A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky

V. I. Lénine

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Como Kautsky Transformou Marx Num Vulgar Liberal


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A questão fundamental que Kautsky aborda na sua brochura é a questão do conteúdo essencial da revolução proletária, designadamente a questão da ditadura do proletariado. E uma questão da maior importância para todos os países, particularmente para os avançados, particularmente para os beligerantes, particularmente no momento actual. Pode dizer-se sem exagero que é a questão principal de toda a luta de classe proletária. Por isso é indispensável determo-nos nela com atenção.

Kautsky coloca a questão do seguinte modo:

«A oposição de ambas as correntes socialistas» (isto é, dos bolcheviques e dos não bolcheviques) é «a oposição de dois métodos radicalmente diferentes: o democrático e o ditatorial (p. 3).

Observemos de passagem que, chamando socialistas aos não bolcheviques da Rússia, isto é, aos mencheviques[N6] e socialistas-revolucionários[N7], Kautsky guia-se pela sua denominação, isto é, pela palavra e não pelo lugar efectivo que ocupam na luta do proletariado contra a burguesia. Bela maneira de conceber e aplicar o marxismo! Mas falaremos disso adiante com mais pormenor.

Por agora há que tomar o principal: a grande descoberta de Kautsky sobre a «oposição radical» entre os «métodos democrático e ditatorial». É este o nó da questão. É esta a essência da brochura de Kautsky. E trata-se de uma confusão teórica tão monstruosa, de uma tão completa renegação do marxismo, que é preciso reconhecer que Kautsky ultrapassou em muito Bernstein.

A questão da ditadura do proletariado é a questão da relação do Estado proletário com o Estado burguês, da democracia proletária com a democracia burguesa. Pareceria que isto é claro como o dia. Mas Kautsky, exactamente como um professor de liceu ressequido pela repetição de manuais de história, volta-se obstinadamente de costas para o século XX e de frente para o século XVIII, e mastiga e rumina pela centésima vez, de modo incrivelmente aborrecido, numa longa sucessão de parágrafos, velharias sobre a relação da democracia burguesa com o absolutismo e a Idade Média!

Na verdade, é exactamente como se, adormecido, mastigasse um trapo!

Porque isto significa não compreender absolutamente nada do porquê das coisas. Só podem provocar sorrisos os esforços de Kautsky para apresentar as coisas como se houvesse pessoas que pregassem «o desprezo da democracia» (p. 11), etc. Kautsky tem de esbater e embrulhar a questão com futilidades como estas, pois ele coloca a questão como os liberais, falando da democracia em geral e não da democracia burguesa. Evita mesmo este conceito preciso, de classe, e procura falar da democracia «pré-socialista». Quase um terço da brochura, 20 páginas em 63, encheu-as o nosso charlatão com um palavreado muito agradável à burguesia, porque equivale a adornar a democracia burguesa e a esbater a questão da revolução proletária.

Mas o título da brochura de Kautsky é contudo A Ditadura do Proletariado. Toda a gente sabe que esta é precisamente a essência da doutrina de Marx. E Kautsky, depois de todo esse palavreado fora do tema, é obrigado a citar as palavras de Marx sobre a ditadura do proletariado.

Como o fez o «marxista» Kautsky, isto é já uma verdadeira comédia! Oiçam:

«Esse ponto de vista» (que Kautsky qualifica de desprezo pela democracia) «assenta numa só palavra de Karl Marx», é o que diz textualmente na p. 20. E na p. 60 repete-se isto, mesmo na forma de que (os bolcheviques) «recordaram a tempo a palavrinha» (literalmente assim!! des Wörtchens) «sobre a ditadura do proletariado, que Marx empregou uma vez em 1875 numa carta».

Eis essa «palavrinha» de Marx:

«Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista encontra-se o período da transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período corresponde também um período político de transição, e o Estado deste período não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado.»[N8]

Em primeiro lugar, chamar a este célebre raciocínio de Marx, que resume toda a sua doutrina revolucionária, «uma só palavra», ou até «palavrinha», é troçar do marxismo, é renegá-lo completamente. Não se deve esquecer que Kautsky conhece Marx quase de cor e que, a julgar por todos os escritos de Kautsky, tem na mesa de trabalho ou na cabeça uma série de gavetinhas de madeira nas quais tudo o que Marx escreveu está dividido com a máxima ordem e cuidado para citação. Kautsky não pode deixar de saber que, tanto Marx como Engels, tanto em cartas como em obras impressas, falaram muitas vezes da ditadura do proletariado, tanto antes como particularmente depois da comuna. Kautsky não pode deixar de saber que a fórmula «ditadura do proletariado» não é mais que uma formulação historicamente mais concreta e cientificamente mais precisa da tarefa do proletariado de «quebrar» a máquina de Estado burguesa, da qual (tarefa) tanto Marx como Engels, tendo em conta a experiência das revoluções de 1848 e mais ainda da de 1871, falam de 1852 a 1891, durante quarenta anos.

