. A transição a respeito da qual estamos falando também provoca mudanças que determinam o ponto principal no desenvolvimento da personalidade, no seu destino.
A necessidade de o sujeito orientar-se no sistema em ampliação de suas conexões com o mundo revela-se, agora, em seu novo significado: como aquele que dá lugar para o processo de desdobramento da essência social do sujeito. Em toda sua completude, este desdobramento constitui uma perspectiva de processo histórico. Em conformidade com a formação da personalidade em um ou em outro estágio do desenvolvimento da sociedade e dependendo do lugar que o sujeito ocupa no sistema das relações sociais em andamento, esta perspectiva aparece como se apenas eventualmente contivesse em si o "ponto terminal" ideal.
Uma das mudanças por atrás das quais se esconde a nova reconstrução da hierarquia de motivos mostra-se numa perda, para o adolescente, do valor intrínseco das relações no círculo íntimo de seus contatos. Assim, os pedidos vindos mesmo dos adultos mais próximos agora só preservam suas funções na formação do sentido se forem incluídos dentro de uma esfera social e motivacional mais ampla; em outras circunstâncias, evocam "revolta psicológica". No entanto, esta entrada do adolescente num círculo mais amplo de contatos não significa, absolutamente, que o íntimo e o pessoal sejam, agora, relegados a um segundo plano. Ao contrário, é justamente nesse período e justamente por essa razão que ocorre um desenvolvimento intenso da vida interna: lado a lado com uma amizade casual, desenvolve-se a amizade real nutrida pela confiança mútua; o conteúdo das cartas muda, elas perdem seu caráter descritivo estereotipado e aparecem nelas relatos de experiências; são feitas tentativas para ter diários íntimos e aparece o primeiro amor.
Mudanças ainda mais profundas marcam os níveis subseqüentes de desenvolvimento até o nível em que o sistema de relações sociais objetivas e sua expressão adquirem um sentido pessoal próprio. Naturalmente, os fenômenos que ocorrem neste nível são ainda mais complexos e podem ser verdadeiramente trágicos, mas mesmo aqui a mesma coisa acontece: quanto mais a sociedade se revela para a personalidade, tanto mais completo se torna seu mundo interno.
O processo de desenvolvimento da personalidade sempre continua sendo profundamente individual, único. Ele produz deslocamentos mais significativos ao longo da abscissa de crescimento e, às vezes, evoca degradação social da personalidade. O ponto principal é que segue de forma completamente individual e depende das condições históricas concretas, do fato de o indivíduo pertencer a um ou a outro ambiente social. É particularmente dramático sob as condições de uma sociedade de classes, com sua inevitável alienação e parcialização da personalidade, com suas alternativas entre trabalho braçal e executivo. Compreende-se que as circunstâncias concretas da vida deixam sua marca no processo de desenvolvimento da personalidade mesmo dentro de uma sociedade socialista. Ao eliminar as condições objetivas que formam uma barreira para o retorno de sua verdadeira essência para o ser humano, para um desenvolvimento suave e harmonioso de sua personalidade, faz com que isto venha a ser, pela primeira vez, um prospecto real, mas não reconstrói automaticamente uma personalidade. A mudança fundamental reside em outra coisa, no aparecimento de um novo movimento: de uma luta da sociedade em favor da personalidade humana. Quando dizemos "em nome do homem, pelo homem", isto não significa, apenas, para seu uso, mas para sua personalidade, embora aqui se compreenda, naturalmente, que ao homem devem ser assegurados bens materiais e alimento mental.
