A Tarefa Principal dos Nossos Dias

V. I. Lénine

12 de Março 1918

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Publicado: no Izvéstia VTsIK nº 46, 12 de Março de 1918
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Edições "Avante!", 1977, t2, pp 534-537.
Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.36, pp. 78-82.
Transcrição e HTML: Manuel Gouveia
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo.

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És mísera, és opulenta,

És poderosa, és impotente

- Mãezinha Rússia!(N287)

A história da humanidade está a realizar nos nossos dias uma das mais grandiosas, das mais difíceis viragens, que têm um imenso significado - que sem o mínimo exagero poderíamos qualificar como libertador universal. Da guerra para a paz; da guerra entre abutres que enviam para a matança milhões de explorados e trabalhadores para estabelecer um novo regime de partilha dos despojos saqueados pelos bandoleiros mais fortes, para a guerra dos oprimidos contra os opressores pela libertação do jugo do capital; do abismo de sofrimentos, martírios, fome, asselvajamento, para o futuro luminoso da sociedade comunista, para o bem-estar geral e para a paz duradoura; não é de espantar que nos pontos mais bruscos de tão brusca viragem, quando em volta se quebra e desmorona o que é velho com ruído e estrondo infernais e ao lado nasce o que é novo entre sofrimentos indescritíveis, haja quem sinta vertigem, quem se entregue ao desespero, quem procure salvar-se da realidade, por vezes demasiado amarga, à sombra de uma frase bonita e atraente.

Coube à Rússia observar com particular clareza e viver com especial agudeza e dor a mais brusca das bruscas fracturas da história, que vira do imperialismo para a revolução comunista. Em alguns dias destruímos uma das monarquias mais velhas, poderosas, bárbaras e ferozes. Em alguns meses percorremos uma série de etapas de conciliação com a burguesia, de liquidação das ilusões pequeno-burguesas, que levaram noutros países dezenas de anos. Em algumas semanas, depois de derrubar a burguesia, vencemos a sua resistência aberta na guerra civil. O bolchevismo atravessou em marcha triunfal vitoriosa o imenso país de um extremo ao outro. Levantámos para a liberdade e para uma vida independente as camadas mais baixas das massas trabalhadoras oprimidas pelo tsarismo e pela burguesia. Instaurámos e consolidámos a República Soviética, um novo tipo de Estado, incomparavelmente mais elevado e democrático que as melhores repúblicas parlamentares burguesas. Estabelecemos a ditadura do proletariado, apoiado pelo campesinato pobre, e iniciámos um sistema amplamente concebido de transformações socialistas. Despertámos a fé nas suas próprias forças e acendemos o fogo do entusiasmo em milhões e milhões de operários de todos os países. Lançámos por toda a parte o apelo à revolução operária internacional. Lançámos o repto aos abutres imperialistas de todos os países.

E em alguns dias lançou-nos por terra um abutre imperialista, que atacou pessoas desarmadas. Obrigou-nos a assinar uma paz incrivelmente dura e humilhante — tributo por termos ousado escapar à férrea tenaz da guerra imperialista, ainda que por um prazo brevíssimo. O abutre esmaga, estrangula e despedaça a Rússia com tanto maior fúria quanto mais ameaçador se erga perante ele o fantasma da revolução operária no seu próprio país.

Fomos obrigados a assinar uma paz «de Tilsit». Não nos enganemos a nós próprios. Temos de ter a coragem de olhar cara a cara a verdade amarga e sem disfarces. Temos de medir em toda a sua amplitude, até ao fundo, todo o abismo de derrota, desmembramento, escravização, humilhação para que agora nos empurraram. Quanto mais claramente o compreendermos, tanto mais firme, mais temperada e mais férrea será a nossa vontade de libertação, o nosso anseio de nos elevarmos de novo da escravização para a independência, a nossa inflexível decisão de conseguir a todo o custo que a Rússia deixe de ser mísera e impotente para se converter em poderosa e opulenta no pleno sentido da palavra.

Ela pode tornar-se assim, pois, apesar de tudo, ainda nos ficam suficiente espaço e riquezas naturais para abastecer todos e cada um com os meios de subsistência, senão em abundância, pelo menos em quantidade suficiente. Temos material, tanto nas riquezas naturais como nas reservas de forças humanas e no magnífico impulso que a grande revolução deu à capacidade criadora popular, para criar uma Rússia verdadeiramente poderosa e opulenta.

E a Rússia sê-lo-á se puser de lado todo o desalento e toda a fraseologia, se, cerrando os dentes, reunir todas as suas forças, se puser em tensão cada nervo e cada músculo, se compreender que a salvação é possível no caminho da revolução socialista internacional que empreendemos. Seguir em frente por este caminho sem nos deixarmos desanimar pelas derrotas, edificar pedra a pedra os sólidos alicerces da sociedade socialista, trabalhar sem descanso para criar uma disciplina e uma autodisciplina, para fortalecer em toda a parte a organização, a ordem, a eficiência, a colaboração harmoniosa das forças de todo o povo, o registo e o controlo geral da produção e distribuição dos produtos — tal é o caminho para a criação do poderio militar e do poderio socialista.