Como explicar esta monstruosa deturpação do marxismo pelo letrado em marxismo Kautsky? Se se falar das bases filosóficas deste fenómeno, tudo se reduz a uma substituição da dialéctica pelo eclectismo e pela sofística. Kautsky é um grande mestre neste género de substituição. Se se falar no terreno da política prática, tudo se reduz a servilismo perante os oportunistas, isto é, ao fim e ao cabo, perante a burguesia. Progredindo cada vez mais rapidamente desde o começo da guerra, Kautsky atingiu o virtuosismo nesta arte de ser marxista em palavras e lacaio da burguesia de facto.

Convencemo-nos ainda mais disso quando examinamos a notável «interpretação» por Kautsky da «palavrinha» de Marx sobre a ditadura do proletariado. Oiçam:

«Marx, infelizmente, não indicou de forma mais pormenorizada como concebia esta ditadura ...» (Uma frase completamente mentirosa dum renegado, porque Marx e Engels deram precisamente uma série de indicações muito detalhadas que o letrado em marxismo Kautsky elude intencionalmente.) «... Literalmente, a palavra ditadura significa supressão da democracia. Mas, naturalmente, esta palavra, literalmente, significa também o poder pessoal de uma só pessoa, que não está amarrada por nenhumas leis. Poder pessoal que difere do despotismo na medida em que não é entendido como instituição estatal permanente, mas como medida transitória da emergência.

«A expressão 'ditadura do proletariado', Consequentemente, não a ditadura de uma pessoa, mas de uma classe, exclui já que Marx, ao utilizá-la, tivesse aqui em vista a ditadura no sentido literal da palavra.

«Não falava aqui de uma forma de governo, mas de uma situação que necessariamente deve produzir-se em toda a parte onde o proletariado conquistou o poder político. Que Mar não tinha aqui em vista a forma de governo é já demonstrado pelo facto de que ele sustentava a ideia de que na Inglaterra e na América a transição podia realizar-se pacificamente, portanto, por via democrática» (p. 20)

Citámos intencionalmente todo este raciocínio para que o leitor possa ver claramente os processos de que se serve o «teórico»Kautsky.

Kautsky quis abordar a questão de modo a começar por uma definição da «palavra» ditadura.

Muito bem. Cada qual tem o direito sagrado de abordar as questões como quiser. Só é preciso distinguir a abordagem séria e honesta da questão da abordagem desonesta. Quem quisesse tratar seriamente o problema com este método de abordar a questão deveria dar a sua definição da «palavra». Então a questão estaria colocada de modo claro e directo. Kautsky não o faz. «Literalmente — escreve —, a palavra ditadura significa supressão da democracia.»

Em primeiro lugar, isto não é uma definição. Se Kautsky desejava evitar a definição do conceito de ditadura, para que escolheu essa forma de abordar a questão?

Em segundo lugar, isto é claramente falso. É natural para um liberal falar de «democracia» em geral. Um marxista nunca se esquecerá de colocar a questão: «para que classe?» Toda a gente sabe, por exemplo — e o «historiador» Kautsky também o sabe —, que as insurreições e mesmo as fortes agitações dos escravos na antiguidade revelavam imediatamente a essência do Estado antigo como ditadura dos escravistas. Essa ditadura suprimia a democracia entre os escravistas, para eles? Toda a gente sabe que não.

O «marxista» Kautsky disse um absurdo monstruoso e uma falsidade, pois «esqueceu-se» da luta de classes ...

Para transformar a afirmação liberal e mentirosa feita por Kautsky numa afirmação marxista e verdadeira, é preciso dizer: a ditadura não significa necessariamente a supressão da democracia para a classe que exerce essa ditadura sobre as outras classes, mas significa necessariamente a supressão (ou uma restrição muito essencial, o que é também uma das formas de supressão) da democracia para a classe sobre a qual ou contra a qual se exerce a ditadura.