Se voltarmos, mais uma vez, para os fenômenos que marcam a transição do período de preparação da personalidade para o período de seu desenvolvimento, então precisaremos, ainda, indicar uma outra transformação transicional. Trata-se da transformação da expressão de características de classe da personalidade e, falando mais amplamente, das características que dependem da diferenciação social da sociedade. O fato de um sujeito pertencer a uma classe condiciona, logo de início, o desenvolvimento de suas conexões com o mundo circundante, um segmento maior ou menor de sua atividade prática, seus contatos, seu conhecimento, e sua aquisição de normas de comportamento. São todas aquisições a partir das quais a personalidade é constituída no estágio de sua formação inicial. É possível e é necessário, de acordo com isso, que falemos do caráter de classe da personalidade? Sim, se levarmos em consideração aquilo que a criança assimila do ambiente; não, porque neste estágio ela é apenas um objeto, se podemos falar assim, de sua classe, de seu grupo social. Mais tarde, a situação se modifica e ela se torna o sujeito de classe e grupo. Então, e só então, sua personalidade começa a se formar como uma personalidade de classe dentro de um sentido diferente e verdadeiro da palavra: no começo, talvez inconscientemente, depois conscientemente, porém, mais cedo ou mais tarde, ele vai assumir sua posição - mais ou menos ativa, decisiva ou vacilante. Por esta razão, sob condições de confronto de classes, ele não apenas "se mostra", mas assume sua posição de um lado ou de outro da barricada. Uma outra coisa se torna evidente, especificamente, o fato de que, em cada virada na sua forma de vida, ele precisa livrar-se de algo, confirmar algo em si, e ele deve fazer tudo isso, e não simplesmente "submeter-se ao efeito do ambiente".
Finalmente, ao longo dessa linha, ainda acontece uma outra mudança, a qual também altera o próprio "mecanismo" que forma a personalidade. Falei antes da atividade real do sujeito, a qual cada vez vai se ampliando mais. Porém, ela existe também dentro do tempo - na forma de seu passado e na forma do futuro que vê diante de si. É claro que temos em mente, em primeiro lugar, o primeiro ponto: a experiência individual do sujeito, cuja função parece ser, por assim dizer, sua personalidade. E este fato faz ressurgir, novamente, a fórmula a respeito da personalidade como um produto resultante de propriedades inatas e da aquisição de experiência. Nos primeiros estágios do desenvolvimento, essa fórmula pode ainda parecer confiável, especialmente se não for simplificada e se for considerada toda a complexidade dos mecanismos que participam da formação da experiência. Sob as condições da hierarquização dos motivos, entretanto, continuamente perde seu significado e, no nível da personalidade, parece ir à falência.
O fato é que, neste nível, as impressões passadas, as experiências e as ações reais do sujeito não aparecem para ele, de forma alguma, como camadas dormentes de sua experiência. São o tema de suas relações e de suas ações e, por essa razão, sua contribuição transforma-se na personalidade. Uma coisa no passado morre, perde seu significado, e converte-se em simples condição e meio para sua atividade: as atitudes, habilidades e estereótipos de comportamento desenvolvidos; todo o resto aparece para o sujeito a uma luz completamente nova e adquire um novo significado, o qual ele não percebeu antes; finalmente, algo no passado pode ser ativamente rejeitado pelo sujeito e psicologicamente cessa de existir para ele, embora permaneça no compêndio de sua memória. Estas mudanças ocorrem gradualmente, mas podem se concentrar e podem compreender quebras morais. A reavaliação resultante do passado, a qual se estabelece durante a vida, conduz ao fato de que o homem descarrega de si o fardo de sua biografia. Isto por si só não indica que as contribuições da experiência passada para a personalidade dependeram da própria personalidade e se tornaram sua função?
Isto parece ser possível por causa do novo movimento interno que surgiu no sistema da consciência individual, o qual chamei figurativamente de movimento "ao longo da vertical". Mas não podemos pensar que as mudanças importantes da personalidade no passado foram produzidas pela consciência; a consciência não as produz, mas simplesmente as mediatiza; são produzidas pelas ações do sujeito, às vezes até ações externas, quebras de contatos prévios, uma mudança na profissão, uma entrada prática em novas circunstâncias. Isto foi belamente descrito por Makarenko: a roupa velha trajada por órfãos num orfanato é queimada em público numa fogueira.