É indigno de um verdadeiro socialista dizer fanfarronadas ou deixar-se arrastar pelo desespero por ter sofrido uma pesada derrota. Não é verdadeiro que não tenhamos saída e que nos reste apenas escolher entre uma morte «inglória» (do ponto de vista de um szlachcic) como é uma paz duríssima, e de uma morte «gloriosa» num combate desesperado. Não é certo que tenhamos traído os nossos ideais ou os nossos amigos ao assinar uma paz «de Tilsit». Não traímos nada nem ninguém, não consagrámos e não encobrimos qualquer mentira. Não nos negámos a ajudar com tudo o que podíamos, com tudo o que estava ao nosso alcance, qualquer amigo e camarada de desgraça. Um chefe militar que conduz para o interior do país os restos de um exército destruído ou que foge em pânico, que defende esta retirada em caso extremo por meio da paz mais dura e humilhante, não comete uma traição em relação às unidades do exército às quais não tem forças para ajudar e que ficaram cortadas pelo adversário. Tal chefe militar cumpre o seu dever escolhendo o único caminho para salvar o que ainda pode salvar-se, não aceitando aventuras, não ocultando ao povo a amarga verdade, «cedendo espaço para ganhar tempo», aproveitando qualquer trégua, por mínima que seja, para reunir forças, para permitir que respire ou se restabeleça o exército que sofre de decomposição e de desmoralização.

Assinámos uma paz «de Tilsit». Quando Napoleão I impôs à Prússia, em 1807, a paz de Tilsit, o conquistador destroçara todos os exércitos dos alemães, ocupara a capital e todas as grandes cidades, introduzira a sua polícia, obrigara os vencidos a fornecer-lhe corpos auxiliares para empreender novas guerras de rapina, fraccionara a Alemanha concluindo alianças com uns Estados alemães contra outros Estados alemães. E apesar de tudo, mesmo depois de tal paz, o povo alemão manteve-se firme, soube reagrupar as suas forças, soube erguer-se e conquistar o seu direito à liberdade e à independência.

Para quem quiser pensar e souber pensar, o exemplo da paz de Tilsit (que foi apenas um dos muitos tratados duros e humilhantes impostos aos alemães naquela época) mostra com clareza como é puerilmente ingénua a ideia de que uma paz duríssima é em quaisquer condições um abismo de perdição e de que a guerra é o caminho da glória e da salvação. As épocas de guerras ensinam-nos que a paz desempenhou frequentemente na história o papel de trégua e de acumulação de forças para novas batalhas. A paz de Tilsit foi para a Alemanha uma grande humilhação, e, ao mesmo tempo, a viragem para um grandioso ascenso nacional. Então a situação histórica não dava outra saída para este ascenso senão a do Estado burguês. Então, há mais de cem anos, faziam a história uns punhados de nobres e pequenos grupos de intelectuais burgueses, enquanto as massas de operários e camponeses permaneciam sonolentas ou adormecidas. Devido a isto, então a história só podia arrastar-se com uma horrível lentidão.

Agora o capitalismo elevou a um nível muito e muito mais alto a cultura em geral e a cultura das massas em particular. A guerra sacudiu as massas, despertou-as com os seus inauditos horrores e sofrimentos. A guerra impulsionou a história, e ela voa agora com a velocidade de uma locomotiva. A história fazem-na agora independentemente milhões e dezenas de milhões de homens. O capitalismo encontra-se agora maduro para o socialismo.

E, portanto, se a Rússia marcha agora — e marcha indiscutivelmente - de uma paz «de Tilsit» para o ascenso nacional, para uma grande guerra patriótica, a saída para este ascenso não é a que conduz ao Estado burguês, mas a que conduz à revolução socialista internacional. Somos defensistas desde 25 de Outubro de 1917. Somos pela «defesa da pátria», mas a guerra patriótica para a qual nos encaminhamos é uma guerra pela pátria socialista, pelo socialismo como pátria, pela República Soviética como destacamento do exército mundial do socialismo.

«Odeia o alemão, bate no alemão» — tal foi e continua a ser a palavra de ordem do patriotismo habitual, isto é, burguês. Mas nós diremos: «Odeia os abutres imperialistas, odeia o capitalismo, morte ao capitalismo.» E ao mesmo tempo: «Aprende com o alemão! Sê fiel à aliança fraternal com os operários alemães! Eles atrasaram-se em vir em nosso auxílio. Ganharemos tempo, esperá-los-emos, eles virão em nosso auxílio.»

Sim, aprende com o alemão! A história marcha em ziguezague e fazendo rodeios. Aconteceu que é precisamente o alemão que encarna agora, paralelamente ao imperialismo feroz, o princípio da disciplina, da organização, da colaboração harmoniosa na base da indústria mecanizada mais moderna, do registo e controlo mais rigorosos.

E é isso exactamente o que nos falta. É isso exactamente o que temos de aprender. É disso exactamente que a nossa grande revolução necessita, para poder passar, através de uma série de duras provações, do começo vitorioso ao final vitorioso. E isso exactamente o que exige a República Socialista Soviética da Rússia para deixar de ser mísera e impotente, para se tornar irreversivelmente poderosa e opulenta.


Notas de rodapé:

(N287) Lénine cita em epígrafe palavras do poema de N.A. Nekrassov Quem vive bem na Rússia (retornar ao texto)

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Inclusão 13/06/2019