Mas por mais verdadeira que seja esta afirmação, ela não define a ditadura.

Examinemos a seguinte frase de Kautsky:

«... Mas, naturalmente, esta palavra, literalmente, significa também o poder pessoal de uma só pessoa, que não está amarrada por nenhumas leis...»

Como um cachorro cego que mete o nariz ao acaso ora aqui ora ali, Kautsky tropeçou aqui por acaso com uma ideia justa (a saber: que a ditadura é um poder que não está amarrado por nenhumas leis) mas, contudo, não deu uma definição da ditadura e disse, além disso, uma falsidade histórica evidente: que a ditadura significa o poder de uma só pessoa. Isto até gramaticalmente é inexacto, porque a ditadura pode ser exercida tanto por um punhado de pessoas como por uma oligarquia, por uma classe, etc.

Kautsky indica seguidamente a diferença entre ditadura e despotismo, mas, embora a sua afirmação seja claramente falsa, não nos deteremos nela, pois isto não tem nada a ver com a questão que nos interessa. É conhecida a inclinação de Kautsky para se voltar do século XX para o século XVIII, e do século XVIII para a antiguidade, e esperamos que quando o proletariado alemão atingir a ditadura, terá em conta essa inclinação e nomeará Kautsky, digamos, professor de história antiga num liceu. Esquivar-se a uma definição da ditadura do proletariado por meio de filosofices sobre o despotismo é ou extrema estupidez ou falcatrua muito pouco hábil.

Em resumo, vemos que Kautsky, que se propunha falar de ditadura, disse muitas coisas notoriamente falsas mas não deu nenhuma definição! Em vez de confiar nas suas faculdades intelectuais, poderia ter recorrido à sua memória e retirado das «gavetinhas» todos os casos em que Marx fala de ditadura. Teria obtido de certeza ou a seguinte definição ou outra que, no fundo, coincidiria com ela:

A ditadura é um poder que se apoia directamente na violência e não está amarrado por nenhumas leis.

A ditadura revolucionária do proletariado é um poder conquistado e mantido pela violência do proletariado sobre a burguesia, um poder que não está amarrado por nenhumas leis.

E esta simples verdade, verdade clara como a luz do dia para qualquer operário consciente (um representante da massa e não da camada superior da canalha filistina subornada pelos capitalistas, como são os sociais-imperialistas de todos os países), esta verdade evidente para qualquer representante dos explorados que lutam pela sua libertação, esta verdade indiscutível para qualquer marxista, é preciso «conquistá-la pela guerra» ao doutíssimo senhor Kautsky! Como explicar isto? Pelo espírito de servilismo de que estão penetrados os chefes da II Internacional, transformados em desprezíveis sicofantas ao serviço da burguesia.

Primeiro Kautsky fez batota, declarando, coisa evidentemente absurda, que no seu sentido literal a palavra ditadura significa ditadura de uma só pessoa, e depois — na base desta batota! — declara que, «Consequentemente, em Marx as palavras sobre a ditadura de uma classe não têm sentido literal (mas um sentido segundo o qual ditadura não significa violência revolucionária, mas uma conquista «pacífica» da maioria sob a «democracia» burguesa, notai bem).

É preciso distinguir, não é verdade, entre «situação» e «forma de governo». Distinção espantosamente profunda, como se distinguíssemos entre a «situação» da idiotice de uma pessoa que raciocina sem inteligência e a «forma» das suas idiotices.

Kautsky precisa de interpretar a ditadura como «situação de dominação» (é a expressão textual que ele emprega na página seguinte, página 21), porque então desaparece a violência revolucionária, desaparece a revolução violenta. A «situação de dominação» é a situação em que se encontra qualquer maioria sob .... a «democracia» ! Com este truque de trapaceiro, a revolução felizmente desaparece!

Mas a trapaça é demasiado grosseira e não salvará Kautsky. Que a ditadura pressupõe e significa uma «situação», desagradável para um renegado, de violência revolucionária de uma classe sobre outra, isto «mete-se pelos olhos dentro». O absurdo da distinção entre «situação» e «forma de governo» salta à vista. Falar aqui de forma de governo é triplamente estúpido, porque qualquer criança sabe que monarquia e república são formas de governo diferentes. É preciso demonstrar ao senhor Kautsky que ambas estas formas de governo, como todas as «formas de governo» transitórias sob o capitalismo, não são mais que variedades do Estado burguês, isto é, da ditadura da burguesia.