Apesar de seu predomínio, a consideração da personalidade como produto da biografia do ser humano é insatisfatória, confirmando, como acontece, uma compreensão fatalista de seu destino (um cidadão pensa assim: a criança roubou, portanto vai ser um ladrão!). Este ponto de vista, naturalmente, permite a possibilidade de mudar alguma coisa no homem, mas somente ao preço da interferência externa, cuja força sobrepuja o acúmulo de experiência. Trata-se de uma concepção da primazia da punição e não do arrependimento, da recompensa e não da ação que é recompensada. O fato psicológico principal é negligenciado, especificamente, o fato de que o homem entra em relação com seu passado, o qual entra de forma variada em seu presente - na memória de sua personalidade. Tolstoi aconselhou: Note aquilo de que você se lembra e aquilo de que você não se lembra, através destes sinais você irá reconhecer-se.
Esta abordagem é ainda incorreta porque ocorre uma expansão na atividade do homem, não apenas na direção do passado, mas também em direção ao futuro. Assim como o passado, o futuro está também presente na personalidade. A perspectiva de vida que se abre diante do homem não é simplesmente um produto de uma "reflexo deixado para trás", mas também sua propriedade. Nisso reside a força e a verdade do que Makarenko escreveu sobre o significado das perspectivas próximas e das perspectivas mais distantes e de sua contribuição para o desenvolvimento. Isto vale também para os adultos. Segue uma parábola que ouvi uma vez de um criador de cavalos em Urals: Quando um cavalo, num caminho difícil, começa a tropeçar, então é necessário, não chicoteá-lo, mas levantar sua cabeça mais alto de modo que possa enxergar mais longe.
Uma personalidade é criada por circunstâncias objetivas, porém não de outra forma, senão através de todo o agregado da atividade que efetua suas relações com o mundo. As características da atividade também formam aquilo que determina o tipo de personalidade. Embora as questões da psicologia diferencial não sejam parte de nosso problema, a análise da formação da personalidade acaba levando ao problema de uma abordagem geral da investigação dessas questões.
A primeira base da personalidade que nenhuma concepção da psicologia diferencial pode ignorar reside nas riquezas das conexões do indivíduo com o mundo. Estas riquezas também traçam a distinção entre um homem cuja vida compreende um amplo círculo de atividades variadas e aquele professor de Berlim cujo "mundo se estende de Moabite a Kyonenik e que está trancado firmemente atrás dos portões de Hamburgo, sendo suas relações com esse mundo reduzidas a um mínimo, em função de sua posição deplorável na vida". Compreende-se que estamos falando de relações reais, e não de relações alienadas do homem, as quais o desafiam ou o subordinam a si. Psicologicamente, expressamos essas relações reais através de uma compreensão da atividade, seus motivos formadores de sentido, e não na linguagem de estímulos e de operações executadas. Devemos acrescentar aqui que as atividades que formam a base da personalidade incluem em si atividades teóricas também, e que, no curso do desenvolvimento, seu círculo pode, não só se expandir, mas também se contrair; na psicologia empírica, isto se chama "uma contração de interesses". Algumas pessoas não percebem essa contração; outros, como Darwin, reclamam disso como de uma calamidade.
As diferenças que existem aqui não são apenas quantitativas, expressando o grau de extensão com que o mundo se abre diante do homem no espaço e no tempo, no seu futuro. Atrás delas, residem as diferenças de conteúdo destas relações objetivas e sociais que são comandadas pelas condições objetivas da época, da nação e da classe. Por esta razão, a abordagem da tipologia das personalidades, mesmo quando considera apenas um desses parâmetros, dentro da terminologia corrente, não pode ser outra coisa, senão sócio-histórica. Porém, a análise psicológica não pára aí, pois as conexões da personalidade com o mundo podem ser, ou mais pobres do que aquelas que apresentam as condições objetivas, ou podem substancialmente ultrapassá-las.
Um segundo parâmetro igualmente importante da personalidade é o grau com que as atividades e seus motivos são arranjados hierarquicamente. Este grau pode ser muito diferente independentemente do fato de a base da personalidade que forma as conexões do sujeito com o meio ser estreita ou ampla. As hierarquias de motivos existem sempre em todos os níveis de desenvolvimento. São esses motivos que formam unidades relativamente independentes da vida da personalidade, e eles podem ser menores ou maiores, estar separados uns dos outros ou apresentarem-se dentro de uma esfera motivacional única. A quebra dessas unidades de vida que são arranjadas entre si hierarquicamente cria a constituição psicológica de uma pessoa que vive fragmentariamente, primeiro num "campo", depois noutro. Por outro lado, um grau superior de hierarquização de motivos é expressa no fato de que o ser humano parece medir suas ações com base em seus principais motivos, objetivos e, então, percebe que alguns desses estão em contradição direta com um dado motivo, e outros respondem diretamente a ele, e outros ainda se distanciam dele.
Quando o motivo principal que estimula a pessoa é levado em consideração, então estaremos falando, usualmente, de objetivo de vida. No entanto, será que este motivo é sempre adequadamente revelado para a consciência? Esta pergunta não pode ser respondida levianamente, uma vez que sua percepção na forma da compreensão da idéia não ocorre por si mesma, mas naquele movimento da percepção individual por meio do qual só o sujeito é capaz de interpretar o que lhe é interno através de um sistema de significados ou de conceitos assimilados. Já falamos a esse respeito e a respeito da luta que é travada na sociedade pela consciência do ser humano.
As unidades de significado da vida podem juntar-se como se formassem um rio, mas esta é uma caracterização figurativa. A questão que continua sendo a mais importante diz respeito ao lugar que é ocupado por aquele ponto no espaço extensivo que constitui a realidade genuína, mesmo que não seja sempre aparente para o indivíduo. A vida inteira do Rei Ambicioso esteve dirigida para um objetivo: adquirir o "poder do ouro". Este propósito foi atingido ("Quem sabe quantas abstenções amargas, paixões contidas, pensamentos pesados, dias de tormento, noites mal dormidas, tudo a esse preço?"), porém a vida acabou em nada e o objetivo pareceu sem sentido. Pushkin termina a tragédia do Rei Ambicioso com as palavras: "Uma época assustadora! Corações assustadores!"
Uma personalidade diferente com um destino diferente é criada quando o motivo-objetivo principal é elevado a um nível verdadeiramente humano e não enfraquece o homem, mas junta sua vida com a vida das pessoas, com o seu bem. Dependendo das circunstâncias que estejam determinadas ao ser humano, esses motivos de vida podem adquirir um conteúdo muito diferente e um significado objetivo diferente, porém só eles são capazes de criar uma justificação psicológica interna para sua existência, que envolve o sentido e a felicidade da vida. O ponto culminante deste caminho dá-se quando o homem se torna, nas palavras de Gorki, um homem do Homem.
Aqui nos aproximamos do parâmetro mais complexo da personalidade: o tipo geral da sua estrutura. A esfera motivacional do homem, mesmo no seu desenvolvimento superior, nunca se assemelha a uma pirâmide rígida. Pode ser deslocada, excêntrica com respeito ao espaço real da realidade histórica, e, então, a descrevemos como uma personalidade unilateral. Pode, por outro lado, desenvolver-se como uma personalidade multi-facetária, que inclui um círculo amplo de relações. Porém, tanto num como no outro caso, necessariamente reflete a não-conformidade objetiva dessas relações, as contradições entre elas, e a mudança de lugar que ocupam dentro dela.
A estrutura da personalidade representa, em si, uma configuração relativamente estável de linhas principais de motivação arranjadas hierarquicamente dentro dela. Estamos falando, aqui, a respeito do fato de que a "direção da personalidade" é descrita incompletamente - incompletamente, porque mesmo na presença de uma linha de vida predominante e distinta num homem, ainda assim não pode ser a única linha. O fato de servir o objetivo ou o ideal selecionado não exclui, nem extingue, absolutamente, outros relacionamentos de vida do homem, os quais, por sua vez, constituem motivos formadores de sentido. Falando figurativamente, a esfera motivacional da personalidade aparece, sempre, de forma multi-historiada, exatamente como aquele sistema objetivo de conceitos axiológicos que caracteriza a ideologia de uma dada sociedade, uma dada classe ou estrato social que é partilhado e assimilado (ou rejeitado) pelo homem.