Enfim, falar de formas de governo é uma falsificação não só estúpida mas também grosseira de Marx, que fala aqui com toda a clareza da forma ou tipo de Estado, e não de forma de governo.

A revolução proletária é impossível sem a destruição violenta da máquina de Estado burguesa e a sua substituição por uma nova que, segundo as palavras de Engels, «não é já um Estado no sentido próprio»[N9].

Kautsky precisa de escamotear e encobrir tudo isto — assim o exige a sua posição de renegado.

Vejam a que miseráveis subterfúgios ele recorre.

Primeiro subterfúgio. «... Que Marx não tinha aqui em vista a forma de governo, é demonstrado pelo facto de que ele considerava possível na Inglaterra e na América uma transformação pacífica, isto é, por via democrática ...»

A forma de governo não tem absolutamente nada a ver com isto, porque há monarquias, que não são típicas do Estado burguês, que se distinguem, por exemplo, pela ausência de camarilha militarista, e há repúblicas, absolutamente típicas neste aspecto, por exemplo, com camarilha militarista e burocracia. Este é um facto histórico e político conhecido, e Kautsky não conseguirá falsificá-lo.

Se Kautsky quisesse raciocinar séria e honestamente, teria perguntado a si próprio: existem leis históricas relativas à revolução e que não conheçam excepções? A resposta seria: não, não existem tais leis. Estas leis têm em vista apenas aquilo que é típico, aquilo a que Marx uma vez chamou «ideal», no sentido de capitalismo médio, normal, típico.

Continuemos. Existia nos anos 70 alguma coisa que fizesse da Inglaterra ou da América uma excepção no aspecto que examinamos? Para qualquer pessoa minimamente familiarizada com as exigências da ciência no campo das questões históricas, é evidente que é necessário colocar esta questão. Não a colocar significa falsificar a ciência, significa brincar aos sofismas. E uma vez colocada esta questão, a resposta não oferece quaisquer dúvidas: a ditadura revolucionária do proletariado é violência contra a burguesia; esta violência torna-se particularmente necessária, como muito pormenorizadamente e muitas vezes explicaram Marx e Engels (particularmente em A Guerra Civil em França e no seu prefácio), pela existência da camarilha militarista e da burocracia. Precisamente estas instituições, precisamente na Inglaterra e na América e precisamente nos anos 70 do século XIX, quando Marx fez a sua observação, não existiam! (Mas agora existem tanto na Inglaterra como na América.)

Kautsky precisa literalmente de fazer trapaças a cada passo para esconder que é um renegado!

E vejam como mostrou aqui sem querer as orelhas de burro: escreveu: «pacificamente, isto é, por via democrática» !!

Ao definir a ditadura, Kautsky fez todos os esforços para esconder ao leitor o traço fundamental deste conceito: a violência revolucionária. E agora a verdade veio ao de cima: trata-se da oposição entre revolução pacífica e revolução violenta.

Aqui é que está a questão. Todos os subterfúgios, os sofismas, as falsificações de trapaceiro são necessários a Kautsky para se esquivar à revolução violenta, para esconder que a renega, que se passa para o lado da política operária liberal, isto é, para o lado da burguesia. Aqui é que está a questão.

O «historiador» Kautsky falsifica a história com tanto descaramento que «esquece» o fundamental: o capitalismo pré-monopolista, cujo apogeu corresponde precisamente aos anos 70 do século XIX, em consequência das suas particularidades económicas essenciais, que na Inglaterra e na América se manifestavam de um modo particularmente típico, distinguia-se por um apego relativamente maior à paz e à liberdade. Mas o imperialismo, isto é, o capitalismo monopolista, que só atingiu a plena maturidade no século XX, pelas suas particularidades económicas essenciais, distingue-se por um apego mínimo à paz e à liberdade, por um desenvolvimento máximo da camarilha militarista em toda a parte. «Não notar» isto ao examinar em que medida uma revolução pacífica ou violenta é típica ou provável, é descer ao nível do mais vulgar lacaio da burguesia.