As relações internas de linhas motivacionais centrais na atividade agregada do homem formam como se fosse um "perfil psicológico" geral da personalidade. Às vezes, ele assume a configuração de uma uniformidade, desprovida de picos reais; então, aquilo que é pequeno na vida o homem transforma em algo grande, e as coisas grandes ele não vê de forma alguma. Tal pobreza de personalidade pode, sob certas condições sociais, combinar-se com uma satisfação de um círculo bastante amplo de necessidades cotidianas. Neste fato, acidentalmente, reside aquele perigo que a moderna sociedade de consumo apresenta para a personalidade do ser humano.
Uma estrutura diferente de perfil psicológico de personalidade é criada pelo paralelismo de motivos de vida, freqüentemente combinados com o surgimento de picos imaginários formados apenas por "motivos familiares" - estereótipos de ideais, desprovidos de sentido pessoal. Esse tipo de estrutura é, no entanto, passageiro: desde o início, o paralelismo de linhas de várias relações de vida entra, subseqüentemente, em conexões internas. Isto ocorre inevitavelmente, porém não por si só: é um resultado do trabalho interno do qual falei antes, e que aparece na forma de um movimento específico da consciência.
As relações multifacetadas que o ser humano trava com a realidade são objetivamente contraditórias. Suas contradições geram conflitos que, sob certas circunstâncias, fixam-se e entram na estrutura da personalidade. Assim, uma separação da atividade teórica interna, que vem se dando historicamente, não só provoca um desenvolvimento unilateral da personalidade, como pode conduzir a desordens psicológicas, à cisão da personalidade em duas esferas, uma estranha à outra - a esfera de sua aparência na vida real e a esfera de sua aparência na vida que só existe como uma ilusão, apenas no pensamento autístico. É impossível descrever tal perturbação psicológica mais penetrantemente do que fez Dostoievski: a partir de uma existência desgraçada, preenchida com assuntos sem sentido, seu herói escapa para uma vida da imaginação, para os sonhos; diante de nós, apresentam-se como se fossem duas personalidades: uma, a personalidade de um homem que é humilhantemente covarde, um excêntrico que se fecha em sua toca; a outra, uma personalidade romântica e até heróica, aberta a todas as alegrias da vida. E esta é a vida do mesmo homem; por essa razão, inevitavelmente chega o momento em que os sonhos se dissipam e seguem-se anos de solidão deprimente, de melancolia, de desespero.
A personalidade do herói de "Brancas Noites" é, também, um fenômeno especial, senão único. Porém, através dessa especificidade fica clara uma verdade psicológica geral. Esta verdade é que a estrutura da personalidade não se deve, nem às riquezas de conexões entre o homem e o mundo, nem ao grau em que estas estejam arranjadas em hierarquias; sua caracterização reside, isto sim, na correlação dos diversos sistemas desenvolvidos pelas relações de vida que geram conflito entre elas. Às vezes, este conflito ocorre em formas externamente imperceptíveis, ordinariamente dramáticas, por assim dizer, e não perturba a harmonia da personalidade ou seu desenvolvimento; afinal, uma personalidade harmoniosa não é, de forma alguma, uma personalidade que não conhece nenhum tipo de luta interna. Às vezes, entretanto, essa luta interna se torna a coisa principal que determina toda a constituição do homem. Essa é a estrutura da personalidade trágica.
Assim, a análise teórica permite um isolamento de, pelo menos, três parâmetros básicos da personalidade: a quantidade de conexões do homem com o mundo, o grau com que estas são arranjadas em hierarquias, e sua estrutura geral. Naturalmente, esses parâmetros não fornecem a tipologia psicológica diferencial; só podem servir como um esqueleto, o qual ainda precisa ser lavrado com um conteúdo vivo, concreto-histórico. Porém, esse é um problema para uma investigação especial. Não ocorrerá, no entanto, sob essas circunstâncias, uma substituição em favor da psicologia sociológica, não se perderá o "psicológico" da personalidade?
Esta questão é levantada porque a abordagem da qual falamos difere da abordagem convencional, de viés antropológico (ou cultural- antropológico), da psicologia da personalidade, a qual considera a personalidade como sendo um indivíduo cujos traços psicofisiológicos e psicológicos são transformados no processo de sua adaptação ao ambiente social. Nossa análise, ao contrário disso, requer a consideração da personalidade como uma nova qualidade gerada pelo movimento dos sistemas das relações sociais objetivas para as quais sua atividade é atraída. Assim, a personalidade não parece mais ser o resultado de uma acomodação direta de influências externas; apresenta-se como aquilo que o homem faz de si próprio, confirmando sua vida humana. Ele a confirma nos afazeres e contatos cotidianos, assim como nas pessoas a quem oferece algo de si mesmo em meio às barricadas das lutas de classes; também nos campos da batalha por seu país, e, às vezes, ele conscientemente a confirma até pelo preço de sua vida física.
No que concerne às "subestruturas psicológicas da personalidade", tais como o temperamento, necessidades e inclinações, experiências e interesses emocionais, objetivos, hábitos, costumes, características morais etc., entende-se que de forma alguma desaparecem. Apenas se manifestam de formas diferentes: ou como condições, ou em suas origens e transformações, em mudanças de seu lugar na personalidade, as quais ocorrem no processo de seu desenvolvimento.
Dessa forma, as características do sistema nervoso sem dúvida representam traços ao mesmo tempo individuais e bastante estáveis; esses traços, entretanto, não formam, de jeito nenhum, a personalidade humana. Em suas ações, o ser humano, consciente e inconscientemente, lida com os traços de sua constituição, do mesmo modo com que lida com as condições externas de suas ações e com os meios que tem para realizá-las. Ao caracterizarem o homem como um ser natural, entretanto, os traços não podem exercer o papel de forças que determinam a motivação da atividade e da formação de objetivos que estão se formando nele. O único problema real - embora surja aqui secundariamente -, o problema da psicologia da personalidade, é um problema da formação de ações do sujeito dirigida para suas próprias características inatas ou adquiridas, as quais não entram diretamente na caracterização psicológica de sua esfera da personalidade.
Menos ainda podem aqueles fatores ou "modos" de personalidade, tais como necessidades e propósitos, ser considerados subestruturas. Eles só aparecem quando abstraídos da atividade do sujeito na qual suas metamorfoses ocorrem; porém, não são essas metamorfoses que criam a personalidade; ao contrário, elas é que são engendradas pelo movimento do desenvolvimento da personalidade. Este movimento está sujeito à mesma fórmula que descreve a transformação das necessidades humanas. Começa com a ação do sujeito no sentido de sustentar sua existência; leva à situação em que o sujeito sustenta sua existência com o fim de agir, de levar adiante os afazeres de sua vida, de realizar seu propósito humano. Essa transformação, que conclui o estágio do estabelecimento da personalidade, também revela as perspectivas ilimitadas para seu desenvolvimento.
Uma vez satisfeitas as necessidades objeto-materiais "para si", sua satisfação conduz a sua redução ao nível de condições de vida, que são tanto menos percebidas pelo homem, quanto mais se tornem habituais. Por essa razão, a personalidade não pode se desenvolver dentro do quadro da necessidade; seu desenvolvimento, necessariamente, pressupõe uma substituição das necessidades pela criação, a qual, sozinha, não conhece limites.