Segundo subterfúgio. A Comuna de Paris foi uma ditadura do proletariado, e foi eleita por sufrágio universal, isto é, sem privar a burguesia do seu direito de voto, isto é, «democraticamente». E Kautsky triunfa:

«... A ditadura do proletariado foi para Marx» (ou segundo Marx) «uma situação que decorre necessariamente da democracia pura se o proletariado constitui a maioria» (bei überwiegendem Proletariat, S. 21).

Este argumento de Kautsky é tão divertido que na verdade se sente um verdadeiro embarras de richesses (dificuldade devido à abundância . . . de objecções). Em primeiro lugar, é sabido que a flor, o estado-maior, as camadas superiores da burguesia, fugiram de Paris para Versalhes. Em Versalhes estava o «socialista» Louis Blanc, o que prova, diga-se de passagem», que é uma mentira a afirmação de Kautsky de que na Comuna teriam participado «todas as tendências» do socialismo. Não é ridículo apresentar como «democracia pura» com «sufrágio universal» a divisão dos habitantes de Paris em dois campos beligerantes, num dos quais estava concentrada toda a burguesia militante, politicamente activa?

Em segundo lugar, a Comuna lutou contra Versalhes, como governo operário da França contra o governo burguês. Que tem que ver aqui isso de «democracia pura» e de «sufrágio universal» quando Paris decidia o destino da França? Quando Marx considerava que a Comuna tinha cometido um erro não tomando o Banco[N10], que pertencia a toda a França, partia Marx dos princípios e da prática da «democracia pura»?

Na verdade é visível que Kautsky escreve num país em que a polícia proíbe as pessoas de rir «juntas», pois doutro modo Kautsky já teria sido morto pelos risos.

Em terceiro lugar, permitir-me-ei recordar respeitosamente ao senhor Kautsky, que sabe de cor Marx e Engels, a seguinte apreciação de Engels sobre a Comuna do ponto de vista ... da «democracia pura»:

«Esses senhores» (os antiautoritários) «viram alguma vez uma revolução? Uma revolução é, indubitavelmente, a coisa mais autoritária que é possível. Uma revolução é um acto por meio do qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra parte por meio de espingardas, baionetas e canhões, isto é, meios extraordinariamente autoritários. E o partido vitorioso é necessariamente obrigado a manter o seu domínio pelo terror que as suas armas inspiram aos reaccionários. Se a Comuna de Paris não se tivesse apoiado na autoridade do povo armado contra a burguesia ter-se-ia mantido mais do que um só dia? Não teremos razão, pelo contrário, para censurar a Comuna por ter utilizado demasiado pouco esta autoridade?»[N11]

Aí está a «democracia pura» ! Como Engels teria escarnecido do vulgar filisteu, do «social-democrata» (no sentido francês dos anos 40 e europeu dos anos 1914-1918) que se tivesse lembrado de falar em geral de «democracia pura» numa sociedade dividida em classes!

Mas basta. É coisa impossível enumerar todos os absurdos a que chega Kautsky, porque cada uma das suas frases é um abismo sem fundo de renegação.

Marx e Engels analisaram muito pormenorizadamente a Comuna de Paris, e mostraram que o seu mérito consistiu na tentativa de quebrar, demolir «a máquina de Estado pronta»[N12]. Marx e Engels atribuíram tal importância a esta conclusão que em 1872 apenas introduziram esta emenda no programa «obsoleto» (em algumas partes) do Manifesto Comunista [13]. Marx e Engels mostraram que a Comuna suprimiu o exército e o funcionalismo, suprimiu o parlamentarismo, destruiu a «excrescência parasitária que é o Estado», etc, mas o sapientíssimo Kautsky, tendo enfiado o barrete de dormir, repete aquilo que os professores liberais disseram mil vezes: as fábulas sobre a «democracia pura».

Não foi em vão que Rosa Luxemburg disse em 4 de Agosto de 1914 que a social-democracia alemã é agora um cadáver malcheiroso[N14].

Terceiro subterfúgio. «Se falamos da ditadura como forma de governo, não podemos falar de ditadura de uma classe. Pois uma classe, como já indicámos, pode apenas dominar, mas não governar . . .» São «organizações» ou «partidos» que governam.

Você confunde, você confunde descaradamente, senhor «conselheiro da confusão»! A ditadura não é uma «forma de governo», isso é um absurdo ridículo. E Marx não fala de «forma de governo», mas de forma ou tipo de Estado. Isto é completamente diferente, completamente diferente. É também absolutamente inexacto que uma classe não pode governar: Tal absurdo só o pode dizer um «cretino parlamentar», que nada vê além do parlamento burguês, que nada nota além dos «partidos governantes». Qualquer país europeu pode mostrar a Kautsky exemplos de governo exercido pela sua classe dominante, por exemplo, os latifundiários na Idade Média, apesar da sua insuficiente organização.

Resumindo: Kautsky deturpou da forma mais inaudita o conceito de ditadura do proletariado, transformando Marx num vulgar liberal, isto é, desceu ele próprio ao nível do liberal que lança frases vulgares acerca da «democracia pura», escondendo e esbatendo o conteúdo de classe da democracia burguesa, esquivando-se acima de tudo à violência revolucionária por parte da classe oprimida. Quando Kautsky «interpretou» o conceito de «ditadura revolucionária do proletariado» de modo a fazer desaparecer a violência revolucionária por parte da classe oprimida contra os opressores, de facto bate o recorde mundial da deformação liberal de Marx. O renegado Bernstein não é mais do que um fedelho em comparação com o renegado Kautsky.


Notas de fim de tomo:

[N6] Mencheviques: partidários da corrente oportunista pequeno-burguesa na social-democracia russa. No II Congresso do POSDR, realizado cm 1903, deu-se a cisão do partido em duas alas: a revolucionária, formada pelos partidários de Lénine, e a oportunista, dirigida por Mártov. Na eleição dos órgãos centrais do partido, os sociais-democratas revolucionários obtiveram a maioria dos votos, enquanto os oportunistas ficaram em minoria. Daí a origem dessa designação: «bolcheviques» (da palavra russa bokhinstvó-maioria); «mencheviques» (da palavra russa menchinstvó-minoria).
Os mencheviques pronunciavam-se contra o programa revolucionário do partido, contra a hegemonia do proletariado na revolução, contra a aliança da classe operária e dos camponeses, a favor de um compromisso com a burguesia liberal.
Depois da vitória da revolução democrática burguesa em Fevereiro de 1917, os mencheviques fizeram parte do Governo Provisório burguês, apoiando a política imperialista e antipopular deste governo e actuando contra a revolução socialista que se preparava. (retornar ao texto)

[N7] Socialistas-revolucionários: partido pequeno-burguês, que surgiu na Rússia, nos fins de 1901, inícios de 1902, em resultado da fusão de vários grupos e círculos populistas. Durante a Primeira Guerra Mundial a maior parte dos socialistas-revolucionários adoptou uma posição social-chauvinista. Após a vitória da revolução democrática burguesa de Fevereiro de 1917, os socialistas-revolucionários, juntamente com os mencheviques e os democratas--constitucionalistas,   serviram   de   principal   apoio   ao   Governo   Provisório   contra­revolucionário burguês-latifundiário, e os chefes do partido eram membros desse governo. Depois da revolução socialista de Outubro os socialistas-revolucionários realizaram uma actividade contra-revolucionária e subversiva, apoiaram activamente os intervencionistas e os generais guardas brancos, organizaram actos terroristas contra personalidades do Estado soviético e do Partido Comunista. (retornar ao texto)

[N8] Karl Marx, Crítica do Programa de Gotba. In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 19, S. 28. (retornar ao texto)

[N9] Friedrich Engels, Carta a A. Bebel de 18-28 de Março de 1875. In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 19, S.6. (retornar ao texto)

[N10] Este pensamento foi expresso por Friedrich Engels na Introdução à obra de K. Marx A Guerra Civil em França. Ver Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 22, S. 196. (retornar ao texto)

[N11] Friedrich Engels, Da Autoridade. In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 18, S. 308. (retornar ao texto)

[N12] Ver a carta de K. Marx e L. Kugelmann, de 12 de Abril de 1871, a obra de K. Marx A GuerraCivil em França, redigida em 1891. In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 33, S. 205; Bd. 17, S. 336; Bd. 22, S. 197-198. (retornar ao texto)

[N13] Ver o prefácio de K. Marx e F. Engels à edição alemã do Manifesto do Partido Comunista. In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 18, S. 96. (retornar ao texto)

[N14] A 4 de Agosto de 1914 o grupo social-democrata do Reichstag alemão votou a concessão de créditos de guerra ao governo do Kaiser. (retornar ao texto)

Inclusão 15/10/2007