Este fato precisa ser enfatizado? Claro que precisa, uma vez que a tendência ingênua e, na essência, vestigial às vezes representa uma transição para o princípio "de acordo com a necessidade" , quase como uma transição para a sociedade de consumo superpróspera. Perde-se de vista, aqui, o fato de que é necessário, também, atravessar uma transformação do consumo material, o fato de que a possibilidade de todos satisfazerem essas necessidades esgota o valor intrínseco das coisas que os satisfazem e elimina aquela função artificial que preenchem na sociedade da propriedade privada - uma função de confirmar, através delas, o próprio homem, seu próprio prestígio.
A última questão teórica que vou considerar é a questão de perceber-se como uma personalidade. Em psicologia, trata-se de uma questão de autoconsciência, uma questão do processo de seu desenvolvimento. Há um grande número de trabalhos dedicados a uma investigação deste processo. Eles contêm dados detalhados que caracterizam os estágios de formação, na ontogênese, de representações a respeito de si próprio. Estamos falando da formação do assim chamado esquema corporal, os potenciais para localizar as sensações receptivas internas de cada um, sobre o desenvolvimento da cognição do aspecto externo próprio, reconhecendo-se a si num espelho ou numa fotografia. Cuidadosamente observado é o processo do desenvolvimento, nas crianças, da avaliação dos outros e de si próprias, no qual as características físicas são isoladas primeiro e, então, características psicológicas e morais são adicionadas a essas. Uma alteração que se desenvolve paralelamente a esta reside no fato de que a caracterização parcial dos outros e de si mesma cede espaço para uma caracterização que é mais completa, que compreende o ser humano como um todo com seus traços característicos essenciais. Este é o quadro empírico do desenvolvimento do auto-reconhecimento, do reconhecimento das características individuais, das propriedades e dos potenciais próprios. Porém, será que este quadro responde a questão do desenvolvimento da autoconsciência, da percepção do "eu"?
Sim, se compreendermos a auto-percepção apenas como o conhecimento de si mesmo. Como toda a cognição, a auto-cognição começa com o isolamento das propriedades superficiais externas e é resultado de comparação, análise e generalização, de isolar-se o essencial. Porém, a consciência individual não é apenas conhecimento, não é apenas um sistema de conhecimento ou de conceitos adquiridos. Sua propriedade é um movimento interno que reflete o movimento da vida real do próprio sujeito, o qual ela media; já vimos que somente nesse movimento o conhecimento encontra sua relevância com respeito ao mundo objetivo, e sua eficácia. A questão é também a mesma quando o objeto da consciência são os traços, características e ações ou condições do próprio sujeito; neste caso, também é necessário distinguir entre conhecer sobre si mesmo e conhecer-se.
O conhecimento, as representações a respeito de si mesmo começam a se acumular já desde a tenra infância; em formas imperceptíveis, evidentemente também existem nos animais superiores. O auto-conhecimento, a percepção do próprio "eu" é um outro assunto. É o resultado, o produto da formação do homem enquanto personalidade. Representando em si a conversão fenomenológica de formas de relações reais entre a personalidade e sua expressividade, aparece como sua causa e assunto.
O problema psicológico do "eu" surge assim que levantamos a questão: "com que tipo de realidade se relaciona tudo o que conhecemos sobre nós mesmos", e "tudo o que conhecemos sobre nós mesmos se relaciona com esta realidade?" Como acontece que em uma realidade eu encontro meu "eu" e em outra eu o perco (até dizemos "não sou eu mesmo...")? A não-correspondência entre o "eu" e aquilo que o sujeito representa como um objeto de seu próprio conhecimento sobre sua pessoa é psicologicamente evidente. Além disso, a psicologia que se origine de uma posição orgânica não consegue fornecer uma explicação científica para esta não-coincidência. Se o problema do "eu" é proposto por ela, então é apenas na forma de uma afirmação da existência de uma instância especial, dentro da personalidade - um homenzinho dentro do coração que, no momento adequado, "mexe os fios". Compreende-se que, ao rejeitar a possibilidade de atribuir substancialidade a essa instância especial, a psicologia acaba por fugir do problema, dissipando o "eu" na estrutura da personalidade, assim como suas interações com o mundo circundante. Apesar disso tudo, ele ainda permanece, revelando-se agora na forma de um impulso para penetrar no mundo, na necessidade de "atualizar-se" que está dentro do indivíduo.
Assim, o problema da autoconsciência da personalidade, da percepção do "eu" continua sem solução na psicologia. E não se trata, de forma alguma, de um problema imaginário; ao contrário, é um problema de importância vital que coroa a psicologia da personalidade.
V.I.Lenin escreveu a respeito do que distingue "simplesmente um escravo" de um escravo que se reconcilia com sua posição e de um escravo que se rebelou. Esta diferença reside, não em conhecer os próprios traços individuais, mas em perceber-se num sistema de relações sociais. Perceber o próprio "eu" não significa nada mais que isso.
Acostumamo-nos a pensar que o homem representa um centro no qual se focalizam influências exteriores e do qual se irradiam linhas de suas conexões, de suas interações com o mundo exterior, que esse centro, dada a consciência, é realmente este "eu". Porém, não é absolutamente assim que se coloca essa questão. Vimos que as atividades multifacetárias do sujeito são entrelaçadas e conectadas em nós através das relações objetivas, sociais por natureza, nas quais ele necessariamente entra. Estes nós, suas hierarquias, também formam aquele "centro secreto da personalidade", que chamamos de "eu"; em outras palavras, este centro não reside no indivíduo, sob a superfície de sua pele, mas em seu ser.
Assim, a análise da atividade e da consciência conduz inevitavelmente à rejeição da psicologia tradicional, empírica, da compreensão egocêntrica, "ptolomaica" do homem, em favor de uma visão "coperniciana", que considere o "eu" humano de forma incorporada a um sistema geral de interconexões de pessoas na sociedade. É apenas necessário enfatizar, aqui, que a inclusão no sistema não significa, absolutamente, a dissolução nele, mas, ao contrário, significa encontrar e revelar dentro dele a força da ação pessoal.
Em nossa literatura psicológica, as palavras de Marx são freqüentemente citadas: o ser humano não nasce como um filósofo fichtiano, o homem olha para outro homem como que para um espelho e é somente ao comportar-se voltado a ele, como se se comportasse para consigo próprio, que ele começa a se comportar para consigo como para com um homem. Estas palavras são freqüentemente compreendidas apenas no sentido de que o homem forma sua imagem de acordo com a imagem de um outro homem. Porém, nestas palavras está expresso um significado muito mais profundo. A fim de entender isto, basta restabelecer seu contexto.
"Em algumas relações, Marx começa, no comentário citado,"o homem se assemelha a uma mercadoria." Que relações são essas? Evidentemente são aquelas relações discutidas no texto que acompanha o comentário citado. São as relações de custo das mercadorias. Estas relações são baseadas no fato de que o corpo natural de uma mercadoria torna-se a forma e reflete o custo de outra mercadoria, ou seja, são relações de um tipo tão superficial, que nunca se penetra no corpo da mercadoria. Marx termina assim esta nota: "Além disso, até o Paulo como tal, em toda a sua fisicalidade paulina, torna-se para ele uma forma de revelação do gênero 'homem'". Entretanto, para Marx, o homem como ser genérico não é a espécie biológica Homo sapiens, mas uma sociedade humana. Nele, em suas formas personificadas, o homem também se vê como um homem.
O problema do "eu" humano pertence a uma série de problemas que têm sido negligenciados pela análise psicológica científica. O acesso a ele é obstruído por muitas representações falsas compiladas na psicologia no nível empírico da investigação da personalidade. Nesse nível, a personalidade aparece inevitavelmente como uma individualidade complicada, porém não transformada, pela sociedade, isto é, encontrando nela novas propriedades sistemáticas. Porém, é exatamente nelas, nas suas propriedades "supra-sensuais", que ele incorpora um sujeito para a ciência psicológica.
Inclusão | 17/11/2003 |